Inserção ecológica no contexto escolar: importância da observação da relação família- escola

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Inserção ecológica no contexto escolar: importância da observação da relação família- escola Maria Teresa Barros Falcão Coelho 1, Cristina Maria de Souza Brito Dias 1 1 Departamento de Psicologia Universidade Católica de Pernambuco, Brasil. prof.teresafalcao@gmail.com; cristina.msbd@gmail.com Resumo. Desenvolver estratégias metodológicas que possibilitem investigar processos de desenvolvimento nos contextos naturais em que ocorrem, constitui- se em um desafio importante para diversos pesquisadores. A Inserção Ecológica é uma metodologia qualitativa fundamentada na Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano, que orienta a inserção do pesquisador nos contextos ambientais a serem investigados. Este artigo pretende discutir procedimentos de Inserção Ecológica utilizados em uma pesquisa de doutorado que tem por objetivo investigar a relação família e escola, numa perspectiva bioecológica. Serão apresentados recortes do Diário de Campo, a fim de discutir sobre a importância do período de vinculação entre pesquisador e participantes e sobre a utilização da observação naturalística como recurso indispensável às pesquisas que se propõem a investigar as interações entre as pessoas em seus contextos de desenvolvimento. Palavras- chave: Inserção ecológica; Observação naturalística; Relação família- escola. Ecological insertion in the school context: the importance of observing the family- school relationships Abstract. Develop methodological strategies that enables investigate development processes in natural contexts they occur, constitutes in an important challenge for many researchers. The Ecological Insertion is a qualitative methodology based on Bioecological Theory of Human Development, which guides the insertion of the researcher in environmental contexts to be investigated. This article discusses Ecological Insertion procedures used in a doctoral research aims to investigate the family relationship and school, a bio- ecological perspective. Field Diary clippings will be presented in order to discuss the importance of linking period between researcher and participants and the use of naturalistic observation as an indispensable resource to research that propose to investigate the interactions between people in their development contexts. Keywords: Ecological insertion; Naturalistic observation; Family- school relations. 1 Introdução A Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano postula que o desenvolvimento ocorre ao longo do ciclo de vida por meio de processos de interação recíproca, progressivamente mais complexos entre um organismo humano biopsicológico em atividade e as pessoas, objetos e símbolos existentes no seu ambiente externo imediato (Bronfenbrenner, 2011, p.46). Os contextos de desenvolvimento humano, de acordo com Bronfenbrenner, não se limitam apenas a um ambiente único e imediato, e devem ser concebidos topologicamente como uma organização de estruturas concêntricas, cada uma contida na seguinte que se influenciam mutuamente e afetam o desenvolvimento da pessoa (Bronfenbrenner, 1979/1996, p. 18). São as estruturas: microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema. O microssistema envolve o conjunto de relações entre a pessoa e o meio circundante imediato. A família e a escola são consideradas microssistemas e incluem as interações face a face entre seus membros. O mesossistema contempla as relações entre microssistemas. A relação família e escola, por envolver influências mútuas entre esses microssistemas, é um exemplo de mesossistema. O 1080

exossistema se refere aos contextos nos quais a pessoa não está participando diretamente, mas que influenciam seu desenvolvimento. O macrossistema representa os valores culturais, sistemas de crenças e acontecimentos históricos que influenciam os outros sistemas ecológicos (Bronfenbrenner & Morris, 1998). 1.1 Inserção Ecológica A Inserção Ecológica é uma metodologia qualitativa que foi sistematizada por Cecconello e Koller (2003) com a finalidade de orientar a inserção de pesquisadores no campo de investigação, fundamentando- se, para tal, na Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano. Cecconello e Koller (2003) estabeleceram critérios mínimos a serem considerados no planejamento de pesquisas que pretendem utilizar a Inserção Ecológica. Assim, discutiram sobre alguns aspectos, tais como: a importância da interação entre pesquisadores e participantes, a necessidade de diversos encontros em um período estendido de tempo, a postura de informalidade nos encontros, os diálogos que devem progredir para temas cada vez mais complexos, interessantes e estimulantes para participantes e pesquisadores. 1.2 Período de vinculação Bronfenbrenner (1979/1996) alertou que a validade dos achados na pesquisa não se daria apenas pela investigação ocorrer no contexto, mas dependeria de uma reorientação da relação tradicional entre pesquisador- participantes. Ele definiu a validade ecológica como a extensão em que o meio ambiente experienciado pelos sujeitos em uma investigação científica tem as propriedades supostas ou presumidas pelo investigador (Bronfenbrenner, 1979/1996, p. 24). Assim, para que a validade ecológica se realize é necessário que o pesquisador se envolva com o contexto de investigação atribuindo importância ao conhecimento e à iniciativa das pessoas sob estudo (Bronfenbrenner, 1979/1996, p.26). O período de vinculação corresponde a uma etapa importante da Inserção Ecológica do pesquisador no contexto, possibilitando que o mesmo estabeleça vínculo com os participantes, esclareça os objetivos da pesquisa e o seu papel, assim como as regras de convivência (Eschiletti Prati, Paula Couto, Moura, Poletto, & Koller, 2008). Nesse sentido, é possível que durante o período de vinculação sejam obtidos dados ecologicamente válidos, pois segundo Bronfenbrenner (1979/1996): ao permitir que atividades emerjam espontaneamente dentro do contexto ambiental dado, o investigador pode obter evidências relativas ao significado psicológico do contexto para os participantes (Bronfenbrenner, 1979/1996, p.26). 2 Relação família e escola A presente pesquisa de doutorado intitulada Relação entre avós, netos e escola: uma abordagem bioecológica tem por objetivo geral investigar as relações que envolvem o mesossistema família e escola na perspectiva dos avós, dos netos e respectivos professores. A perspectiva bioecológica, adotada na pesquisa, possibilita considerar a família e a escola como sistemas complexos que interagem entre si e com outros sistemas. Para além das interações que ocorrem dentro de cada microssistema, há que se considerar a análise do espaço de trocas entre esses microssistemas. Dessa forma, parte- se da compreensão da relação família e escola como constituindo um mesossistema, o que implica a consideração das interconexões sociais entre esses contextos, 1081

incluindo a participação multiambiente, a comunicação e a existência de informações em cada ambiente a respeito do outro. Adotou- se neste estudo a Inserção Ecológica como estratégia metodológica. O Projeto de Tese foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Católica de Pernambuco, onde obteve aprovação (Parecer n. 1.244.674). Seguindo o cronograma previsto e a partir das orientações sugeridas pela Inserção Ecológica, a primeira etapa da pesquisa correspondeu ao período de vinculação que teve por objetivo principal o estabelecimento do relacionamento entre pesquisador e participantes. Durante esse período, a pesquisadora fez visitas semanais a uma escola pública estadual do Ensino Fundamental, com o objetivo de conhecer seu cotidiano, acompanhar suas atividades e aproximar- se dos profissionais, dos estudantes e suas famílias. Registros de observações naturalísticas das visitas foram realizados no Diário de campo. 3 Recortes do Diário de Campo O Diário de Campo contém os registros cursivos dos eventos do cotidiano escolar: horário de entrada e saída dos alunos, reuniões família- escola no início e final de ano, atividades em sala de aula, entrega de prêmios aos alunos destaque, atendimento à família por questões disciplinares, primeiro dia de aula etc. Tais situações foram experienciadas pela pesquisadora, durante a sua vinculação ao contexto, nos meses de novembro/dezembro/2015 e mês de fevereiro/2016. As visitas continuam acontecendo semanalmente, nos turnos da manhã e da tarde, com duração de três horas cada. Na Tese, os registros do Diário de Campo serão analisados em função das interconexões do mesossistema família e escola, a saber, a participação multiambiente, a comunicação e a informação interambiente. Para este artigo, foram selecionados alguns recortes do Diário de Campo com foco na análise da dimensão de participação multiambiente, que é definida por Bronfenbrenner como a forma mais básica de interconexão entre dois ambientes, uma vez que pelo menos uma manifestação disso é necessária para um mesossistema. Ela ocorre quando a mesma pessoa participa de atividades em mais de um ambiente (Bronfenbrenner, 1979/1996, p.161). Seguem alguns recortes do Diário de Campo: Faça chuva ou faça sol, a gente tá aqui Ao chegar à escola, por volta das 7h20, encontrei três mães e uma avó próximas ao portão de entrada que ainda estava fechado. Comecei a conversar com elas: Bom dia! Estão esperando pra falar com alguém? Elas responderam ao bom dia amistosamente e disseram que não, que estavam lá porque levam os filhos e acompanham a entrada deles na escola: Faça chuva ou faça sol, a gente tá aqui. Continuei conversando com elas, e perguntei a série dos filhos e do neto e, se os traziam à escola por serem das turmas iniciais. Elas disseram que sempre os levavam, desde pequenos. Uma delas, mãe de uma aluna com 15 anos que cursa o 9º ano, e de outros em séries iniciais, disse que leva os filhos à escola desde o primeiro dia de aula: Quando não sou eu, é o pai. Outra disse que era bom levar: A gente tá por aqui, qualquer coisa a gente já fica sabendo e participa de tudo o que tem na escola. Todo dia, a gente tá aqui. É mania delas, só tem isso pela manhã mesmo Cheguei à escola por volta das 13h20 e alguns alunos estavam no pátio da escola. Não havia nenhum familiar por lá. Um funcionário chegou e logo tocou o sinal sonoro para a entrada. Comentei com ele sobre a ida da família à escola, nesse horário de entrada e na saída. Ele disse: Eles já são grandes. Vêm andando sozinhos mesmo. Ou então, os pais deixam ali na frente e eles vêm andando. Comentei que pela manhã, tinha um grupo que estava sempre por lá. Ele disse: É mania delas, só tem isso pela manhã mesmo. Que vergonha, ter que vir aqui! 1082

Chegaram à secretaria da escola, uma aluna do 8º ano, sua mãe, sua avó e o seu irmão, que é aluno do 7º ano. A funcionária questiona a aluna: O que tá fazendo aqui? A aluna diz: Minha mãe tá aqui. A funcionária se dirige à mãe e diz: Vou ver se a coordenadora já chegou pra conversar com vocês. Olha para o aluno e comenta: Olhe mãe, esse menino aqui riu na minha cara e disse que eu não era nada aqui não... Ele fica rindo assim.... O aluno estava rindo. A funcionária continua: Mas qualquer dia você vai rir de alguém na rua que vai quebrar a tua cara... E eu vou gostar de saber!. Nesse momento a mãe diz: eu vou dale! Eu vou dale aqui mesmo!, referindo- se a bater no filho. Ela se aproxima dele com muita raiva. O aluno fica apoiado no balcão da secretaria de costas para a mãe. A avó fala com o neto: O que é isso? Eu vou falar pro seu pai viu!. A funcionária sai e a mãe e a avó sentam em um banco para esperar. Enquanto isso a avó fala para o neto: Você sabe que eu nunca fui chamada na escola por causa de seu pai, nem dos seus tios? Que vergonha, ter que vir aqui!. O aluno parou de rir. A funcionária chega e diz para a família ir falar com a coordenadora. Eu conheço meu filho! A escola organizou, por ocasião do final do ano, uma reunão com os pais, professores e estudantes do 9º ano. Os professores iam um por vez, falando aos pais. Uma professora diz: Eu conheço melhor o filho de vocês do que vocês! Uma mãe discorda: Não! Nada disso! Eu conheço meu filho!. A professora continua insistindo para que os pais tivessem cuidado com as amizades e que proibissem o uso do celular na sala de aula, o que atrapalhava muito a aula. A mãe disse que fazia a parte dela, e queria saber o que a escola estava fazendo. O grupo de pais era pequeno e a reunião se concentrava nas queixas dos professores. Uma estudante de Psicologia estava observando a reunião e relatou depois: Senti como se estivesse numa guerra. Ao final, a coordenadora tentou apaziguar mencionando a importância da família e escola trabalharem juntas, pois a escola sozinha não podia fazer tudo. Se ele não quiser, force! No início do ano letivo de 2016, aconteceu a primeira reunião com a família. Estavam presentes no pátio: a diretora, os professores, uma representante da Secretaria da Educação, os familiares e os estudantes. A diretora deu boas vindas às famílias. Os professores iam sendo chamados para trazer informações sobre: avaliação, horários, merenda etc. Um dos professores ao falar sobre a merenda, disse que os pais não deveriam mandar dinheiro para eles comprarem lanche numa barraca fora da escola. Ele comentou que a merenda é muito boa. Uma mãe disse: Meu filho, não gosta da merenda!. O professor continuou dizendo que a merenda era servida todos os dias e era de boa qualidade. Ele comenta: A merenda é boa, mas sabe o que os filhos de vocês fazem? Eles jogam a merenda no chão, jogam uns nos outros.... Disse também que os pais precisam dar o café da manhã em casa, pois algumas crianças chegam à escola sem ter comido e isso prejudica sua participação na aula: Se ele não quiser, force!. 4 Importância das observações naturalísticas para análise da relação família- escola A partir das situações descritas acima, considerando a dimensão da participação multiambiente, pode- se identificar familiares no espaço escolar, ora observando, ora participando de eventos do cotidiano escolar (horário de entrada, primeiro dia de aulas, atendimento pela coordenação e reunião família- escola). Diante disso, pode- se questionar: como estão ocorrendo essas interações? Torna- se relevante destacar que os dados são preliminares, tendo em vista que correspondem ao início da inserção da pesquisadora no contexto e que serão ampliados com a continuidade das observações e realização de entrevistas com os participantes do estudo. No entanto, é possível elencar alguns pontos importantes para análise. A postura informal da pesquisadora permitiu a interação com as mães, avó, estudantes e funcionários no horário da entrada. O diálogo estabelecido 1083

possibilitou o acesso aos significados que as mães/avó dão ao comportamento de levarem os filhos/neto à escola. Para elas, é importante estarem próximas da escola, acompanhando e participando do cotidiano escolar. Foi possível perceber que para o funcionário da escola, o significado era outro, pois se os estudantes já são grandes para ele parece desnecessário esse comportamento da família de levar os filhos à escola. Outro ponto importante de análise diz respeito à possibilidade de acompanhar as interações entre estudantes, familiares e escola no momento em que ocorrem. O que favoreceu, por exemplo, perceber o tom agressivo presente no comportamento da funcionária e da mãe em relação ao estudante, por ocasião de atendimento por indisciplina do mesmo. A participação da avó, orientando o neto e mostrando- se envergonhada por estar na escola sinalizam aspectos importantes do seu papel no acompanhamento escolar do mesmo. A inserção da pesquisadora no contexto possibilitou o acesso a gestos, expressões faciais de raiva, desprezo e vergonha que dificilmente seriam acessados em encontros formais de pesquisa. Essa possibilidade de acessar o tom emocional das interações entre os participantes do estudo também ocorreu na situação de observação da reunião entre a família, os estudantes e seus professores. Por fim, é possível pensar a respeito do potencial de promoção de desenvolvimento do mesossistema em investigação. Bronfenbrenner (1979/1996) alerta que o potencial desenvolvimental dos ambientes num mesossistema é aumentado pelo desenvolvimento da confiança mútua, de uma orientação positiva, de um consenso de objetivos entre os ambientes e de um equilíbrio de poder que evolui em favor da pessoa desenvolvente (Bronfenbrenner, 1979/1996, p. 163). Considerando os registros do Diário de campo, não identificamos o desenvolvimento da confiança mútua e de um equilíbrio de poder entre esses ambientes. As situações descritas remetem a uma posição de superioridade da escola, ao assumir o discurso de ditar o que a família deve fazer (reuniões), demonstrando postura agressiva frente ao aluno (situação de indisciplina). A família, por sua vez, se opõe ao discurso da escola (reuniões); assume uma postura agressiva com o filho no contexto escolar, ou se envergonha por estar na escola (situação de indisciplina do aluno). Essa assimetria de poder presente na relação família e escola confirma resultados de estudos anteriores sobre o tema (Marcondes & Sigolo, 2012; Oliveira & Marinho- Araújo, 2010; Ribeiro & Andrade, 2006; Saraiva & Wagner, 2013). 5 Conclusões A partir da análise dos recortes do Diário de campo, podemos destacar a importância do período de vinculação para obtenção de dados ecologicamente válidos. Estar no contexto possibilita ao pesquisador captar os significados que as pessoas atribuem aos eventos e situações dos ambientes nos quais se desenvolvem. Várias pesquisas, que fazem uso da Inserção Ecológica, mencionam a importância dos dados de observação naturalística (Mendes, Pontes, Silva, Bucher- Maluschke, Reis, & Baía- Silva, 2008; Rufino e Silva, Magalhães, & Cavalcante, 2014; Zillmer, Schwartz, Muniz, & Meincke, 2011). No caso da pesquisa de doutorado em questão, a inserção ecológica associada à observação naturalística revelaram aspectos emocionais do mesossistema em investigação, que dificilmente seriam detectados sem a imersão da pesquisadora no contexto. Ressaltamos a importância da realização das observações naturalísticas para o estudo da relação família- escola, assim como dos registros realizados no Diário de Campo para sistematização da produção dos conhecimentos da pesquisa (Afonso, Pontes & Koller, 2015). Como demonstrado acima, os registros serão agrupados de acordo com as dimensões das interconexões do mesossistema família e escola. Desta forma, a pesquisa de está em curso a partir da compreensão da 1084

relevância de um processo interativo de confrontações sucessivas entre a teoria, os procedimentos metodológicos adotados e análise dos dados obtidos. Referências Afonso, T., Silva, S. S. C., Pontes, F. A. R., & Koller, S. H. (2015). O uso do diário de campo na inserção ecológica. Psicologia & Sociedade, 27(1), 131-141. Bronfenbrenner, U. (1979/1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. M. A. V. Veronese, (Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. Bronfenbrenner, U. & Morris, P. (1998). The ecology of developmental processes. In Handbook of child psychology, 1, W. Damon (Org.), New York, NY: John Wiley & Sons, 993-1027. Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. A. C. Barreto, (Trad.). Porto Alegre: Artmed. Cecconello A. M., & Koller, S. H. (2003). Inserção ecológica na comunidade: uma proposta metodológica para o estudo de famílias em situação de risco. Psicologia: Reflexão e Crítica, 16(3), 515-524. Eschiletti Prati, L., Paula Couto, M. C. P. de, Moura, A., Poletto, M., & Koller, S. H. (2008). Revisando a inserção ecológica: uma proposta de sistematização, Psicologia: Reflexão e Crítica, 21, 160-169. Marcondes, K. H. B., & Sigolo, S. R. R. L. (2012). Comunicação e envolvimento: possibilidades de interconexões entre família- escola? Paidéia, 22(51), 91-99. Mendes, L. S. A., Pontes, F. A. R., Silva, S. S. C., Bucher- Maluschke, J. S. N. F., Reis, D. C., & Baía- Silva, S. D. (2008). Inserção ecológica no contexto de uma comunidade ribeirinha amazônica. Revista Interamericana de Psicologia, 42, 1-10. Ribeiro, D. F., & Andrade, A. S. (2006). A assimetria na relação entre família e escola pública. Paidéia, 16(35), 385-394. Rufino e Silva, T. S., Magalhães, C. M. C., & Cavalcante, L. I. C. (2014). Interações entre avós e netos em instituição de acolhimento infantil. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 66(1), 49-60. Saraiva, L. A., & Wagner, A. (2013). A relação família- escola sob a ótica de professores e pais de crianças que frequentam o ensino fundamental. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, 21(81), 739-772. Oliveira, C. B. E., & Marinho- Araújo, C. M. (2010). A relação família- escola: intersecções e desafios. Estudos de Psicologia, 27(1), 99-108. Zillmer, J. G. V., Schwartz, E., Muniz, R. M., & Meincke, S. M. K. (2011). Modelo bioecológico de Urie Bronfenbrenner e inserção ecológica: uma metodologia para investigar famílias rurais. Texto & Contexto - Enfermagem, 20(4), 669-674. 1085