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Revista Factores de Risco, Nº9 ABR-JUN 2008 Pág. 08-12 artérias esplâncnicas onde a doença é menos frequente mas as complicações clínicas são muito relevantes. Assim, a identificação de DAP deve implicar uma avaliação geral do doente no sentido de avaliar o chamado Risco Cardiovascular Global. O registo REACH 2 revelou o dado impressionante de que 65% dos doentes portadores de DAP também apresentavam evidência de envolvimento dos territórios coronário e/ou cerebral o que explica a sua elevada mortalidade. A quantificação do Risco Cardiovascular Global surgiu nos últimos anos como um elemento importante para a definição das abordagens diagnósticas e das estratégias terapêuticas, bem como na formulação do prognóstico da doença aterosclerótica. O conhecimento acumulado sobre o início, o desenvolvimento e as complicações das placas de ateroma levaram ao conceito unificador de aterotrombose, que parece ser comum a todos os sectores de ocorrência da doença. Assim, o tratamento das complicações da aterosclerose em determinado território implica a está claramente demonstrado que os portadores de DAP têm um risco de cerca de 20% de sofrerem um acidente vascular cerebral (AVC) ou enfarte do miocárdio não fatal aos 5 anos e que a mortalidade global, também aos 5 anos, é de 10-15%. (AVC) ou enfarte do miocárdio não fatal aos 5 anos e que a mortalidade global, também aos 5 anos, é de 10-15% 3. Dos doentes que falecerem a causa foi cardiovascular em 75% 3. Assim, qualquer médico que identifique patologia arterial periférica de etiologia aterosclerótica, deve ter em conta a importância de aproveitar este golden moment para pesquisar doença coronária ou cerebrovascular, para controlar de forma adequada os factores de risco e para instituir terapêutica preventiva dos fenómenos de aterotrombose. A informação epidemiológica disponível sobre a DAP provém fundamentalmente de países europeus e dos Estados Unidos da América sendo escasso o conhecimento real sobre a validação destes dados em Portugal. No sentido de colmatar esta lacuna e de aumentar a divulgação da problemática referente à DAP está em curso um Registo Nacional, organizado sob a égide da Sociedade Portuguesa de Angiologia e Cirurgia Vascular, e que deverá constituir um marco na obtenção de informação epidemiológica sobre a DAP na população portuguesa. O objectivo primordial será a determinação da prevalência da DAP (avaliação clínica e por métodos não-invasivos), das características demográficas, de factores de risco e de atitudes terapêuticas realizadas em adultos portugueses com mais de 50 anos. O estudo será efectuado no âmbito de Centros de Saúde nos 18 distritos nacionais prevendo-se que englobe cerca de 6000 indivíduos. 2. A doença arterial periférica pode servir como marcador de doença aterotrombótica generalizada. Pode-nos dar uma explicação sobre esta afirmação? R: Como já foi mencionado, a ocorrência de DAP significa um risco acrescido de doença coronária e cerebrovascular significativas. Estes são os locais que mais frequentemente estão afectados mas não devemos esquecer também o envolvimento das artérias renais e das avaliação activa de lesões nos outros sectores. Por outro lado, às tradicionais abordagens segmentares da doença, frequentemente através de intervenção cirúrgica, foram contrapostas e desenvolvidas estratégias de tratamento médico global que complementam o tratamento das complicações e onde são actualmente muito relevantes o controle activo dos factores de risco e a prevenção farmacológica da aterotrombose 4. Do que foi dito parece poder concluir-se que a evidência científica das últimas duas décadas levou a que emergissem progressivamente novos factores de risco cardiovascular no sentido em a sua identificação agrava o prognóstico da doença e implica medidas terapêuticas preventivas da aterotrombose. Exemplos deste novos factores de risco são a identificação de DAP e de aumento da espessura do complexo média-íntima das carótidas primitivas, os quais se relacionam de forma independente com aumento da morbilidade e mortalidade de causa cardiovascular no seguimento 5,6. 9
Doença Arterial Periférica 3. Quais as orientações e critérios que os clínicos devem utilizar para a detecção precoce da doença arterial periférica? R: A detecção de DAP deve basear-se em dois tipos de critérios: clínicos e por métodos não-invasivos de diagnóstico vascular. De facto, a história clínica, para além da informação sobre factores de risco e sintomas de doença noutros territórios, deve incluir a pesquisa de claudicação intermitente definida pela ocorrência de dor, cansaço ou sensação de peso em grupos musculares dos membros inferiores, com o exercício físico e obrigando à interrupção do mesmo. A dor da claudicação intermitente é muitas vezes acompanhada de arrefecimento, palidez, parestesias ou impotência funcional do membro. A necessidade de interrupção da marcha surge para distâncias fixas e que, tipicamente, são constantes excepto em plano inclinado ou com aumento da velocidade, onde são menores. Consoante o sector arterial envolvido, a dor pode atingir a região gemelar, os músculos da coxa ou os da região glútea. Quando estão em causa fases mais avançadas da DAP surge dor isquémica de repouso que tem como características ser agravada pela horizontalização do às tradicionais abordagens segmentares da doença, frequentemente através de intervenção cirúrgica são actualmente muito relevantes o controle activo dos factores de risco e a prevenção farmacológica da aterotrombose. membro, aliviar pela pendência do mesmo, ser persistente e intensa e necessitar de terapêutica analgésica. Na fase mais avançada surgem lesões tróficas como necrose cutânea ou de dedos e úlceras (espontâneas ou traumáticas). Este quadro clínico deve ser reconhecido e ser complementado por um exame objectivo que deve incluir a palpação dos pulsos que, na presença de DAP, se encontram geralmente diminuídos ou ausentes. A presença de pulsos nos membros inferiores nem sempre exclui de forma absoluta a presença de DAP. Com efeito, existem algumas situações em que ocorrem lesões isquémicas periféricas com manutenção de pulsos periféricos. Estes quadros, denominados genericamente de síndroma do dedo azul, são determinados por ateroembolismo a partir de lesões ateroscleróticas proximais. Por outro lado, algumas obstruções aorto-ilíacas ou femorais, bem compensadas por circulação colateral, podem proporcionar débito circulatório quase normal em repouso, nomeadamente com integridade ou discreta diminuição da amplitude dos pulsos. Nestas circunstâncias, torna-se essencial a avaliação de outros aspectos como a medição de pressão arterial nas artérias do tornozelo (tibial posterior e pediosa) ou a avaliação após exercício. Assim, o rastreio da DAP deve incluir a avaliação dos aspectos clínicos mencionados e deve ser complementado pela medição da pressão sistólica nas artérias do tornozelo utilizando aparelho de efeito Doppler e esta pressão deve ser comparada com a registada na artéria umeral pela mesma técnica. Este quociente é denominado de Índice de Pressão Tornozelo-Braço (Ankle-Braquial Index- ABI) e constitui uma forma objectiva de avaliação da presença de doença oclusiva dos membros inferiores. Vários estudos correlacionaram a redução do ABI (e assim a presença de doença) com maior risco de eventos cardiovasculares e com maior mortalidade no seguimento 3. Assim, também o ABI emergiu como outro novo factor de risco cardiovascular ). Em conclusão, para além da observação clínica, a avaliação do ABI é essencial na prática clínica e na metodologia de estudos que possam ser organizados na actualidade, no sentido de detectar DAP sub-clínica ou de apreciar o compromisso hemodinâmico da DAP em cada doente. Como já foi referido, estes aspectos têm importância diagnóstica, terapêutica e prognóstica. 4. Os meios complementares de diagnóstico têm aqui um papel importante? R: Como foi mencionado atrás, a observação clínica deve ser complementada pela determinação do ABI. Na prática clínica utiliza-se com frequência o estudo com eco-doppler da circulação arterial dos membros inferiores, o qual constitui uma técnica não-invasiva que apresenta algumas vantagens. Em primeiro lugar, permite visualizar as lesões, apreciar a sua extensão e definir áreas de estenose ou de oclusão. Para além disso, proporciona informação importante sobre a repercussão hemodinâmica das lesões de estenose quantificando a 10
Revista Factores de Risco, Nº9 ABR-JUN 2008 Pág. 08-12 os doentes com DAP sintomática devem ser medicados com estatinas no sentido de obter controlo dos níveis de colesterol e também pelas propriedades pleiotrópicas daqueles fármacos que parecem reduzir a instabilidade das placas de ateroma. eventual aceleração do fluxo a esse nível. Assim, obtém-se informação directa sobre a extensão, o carácter estenosante ou oclusivo da doença e a respectiva repercussão sobre o fluxo sanguíneo. Geralmente permite a tomada de decisões terapêuticas numa era em que muitas lesões são susceptíveis de tratamento endovascular e assim a informação proporcionada pelo eco-doppler permite avançar directamente para a confirmação angiográfica realizada numa suite angiográfica/ terapêutica e evitando assim a realização de uma arteriografia exclusivamente diagnóstica. O eco-doppler tem algumas limitações como a sua dependência do equipamento e do observador e o facto de avaliar de forma segmentar os sectores arteriais e não permitir visualizar de globalmente as artérias tronculares e a circulação colateral. Por outro lado, é menos rigoroso na avaliação de vasos de pequeno calibre, nomeadamente no sector tibio-peroneal. Deste modo, quando é equacionada a realização de tratamento cirúrgico convencional, a realização de um estudo prévio por arteriografia é ainda essencial. No workup de um doente com DAP é também fundamental a realização de um eco-doppler cerebrovascular. O objectivo é a identificação de placas de ateroma da bifurcação carotídea e a quantificação de eventuais estenoses. Por outro lado, nos últimos anos ficou estabelecido de forma inequívoca que a presença de alterações ateroscleróticas ao nível dos eixos carotídeos apresentam relação linear com a ocorrência futura de eventos clínicos coronários e cerebrais, bem como com a mortalidade de causa cardiovascular 5,6. Esta relação é verdadeira para as alterações precoces ou subclínicas da aterosclerose carotídea, traduzida por aumento progressivo da espessura média-íntima da carótida primitiva, e também para as alterações avançadas consubstanciadas pela presença de placas de ateroma e de estenoses carotídeas 5. Finalmente, no estudo da DAP deve ter-se em conta o papel emergente das técnicas de Angio- -Ressonância Magnética (Angio-RM) ou de Angio- -Tomografia Computorizada (Angio-TC). A evolução estes métodos faz com que sejam cada vez mais rigorosos na avaliação arterial. No entanto, os melhores resultados são actualmente obtidos com as equipamentos mais recentes e sofisticados e ainda não generalizados na prática clínica. Apresentam também limitações nos vasos de pequeno calibre, parecem sobrevalorizar as estenoses (Angio-RM e Angio-TC) e são influenciados pela calcificação arterial (Angio-TC). 5. As modificações do estilo de vida e a terapêutica desempenham um papel importante na abordagem da doença arterial periférica? R: Na abordagem terapêutica da DAP o controlo dos factores de risco e a terapêutica médica são essenciais como foi recentemente reconhecido em guidelines internacionais 3. Com efeito o doente deve ser estimulado a abster-se de fumar, a diabetes mellitus deve ser adequadamente controlada com valores de Hemoglobina A1c próximos de 6%, e sempre inferiores a 7%, e a pressão arterial deve ser inferior a 140/90 mmhg ou a 130/80 mmhg se coexistir diabetes ou insuficiência renal. É ainda fundamental manter valores de LDL-colesterol inferiores a 100 mg/dl ou a 70 mg/dl se houver evidência de doença oclusiva noutros territórios. Este objectivo deve ser conseguido pela introdução de medidas dietéticas adequadas ou pela associação de fármacos hipolipemiantes. De uma forma geral, e à semelhança dos territórios coronário e cerebral, também os doentes com DAP sintomática devem ser medicados com estatinas no sentido de obter controlo dos níveis de colesterol e também pelas propriedades pleiotrópicas daqueles fármacos que parecem reduzir a instabilidade das placas de ateroma. Por outro lado, existe alguma evidência que sugere a contribuição das estatinas para o aumento da distância de marcha nos doentes claudicantes. Finalmente, a terapêutica deve incluir de forma sistemática antiagregação plaquetária. Quanto ao tratamento específico da DAP é essencial, nos doentes com claudicação intermitente, a organização de programas de exercício físico controlado e parece 11
Doença Arterial Periférica haver também algum benefício em relação à utilização de fármacos vasodilatadores periféricos. 6. Hoje a cirurgia vascular trouxe uma nova perspectiva no prognóstico e qualidade de vida dos doentes com doença arterial periférica. O que deve o médico não especialista em doenças vasculares saber sobre a terapêutica cirúrgica? R: De uma forma geral, na actualidade, as indicações para intervenção nos doentes com DAP são os estádios de dor em repouso ou a presença de lesões tróficas (onde o risco de perda de membro é muito elevado se o membro não for revascularizado) e os quadros de claudicação intermitente incapacitante. Em regra, quando é colocada a indicação para intervenção é efectuado um estudo com arteriografia (o qual pode ser realizado numa suite que permita terapêutica endovascular imediata) que revela a extensão e a morfologia das lesões. Estas determinam a indicação para tratamento endovascular, para tratamento cirúrgico convencional ou para procedimentos mistos ou híbridos. O desenvolvimento da terapêutica endovascular aplicado ao sector das artérias dos membros inferiores levou a que muitas lesões sejam susceptíveis de tratamento por estas técnicas e de facto, quando a doença é menos extensa, constitui método de primeira linha para a revascularização dos membros inferiores. Sempre que a doença é avançada permanece a necessidade de efectuar procedimentos cirúrgicos convencionais. Actualmente existem guidelines internacionais que consubstanciam as diversas opções consoante a extensão da doença aterosclerótica 3. Bibliografia 1. CAPRIE Steering Committee. A randomised, blinded, trial of clopidogrel versus aspirin in patients at risk of ischaemic events (CAPRIE). Lancet. 1996;348:1329-39 2. Bhatt DL, Steg PG, Ohman EM, Hirsch AT, Ikeda Y, Mas JL, Goto S, Liau CS, Richard AJ, Röther J, Wilson PW; REACH Registry Investigators. International prevalence, recognition, and treatment of cardiovascular risk factors in outpatients with atherothrombosis. JAMA. 2006;295:180-9 3. Norgren L, Hiatt WR, Dormandy JA, Nehler MR, Harris KA, Fowkes FG; TASC II Working Group. Inter-Society Consensus for the Management of Peripheral Arterial Disease (TASC II). J Vasc Surg. 2007;45 Suppl S:S5-67. 4. Pedro LM. 2007 Guidelines for the Management of Arterial Hypertension- Fronteiras com a Angiologia e Cirurgia Vascular. Angiologia e Cirurgia Vascular 2007;3:177-182 5. Belcaro G, Laurora G, Cesarone MR, Barsotti A, Trevi GP, Renton S, Veller M, Fisher C, Gerulakos G, Nicolaides AN. Noninvasive ultrasonic biopsy: evaluation of early arteriosclerotic lesions progression in normal asymptomatic, hyperlipidemic, and diabetic subjects. Angiology 1993;44:93-99. 6. O Leary DH, Polak JF, Kronmal RA, Manolio TA, Burke GL, Wolfson SK Jr. Carotid-artery intima and media thickness as a risk factor for myocardial infarction and stroke in older adults. Cardiovascular Health Study Collaborative Research Group. N Engl J Med. 1999;340:14-22. 12