AS VIRTUDES: O QUE SÃO E COMO E COMO SE ADQUIREM?

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Transcrição:

AS VIRTUDES: O QUE SÃO E COMO E COMO SE ADQUIREM? À medida que as crianças crescem, precisam de adquirir e desenvolver algumas qualidades de carácter, a que alguns autores chamam disposições e hábitos, tais como o sentido da responsabilidade, coragem, temperança, sentido da justiça, autodomínio e prudência. Estas virtudes não são mais do que hábitos da mente, bons sentimentos e força de vontade para os traduzir em actos. Há três maneiras de as crianças adquirirem estas virtudes: pelo exemplo, através da prática directa e através das narrativas. As crianças aprendem pelo exemplo quando vêem e observam as vidas dos pais, amigos e vizinhos. As transformações na estrutura da família tradicional, nomeadamente a percentagem cada vez maior de filhos únicos e de famílias monoparentais, aumentou a influência dos mass media na vida das crianças. Essa influência é tanto maior e mais perigosa quanto mais frágil for a estrutura da família. Como as crianças aprendem as virtudes por imitação, a exposição a que estão sujeitas, durante longas horas por dia, ao telelixo, ao lixo que circula na web e a jogos de computador que exaltam a violência e a crueldade, pode ter efeitos extremamente nefastos no processo de formação do carácter, impedindo-as de adquirir as virtudes necessárias e aguçando nelas o apreço e apetite pelos vícios e valores negativos. A agravar este estado de coisas, está o facto de, nas sociedades ocidentais materialmente mais desenvolvidas, a juventude se estender por demasiado tempo sem que os adolescentes e jovens tenham um contacto directo com actividades produtivas, de tipo profissional ou de voluntariado. As crianças aprendem através da prática directa, ou seja, pela repetição de actos que são levadas a realizar quer sob influência dos

pais quer dos professores e dos pares. Trata-se, neste caso, de uma aprendizagem através da experiência. Essa aprendizagem é muito importante porque vem associada ao desenvolvimento de competências de vida e de trabalho, as quais mantêm uma íntima relação com determinadas virtudes, como a honestidade, a verdade, a generosidade, a equidade, a perseverança e a resiliência. As crianças aprendem pela palavra e, em particular, através das narrativas, as quais têm um poderoso efeito na formação da personalidade e na construção do carácter das crianças. As narrativas familiares ajudam a criança a compreender que pertence a uma cultura e a uma comunidade marcadas por laços de solidariedade e de afeição e enquadradas por rituais, normas, tradições, proibições e limites. Sem o contacto permanente com esse quadro de normas, rituais, tradições, proibições e limites, a criança sente-se perdida e desorientada, ficando mais exposta à influência nefasta da cultura dos gangs, nomeadamente quando não dispõe do apoio e acompanhamento de uma comunidade virtuosa, na família, no bairro e na escola. De seguida, vamos passar em revista as quatro virtudes cardinais: prudência, justiça, coragem e temperança. A prudência é a virtude da boa deliberação. Sem ela, perdemonos com facilidade no complexo processo de tomada de decisões. Como sabemos, o processo de tomada de decisões compreende várias fases: contacto com o problema, compreensão do problema, cálculo racional sobre as opções, estratégias e consequências, deliberação e, por fim, passagem à acção. Em muitos casos, o sujeito não chega ao fim do processo, ou seja, não passa à acção. Há várias razões para isso: vontade fraca, ausência da virtude da coragem ou simplesmente adiamento da passagem à acção por efeito do cálculo racional. Outras vezes, o sujeito passa à acção mas age mal. Há várias explicações para isso: vontade deficiente, falta de informação e, portanto, incapacidade para compreender o problema, mau uso do

cálculo racional ou, simplesmente, a posse de um mau carácter. O sujeito com um mau carácter age mal porque tem uma inclinação para apreciar as acções incorrectas. O hábito de praticar acções incorrectas reforça o mau carácter. Por outro lado, um sujeito que cresce e vive numa comunidade onde as virtudes não estão presentes ou não são apreciadas, tem mais probabilidades de desenvolver um mau carácter. Por vezes, acontece outra situação: o sujeito opta por não passar à acção. Pode acontecer que o sujeito, após a fase de cálculo racional, conclua que as consequências negativas previsíveis de uma determinada acção aconselhem a que a acção não seja tomada ou que a mesma seja adiada para melhor oportunidade. A prudência compreende várias qualidades e exige a presença de várias condições: respeito pela aprendizagem e pela realização intelectual; compreensão da natureza humana; respeito pela experiência de vida; análise das prioridades de vida; hábito de considerar as causas passadas e as implicações futuras dos acontecimentos presentes e das circunstâncias; habilidade para conhecer a verdade, a beleza e o bem; capacidade para distinguir entre a verdade e a mentira, o verdadeiro e o falso e o bem e o mal. A capacidade de distinguir constitui uma propriedade essencial na virtude da prudência. Mas distinguir o quê? Eis uma pequena lista de coisas importantes: distinguir os heróis das celebridades, a regra da lei das regras pessoais, a consciência dos sentimentos, as opiniões racionais dos sentimentos, o respeito por si mesmo do orgulho, o risco calculado da impulsividade, a competição honrada da ambição desmedida, a colaboração em equipa do individualismo egoísta A justiça é a virtude da responsabilidade e da equidade. No fundo, é ser capaz de dar a cada um aquilo que lhe pertence e aquilo que lhe é devido. A justiça compreende várias qualidades e exige a presença de várias condições: compreender e respeitar os direitos dos outros; hábito de cumprir as nossas obrigações; obrigação de procurar fazer o melhor que nos for possível; respeito pela autoridade

legítima; saber viver com as consequências das nossas acções e erros; hábito de honrar as nossas promessas e compromissos; hábito de evitar a intromissão em assuntos alheios; dar aos outros o benefício da dúvida e respeitar o direito à presunção de inocência. A coragem é a virtude da fortaleza. Ser corajoso exige que se aguente e pressupõe que se seja persistente. É ser capaz de reagir às adversidades e não desistir mesmo quando tudo parece perdido. Não é o mesmo que temeridade. A coragem pressupõe determinadas qualidades e exige a presença de algumas condições: habilidade para ultrapassar as dificuldades; hábito de ultrapassar o medo e a ansiedade através da acção correcta; confiança na capacidade para resolver problemas; determinação para ultrapassar as derrotas. A temperança é a virtude do autodomínio. Exige ser capaz de escolher e de fazer nas proporções certas, evitando os excessos e os defeitos. Implica ser capaz de optar pelo justo meio. Pressupõe determinadas qualidades e exige a presença de algumas condições: capacidade para dizer não quando é preciso dizer não; hábito de esperar pelas recompensas e de ser capaz de as merecer; capacidade para usufruir dos prazeres (comida, bebida e sexo) com moderação; ser capaz de pedir desculpa quando se comete um erro ou uma ofensa; hábito de usar as boas maneiras; capacidade para se preocupar com a dignidade e as necessidades dos que nos rodeiam. As quatro virtudes cardinais são autênticas lições de vida. A sua posse e o seu uso são condição essencial para se levar uma vida boa e digna. Sem a presença e o uso das quatro virtudes cardinais não se pode aspirar a uma vida feliz. Bibliografia Marques, R. (2000). O Livro das Virtudes de Sempre. Porto: Edições Asa (Edição brasileira, na Editora Landy e edição em castelhano na Editora Desclée)

Marques, R. (2002). Breve História da Ética Ocidental. Lisboa: Plátano Edições