V Reunião de Antropologia do Mercosul GT26 - Os direitos dos mais ou menos humanos Florianópolis, 30 de novembro a 03 de dezembro de 2003 Restaurante, Hotel e outros direitos dos trabalhadores: o caso dos programas de ação social no Rio de Janeiro Antonádia Borges (PPGAS Museu Nacional/ UFRJ) Parte da antropologia urbana desenrola-se em ambientes sociais povoados por indivíduos que recebem assistência estatal. Mesmo que o objeto específico de nossas etnografias não seja propriamente esse, invariavelmente acompanhamos o envolvimento nativo com tais questões. Principalmente através dos objetos distribuídos (desde pão e leite até lotes de terra) percebemos as relações de troca com agentes e órgãos dos governos que pontuam o cotidiano de moradores de bairros populares, de vilas e favelas. Em parte a caracterização desses grupos como pobres se deve a essas relações com o Estado: The poor, as a sociological category, are not those who suffer specific deficiencies and deprivations, but those who receive assistance or should receive it according to social norms... what makes one poor is not the lack of means. The poor person, sociologically speaking, is the individual who receives assistance because of this lack of means (Simmel, 1971: 178). À luz de trabalhos anteriores, de pesquisas de colegas e de meu próprio envolvimento etnográfico, passei a perceber essa região social em que se relacionam os agentes de governo e a população assistida como um importante universo para análise antropológica. Com o objetivo de compartilhar certas inquietações de uma pesquisa ainda em fase preliminar, tecerei neste momento algumas considerações sobre possíveis sentidos para essa profusão de espaços de assistência social. Na presente comunicação trago à tona, o caso dos indivíduos que fazem uso de equipamentos instalados pelo governo do Rio de Janeiro na Estação de Trem Dom Pedro II, vulga Central do Brasil, localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro. Como as pessoas não vivem, mas apenas circulam por esse lugar, a qualidade da assistência social ali prestada é de ordem distinta daquela oferecida em seus locais de moradia. Dos diversos órgãos públicos instalados nesse espaço destacam-se aqueles administrados pelo governo estadual: o posto de atendimento Rio Simples (ligado à emissão de documentos de forma dita desburocratizada 1 ), o Restaurante e o Hotel Popular (onde, recentemente, começou a funcionar um salão de beleza popular). O caso do Restaurante e, em especial, do Hotel oferecem uma intrigante questão para pensarmo s as relações de reciprocidade que, como procuramos mostrar em outro 1 Peirano (1 986) iniciou as reflexões antropológicas, aprofundadas posteriormente (2001), sobre as relações entre o Estado e a população expressa nos valores atribuídos aos documentos, dentre os quais destaca-se o atributo burocrático, negado ou enfatizado.
trabalho (Borges, 2003), fazem viva a política e o Estado, tanto aos olhos da população, quanto aos olhos dos agentes de governo que trabalham nesses domínios. O valor simbólico Durante o dia, nas dependências do Hotel, funciona uma escola de estética e uma escola de hotelaria, ambas sustentadas por uma fundação estadual que ministra cursos profissionalizantes para estudantes de escolas públicas (FAETEC). Os alunos do primeiro curso aprendem um ofício (corte de cabelo, manicure, etc) ao passo que suas aulas práticas se desenvolvem como serviço à população. Da mesma forma, os alunos da escola de hotelaria aprendem sua profissão (camareira, gerente, etc) preparando o hotel para receber a centena de hóspedes que pernoitam no local diariamente. Tanto os clientes da escola/salão de beleza, como do hotel devem pagar R$ 1,00 (um Real) por esses serviços que lhes são prestados. A pesquisa que iniciamos tem como foco de análise essa política de assistência social representada por tal conjunto de objetos ofertados pelo governo estadual à população pelo valor simbólico de R$ 1,00 (um Real). O caráter sui generis desse caso reside no fato de esses projetos gestados no âmbito das políticas públicas de assistência social só se efetivarem como dádiva estatal na medida em que a população local desembolse R 1,00 (um Real) para receber um desses benefícios. O Hotel e o Restaurante Popular, ao lado de outros projetos (como o café da manhã a 35 centavos nas gares dos trens ou os medicamentos a um R$ 1,00 vendidos na farmácia popular de Niterói a pessoas idosas), são vistos como obra e graça (tanto pelos beneficiários, quanto por funcionários que trabalham nesses locais) do governador Garotinho ou da governadora Rosinha 2 - em parte por essa forma de ação assistencial governamental datar realmente dos dois últimos governos, capitaneados pelo casal de políticos. Esse caso oferece desafios fundamentais (I) à expansão e renovação dos conceitos e teorias antropológicas acerca das relações de reciprocidade, bem como (II) à compreensão das formas como o poder do Estado se realiza, isto é, se concretiza como ação e presença efetiva na vida das pessoas. Pessoas ou população que, quando em relação concreta com os agentes do Estado, tocam e trocam objetos que são conceitos, isto é, símbolos 3, do que poderíamos acertadamente nomear como política. Nosso trabalho de campo sugere que esse valor simbólico na dupla acepção do termo é um ícone que nos remete à qualidade (firstness 4 ) de trabalhador do sujeito beneficiário. A identidade ou qualidade do trabalhador nesse caso se dá menos por referência à prática de um ofício regular, de baixa remuneração, mas pela possibilidade de pagar pelo que recebe e não simplesmente de ganhar algo sem poder dar nada em troca (qual uma esmola). Não uma possibilidade de pagar porque se tem dinheiro (afinal, mendigos também têm dinheiro), mas porque esse dinheiro foi ganho com o suor do rosto. O cansaço de quem mora longe pode ser dessa forma, com o repouso no Hotel, 2 Um ponto importante a indicar como possível problema de pesquisa é o fato de ambos atualmente estarem filiados ao PMDB, mesmo partido de Joaquim Roriz, governador do Distrito Federal, onde foi realizada a pesquisa anterior (Borges, 2003) que serve como parâmetro para esse estudo. 3 A genuine symbol is a symbol that has a general meaning. (Peirce, 1998: 275) 4 Category the First is the Idea of that which is such as it is regardless of anything else. That is to say, it is Quality of Feeling (Peirce, 1998: 160). 2
apaziguado. Afinal, o Hotel só admite como hóspedes pessoas que comprovem com documentos sua residência longínqua (no estado do Rio de Janeiro) 5. Dessa primeira problematização analítica deriva uma oposição, em termos nativos, entre dois alvos das políticas públicas assistenciais: os pobres e os trabalhadores. Acreditamos, preliminarmente, que essa distinção esteja relacionada a uma ética promotora dos direitos e responsabilidades ensejadas pela labuta, pelo trabalho e que destina somente comida aos considerados pobres (Neves, 2001). Sendo atendido por trabalhadores O caso em questão oferece ainda um desafio à compreensão das políticas de assistência social como formas recorrentes de exercícios populistas ou clientelistas de poder político local. Afinal, se o pagamento encerra a relação de reciprocidade; se ao quitar uma dívida coloca-se um fim à troca, qual então o sentido desse valor (um Real) nesse contexto? Em que medida esse tipo de relação entre o governo e a população beneficiária oferece substância empírica para a expansão do escopo analítico da antropologia da política consagrada à reflexão dos fenômenos sociais referidos como clientelistas? 6. Ao que tudo indica esses fenômenos seriam melhor compreendidos como formas diversas de ação em busca de significação social e, conseqüentemente, de poder (isto tanto por parte das pessoas do governo, quanto por parte das pessoas atendidas). O caminhar da pesquisa tem nos conduzido a pensar no grupo de pessoas que servem no Hotel (desde os seguranças que ficam na portaria, às assistentes sociais que fazem o cadastramento dos hóspedes, estagiários e outros funcionários envolvidos com a vida noturna do hotel) como um tipo especial de trabalhador, que enfatizam sua identidade trabalhadora. Eles se dizem funcionários públicos, embora não concursados e, alguns, acreditam que sua tarefa esteja relacionada a procedimentos próprios de quem tem um emprego na política ou seja, suas atribuições não terminam com o horário cumprido; é preciso, lhes é exigido, um envolvimento constante com atividades e eventos promovidos pela Secretaria de Ação Social em que objetos de vários tipos são trocados com a população (e.g. a distribuição inaugural da sopa da cidadania a qual todos os funcionários são aconselhados a comparecer). Em suma, todos trabalham muito. Alçados gradualmente ao patamar de direitos (refeição no restaurante, pernoite no hotel popular, café da manhã nas estações, etc), além de figurarem cotidianamente na mídia (Champagne, 1996), como vemos na Central do Brasil, esses objetos mobilizam amplos setores da burocracia estatal em vários níveis. Tais objetos de que falamos não podem ser pensados como meras coisas e, sim, vistos, pensados e compreendidos como símbolos que se referem a um modo de vida, a um hábito particular. Na medida em que orientam e são orientados pelas razões de agir 5 Quem vive na cidade do Rio de Janeiro ou migrantes de outros lugares não são aceitos no Hotel. 6 Algumas características da antropologia como disciplina se devem aos estudos dedicados à compreensão da alteridade política (Goldman e Palmeira, 1996). A preocupação com sociedades distantes, subjgadas colonialmente, foi se voltando gradativamente para a desnaturalização dos sistemas e valores políticos ocidentais (Schmidt, 1997). Essa marcha do olhar antropológico para sua própria sociedade teve como estação intermediária fenômenos mediterrâneos, localizados espacialmente à porta da Europa (Gellner, 1986). Essa descoberta do clientelismo forjou um modelo de análise cuja eficácia reside na necessária comparação da política do outro com um ideal civilizado de política a política como deve ser. Para uma crítica à naturalização desses esquemas e categorias ver, entre outros, Silverman (1986) e Cabral (1989). 3
desses indivíduos, devemos compreender esses objetos como rituais ou como amuletos sociais que as pessoas carregam consigo (como os cartões dos benefícios, por exemplo), que devem ser sempre renovados (por isso as filas, os cadastramentos e recadastramentos, etc) - para que seja mantida acesa a própria crença nesses projetos que, simbolizando os próprios modos de vida daquelas pessoas e as intenções de seus governantes, simbolizam toda aquela coletividade (Mauss, 1979). A partir da observação etnográfica das relações mantidas com e através desses objetos torna-se possível compreender mudanças nos sistemas classificatórios e nos sentidos da heterogeneidade e hierarquia que marcam essas formas de assistência. Os diversos objetos trocados, as diferentes políticas públicas são desse modo pensadas como conceitos, isto é, como símbolos do tipo de coesão de uma certa coletividade. Conclusões Preliminares Por ora, nossas observações bastante preliminares nos levam a crer que há ao menos um outro sentido possível para a miríade de projetos sociais capitaneados pelo governo. A profusão de objetos ofertados pelo governo estadual carioca encontra-se, no momento, enfrentando a correnteza de idéias defensoras de um sistema único de assistência social (e.g. o cartão da bolsa família do governo federal). Por um lado, bastante peculiar, essa assistência especializada e segmentada aos pobres como praticada no Rio de Janeiro, aos lhes agraciar com bens específicos, instaura a heterogeneidade, a diferença no seio da população assistida. A idéia de um cidadão geral, em abstrato, perde força vis-à-vis um trabalhador que mora longe e precisa de um lugar para dormir: não em uma hospedaria qualquer, mas um hotel. Os críticos do Hotel Popular argumentam ferozmente contra essa pulverização dos recursos materiais e simbólicos do governo em ações que, de seu ponto de vista seriam insignificantes por atenderem poucas pessoas diariamente (menos de duas centenas). Acredito, no entanto, que o objetivo desse conjunto sempre crescente de projetos e ações assistenciais não é somente beneficiar as carências específicas dos cidadãos ou trabalhadores. O Hotel Popular serve também para acolher como funcionário alguém que merece ser destacado da massa de empregados na política. Ser indicado para um cargo comissionado no Hotel é considerado mais prestigioso que conseguir um posto em um albergue, por exemplo. Entendo que essa profusão de organismos seja um retrato da hierarquia que ordena o sem número de indivíduos que trabalham como apoiadores políticos de Rosinha e Garotinho e que, por terem méritos diferenciados, são recompensados com empregos em instituições que têm prestígio distinto. Nesses locais o tipo de engajamento pessoal no trabalho parece corresponder, por sua vez, a um tipo de relação especial com os beneficiários de tais programas. Por sua posição extraordinária aos funcionários do Hotel caberiam os poucos e educados hóspedes trabalhadores que pagam pelo benefício. Na opinião de quem trabalha no Hotel, para frisar essa distinção, aos funcionários do Restaurante estaria imposto um contato diário com pessoas pobres, sem modos, que comem como bichos. Como se descrevessem uma estrutura piramidal, que quanto mais na base, mais se lidaria com um universo escatológico, alguns funcionários do Hotel que subiram na hierarquia, sequer querem lembrar dos dias em que trabalharam nos dantescos albergues, onde qualquer um dorme de graça. Ao que tudo indica, o mapa dos organismos de assistência oferece um bom modelo da organização social das relações 4
políticas que sustentam parte dessa forma viva do Estado que são os governos em sua presença diária na vida das pessoas. 5