A teoria da relação na filosofia de Tomás de Aquino e seus pressupostos filosóficos

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Programa de Pós Graduação Lógica e Metafísica - PPGLM Seminário de Pesquisa dos Alunos de Mestrado - 2011.2 A teoria da relação na filosofia de Tomás de Aquino e seus pressupostos filosóficos Thales Bittencourt A relação, enquanto objeto de estudo, foi de grande interesse para muitos pensadores medievais, principalmente por ser um dos principais fundamentos nas explicações teológicas de alguns elementos da doutrina cristã, como a criação e a encarnação. A doutrina da Trindade, talvez o exemplo mais notável, foi desde Agostinho explicada através das relações que as três pessoas da Trindade mantêm entre si. Dado, portanto, o lugar central que esta noção ocupa nos sistemas teológicos ensinados pelos medievais, vários pensadores ocuparam-se em estudá-la de modo particularmente profundo. Estes pensadores, entretanto, freqüentemente discordavam na interpretação de pontos fundamentais sobre o tema, especialmente no que diz respeito ao estatuto ontológico das relações: seriam as relações puramente um produto da atividade intelectual humana -- como pensavam Guilherme de Ockham e Pedro Auréolo -- ou possuiriam elas alguma realidade extra-mental -- como ensinavam Henrique de Gand e Duns Scotus? É a relação uma realidade da natureza, ou apenas da razão? Tomás de Aquino, ao tratar da questão sobre a possibilidade de atribuir a Deus nomes que indicam relação com as criaturas 1, percebe a necessidade de aprofundar-se sobre questões filosóficas a respeito do tema, levando em 1 Esta questão é tratada em diversos textos de Tomás, como nas Sentenças e na Suma Contra os Gentios. A doutrina de Tomás permanece fundamentalmente a mesma através dos diferentes momentos em sua obra. Tomaremos por base o artigo 7 da questão 13 da primeira parte da Suma Teológica, por julgarmos que ali a formulação e exposição da questão é, de certa forma, mais didática. 1

consideração as principais posições que chegaram até ele, originadas na tradição platônica e cristã, em comentadores de Aristóteles (cristãos e islâmicos) ou na obra mesma do Filósofo. O próprio Tomás julga necessário notar que alguns ensinaram que a relação não é uma realidade da natureza, mas só da razão. Não sabemos, porém, se estes alguns aos quais Tomás refere-se correspondem diretamente a certos autores ou escolas filosóficas. O não-realismo com respeito à relação aparece, talvez pela primeira vez, com os estóicos. O argumento usado por eles seria o de que algo que existe realmente só pode ser modificado se for realmente afetado; ora, os relativos podem ser modificados sem serem realmente afetados; logo, eles não existem realmente. Se um pedaço de madeira de um metro for comparado a outro do mesmo tamanho, ele é considerado igual. Se comparado a outro de dois metros, ele é considerado desigual, embora não tenha acontecido com ele nenhuma mudança real. Portanto, o mesmo objeto sustentaria relações mutuamente incompatíveis, o que só não seria absurdo caso fosse aceita a não-realidade da relação. É possível, no entanto, que Tomás estivesse referindo-se a teólogos islâmicos que defendiam a posição anti-realista em respeito à relação, como, por exemplo, Fakhr al-din al-razi, que negava a objetividade das relações argumentando que a tal hipótese seguir-se-ia uma inevitável regressão ao infinito: se houvesse um acidente relacional real, este teria que existir em uma substância; ora, seria necessário que houvesse um acidente que indicasse relação entre o primeiro acidente relacional e a substância, e este, por sua vez, deveria também existir na substância, e assim sucessivamente. Outro destes teólogos islâmicos poderia ser Averróis, que sustentava que esta categoria [a da relação] é algo que a alma introduz nas coisas existentes. Se não houvesse alma, não também haveria relações 2, embora, de fato, a opinião de Averróis sobre este assunto não seja muito clara, pois também 2 AVERRÓIS, Die Epitome der Metaphysik des Averroes. Leiden, E.J. Brill: 1924. p. 70. Apud WEINBERG, Abstraction, Relation, and Induction. Madison, University of Wiscounsin Press: 1965. 2

parece ser possível encontrar na obra deste filósofo passagens que justifiquem uma posição favorável ao realismo relacional. Um último filósofo que podemos mencionar é Gilberto Porretano, cuja opinião Tomás de Aquino parece ter considerado diretamente: Nesta matéria dizem ter errado Gilberto Porretano [...]. Ensinava ele que as relações em Deus são acrescentadas ou de proveniência extrínseca. [...] Mas Gilberto Porretano considerou as relações somente do primeiro modo [segundo a razão, e não segundo o ser]. 3 Esta disputa certamente não é tão simples como pode parecer à primeira vista. Mais do que simplesmente a coerência de dogmas religiosos, a discussão filosófica sobre o tema envolve a correta interpretação e aplicação dos princípios de um sistema amplamente estudado e discutido nos séculos da Escolástica medieval: o sistema aristotélico. Os medievais encontraram na filosofia aristotélica um terreno fértil para a teorização da relação enquanto importante elemento para a interpretação da realidade. É evidente que o próprio Aristóteles considerou em toda a sua obra a relação com um elevado grau de cuidado filosófico. Um dos mais importantes textos do Filósofo nos quais figura a relação como objeto de estudo, e o único a tratá-la de maneira sistemática, não é, porém, uma das grandes obras redescobertas no Ocidente a partir do século treze, mas sim as Categorias, um pequeno tratado da juventude de Aristóteles, um dos poucos textos integrais do filósofo disponíveis durante toda a Idade Média. A relação na teoria aristotélica das categorias A noção de categoria aparece em várias outras obras de Aristóteles, desde a Física até a Ética, mas é nas Categorias que tal noção é apresentada como o tema central da obra. Como apenas o fato de Aristóteles ter incluído entre as dez categorias a relação parece já ser de grande importância para a compreensão da doutrina do filósofo sobre o tema, importa-nos compreender a exata extensão e significado da noção de categoria. 3 Suma Teológica I, q. 28, a. 2 3

Parece ser consideravelmente evidente que, sendo predicados generalíssimos, as categorias (kategoriai) signifiquem uma certa predicação. A primeira dificuldade com a qual o leitor pode deparar-se ao estudar as Categorias é, porém, a de determinar a que objeto esta predicação se aplica. Tendo, no início do tratado, apresentado uma classificação técnica sobre o que se diz das coisas segundo a relação entre seus nomes, Aristóteles parece ter indicado que sua obra irá tratar de nomes e não das coisas em si mesmas 4 : as Categorias seriam então um tratado de filosofia da linguagem ou de lógica, e a predicação que representam, uma classificação de termos que serviria ao conhecimento de uma conexão entre nomes e, portanto, da proposição e do raciocínio; uma categoria seria um atributo generalíssimo que se aplicaria aos nomes e pertenceria à ordem da linguagem e do entendimento, e não necessariamente à ordem da natureza. De fato, a organização tradicional das obras de Aristóteles considera o Órganon como o conjunto dos textos lógicos, figurando as Categorias, o Da Interpretação e os Analíticos como estudos sistemáticos do termo, do juízo e do silogismo, respectivamente. Certamente, não há duvidas de que não faltam aparentes argumentos textuais que dêem crédito a tal interpretação. Na exposição das dez categorias, por exemplo, Aristóteles as apresenta como dizíveis (legomena) 5, ou seja, aquilo que das coisas pode-se dizer. Ora, segundo o próprio Aristóteles, no De Interpretatione, o que se diz de uma coisa é o verbo 6. E ainda, o que Aristóteles indica ser significado por estes dizíveis são as coisas ditas sem cópula, como homem e corre, contrapondo-as às coisas ditas com ligação, como homem corre 7. É justo, portanto, parecer-nos que o filósofo trata aqui de uma categorização de termos, em contraste com proposições e segundo classes de significado. É plausível, entretanto, também interpretar a teoria das categorias como um esquema de classificação do real, que tem a intenção de ordenar a natureza e 4 Cf. Categorias 1 [1a1-15]: Chamam-se homônimas as coisas que só têm o nome em comum (...). Chamam-se sinônimas as coisas que têm o nome em comum e em que a definição do ser que corresponde ao nome é a mesma. (...) Chamam-se parônimas as coisas que recebem o seu nome de alguma outra coisa, com uma diferença de terminação (...). 5 Categorias IV. 6 De Interpretatione III. 7 Cf. Categorias I. 4

organizar também os entes em diferentes tipos. Isto se evidencia em muitas passagens das Categorias; nos Pre-Predicamenta, a primeira parte da obra segundo a divisão latina, Aristóteles introduz uma divisão dos entes (ta onta) segundo dois princípios: o de ser dito de algo, e o de estar em algo. É com base nestes princípios que Aristóteles é capaz de formular sua conhecida divisão das coisas em quatro tipos gerais: Das coisas que existem, [1] umas são ditas de algum sujeito, mas não existem em nenhum sujeito. (...) [2] Outras existem em um sujeito, mas não são ditas de nenhum sujeito (...). [3] Outras são ditas de um sujeito e existem em um sujeito. (...) [4] Outras ainda nem existem em um sujeito, nem são sitas de um sujeito. 8 Justamente não ser dito de algo nem estar em algo é o que define a substância primeira (prote ousia), os indivíduos particulares, como este homem. Fica claro aqui que Aristóteles emprega o pronome este para indicar que se trata de um ente real, que existe na natureza, e não de um nome. Sobre a substância, o filósofo afirma ainda que, de fato, todas as outras coisas ou são ditas destas como sujeitos ou estão nestes sujeitos; de maneira que, se não existissem as substâncias primeiras, era impossível existir qualquer outra coisa 9, afirmação que denuncia um compromisso claramente ontológico. Observamos, portanto, que Aristóteles trata já nas Categorias também de princípios ontológicos caros a sua filosofia. É certo que as Categorias não são um tratado extensivo e exclusivo de ontologia ou metafísica, mas parece ser necessário admitir que, para Aristóteles -- e para muitos pensadores antigos e medievais --, há, pelo menos como pressuposto, uma correlação, um certo paralelismo, entre linguagem, pensamento e realidade. Desse modo, a noção de categoria deve de ser, em alguma extensão, considerada para além de seu significado menos radical, de ser um elenco de modos de predicação de termos, e tomada em um sentido mais forte -- e certamente filosoficamente mais comprometedor: o de classes generalíssimas de entes, ou ainda, de diversos modos de ser. As categorias seriam os gêneros mais gerais do ente e, 8 Categorias 2 [1a20-1b9]. 9 Categorias 5 [2b4-6]. 5

portanto, o que Aristóteles parece ter descoberto é que é característica do real obedecer a uma categorização. Tal teoria é, certamente, radical e comprometedora. Assumindo este sentido mais forte de categoria, nos é necessário defender que a relação, pelo menos neste texto de Aristóteles, deve ser considerada como algum tipo de realidade extra-mental. Justamente, a realidade que Aristóteles confere à relação é a de ser um acidente e, portanto, deve ser compreendida como inerente a uma substância particular. Ao contrário do que pode nos parecer intuitivamente quando pensamos em relações, e de modo bastante diverso de concepções caras à filosofia contemporânea sobre as relações 10, Aristóteles não considera a relação como algo que se posiciona entre dois entes, mas sim como uma característica acidental de um ente, inerente a este ente e que, de alguma forma, aponta em direção a um outro. Por esta razão, Aristóteles prefere referir-se às relações como em direção a algo -- pros ti, no original grego, ou ad aliquid, conforme foi utilizado em latim pelos medievais. O desafio dos pensadores medievais, no início de toda a consideração teórica da relação, é interpretar corretamente o que significa, no sistema aristotélico, este em direção a algo e de que tipo de realidade ontológica é possível conferir a ele. O próprio Aristóteles considerou tal empresa difícil ou importante o bastante para dedicar um capítulo inteiro das Categorias a esta tarefa. Importa-nos, portanto, analisar como estas páginas do texto aristotélico foram usualmente recebidas e interpretadas no período medieval da filosofia. Duas definições de relação no capítulo 7 das Categorias Aristóteles, no início do capítulo sétimo das Categorias, apresenta uma definição preliminar de relação que vai, nas páginas seguintes, ser analisada: 10 Segundo Hood, compreender relações como diádicas é fundamental para a lógica moderna da relação. Isto talvez seja devido ao uso das lógicas de primeira ordem e das teorias dos conjuntos na discussão das relações. A autora cita De Morgan, Frege, Pierce, Russel e Whitehead como adeptos desta visão. Cf. HOOD, Pamela M. Aristotle on the Category of Relation. Lanham: University Press of America, 2004. pp. 1-4. 6

Chamam-se relativos 11 todas aquelas coisas que são ditas ser o que são de, ou do que, outras coisas, ou de alguma outra maneira em relação a outra coisa. Por exemplo, o maior é dito o que ele é do que outra coisa (pois é dito maior do que alguma coisa); e o dobro é dito o que ele é de outra coisa (pois é dito o dobro de alguma coisa); e do mesmo modo com todas as outras coisas deste tipo. 12 De acordo com esta definição, cuja primeira formulação é atribuída pelos medievais a Platão 13, as relações são coisas ditas de algo em certo sentido. Esta definição, portanto, identifica as relações com os predicados através dos quais elas são significadas. Tais predicados, no contexto medieval, são referidos como termos relativos, termos cuja predicação requer uma comparação com algo diferente do sujeito do qual são predicados. Por este motivo, maior deve ser classificado como um termo relativo, já que para a correta compreensão da predicação, é necessário comparar o sujeito predicado a algum outro objeto. Nós não dizemos apenas que Símias é maior, mas sim que ele é maior do que Sócrates. Podemos traduzir esta noção da seguinte forma: um predicado P é relativo quando uma predicação do tipo isto é P nos aparece como incompleta, exigindo ser na verdade representada por uma predicação do tipo isto é P de (ou do que) outra coisa. Desta forma, podemos concluir que a definição platônica caracteriza uma relação como aquilo que é significado por um termo relativo. Esta definição, embora bastante abrangente, é em última instância considerada insuficiente por Aristóteles, pois, após ter analisado várias características particulares das relações, como a reciprocidade e a simultaneidade, o filósofo considera que, em alguns casos, ela nos leva a considerar como relativas certas partes de substâncias que, em algum 11 Todas as traduções a que temos acesso traduzem o tá prós ti de Aristóteles por coisas relativas. O termo, que literalmente significa coisas em direção a algo, foi traduzido pelos medievais ora por ad aliquid, uma tradução literal, ou por relationes, devido ao fato de Aristóteles utilizá-lo como substantivo. 12 Categorias VII 6a36-6b. As citações das Categorias são retiradas da seguinte edição: ARISTÓTELES, Categorias. Trad. Ricardo Santos. Porto: Porto Editora, 1995. 13 Cf. BROWER, Jeffrey. Abelard s Theory of Relations. In The Review of Metaphysics 51, 1998. p. 7. Segundo Brower, esta afirmação remonta a Simplício (c. 490-560), que por sua vez dá crédito a Boeto (c. 75-10 a.c.) e cita O Sofista 255d e República 438a7-b1. Esta atribuição teria tornado-se lugar comum entre os pensadores medievais através de Boécio, no seu comentário às Categorias. 7

sentido, são também ditas de algo, como a mão ou a cabeça são ditas de um homem, o que, para Aristóteles, é inaceitável 14. Se, então, a definição que foi dada dos relativos é suficiente, solucionar o problema de saber se nenhuma substância é chamada um relativo é ou extremamente difícil ou impossível. Para resolver este problema, Aristóteles julga necessário abandonar a primeira definição e oferece uma outra. Segundo Weinberg 15, Aristóteles oferece esta segunda definição por razões não totalmente claras. Consideramos, por outro lado, que as razões de Aristóteles são claras o bastante: Aristóteles compreendeu que o simples fato de A ser melhor considerado em relação B, não faz de A algo fundamentalmente relativo. Se Aristóteles considerou a relação, assim como as outras categorias, do modo como defendemos acima, ou seja, como diferentes modos de ser, é necessário que sua preocupação seja por conceber uma definição que diz respeito ao modo de ser específico da relação. Esta nova consideração da relação aparece em 8a31-35: Mas se ela não é suficiente e os relativos são aquelas coisas para as quais ser é o mesmo que ser de algum modo em relação a alguma coisa, então talvez algumas respostas podem ser encontradas. A definição anterior aplica-se a todos os relativos, mas não é isso o serem ditos aquilo que são de, ou do que, alguma outra coisa que faz deles relativos. 16 Esta definição, que foi considerada pelos medievais como a propriamente aristotélica, nos parece ser plenamente categorial, ao contrário da primeira. É por ter considerado, nesta segunda definição, o ser de algo enquanto relativo, é que Aristóteles foi capaz de entender a relação em sua relevância ontológica e, por isso, incluir a relação entre as dez categorias. A utilização da palavra ser (einai) parece ser a mais importante diferença entre a 14 Nas Categorias, Aristóteles parece afirmar que, em certo sentido, as partes da substância também possuem a propriedade de não poder estar em algo de modo acidental. De fato, é possível compreender que Aristóteles, em alguns momentos do texto, considera as partes das substâncias como substâncias elas mesmas. Em 8a18-21, por exemplo, o filósofo cita mãos e pés como exemplos de substâncias primeiras. Porém, em obras posteriores, particularmente em Metafísica VII 16, Aristóteles claramente exclui a possibilidade das partes dos seres vivos serem substâncias. 15 Ibid. p. 72. 16 Categorias VII 8a29-35. A tradução foi em certos pontos adaptada de acordo com a tradução de Ackril (1963). 8

primeira e a segunda definições: enquanto o critério da primeira é uma mera distinção lingüística (o que é dito de), na segunda passa a ser uma distinção real (o que é em relação a). É evidente que tudo aquilo cujo ser é ser relacionado a algo pode também ser dito de algo, mas não é a propriedade de ser dito relativo que faz algo ser, de fato, relativo. O contraste entre as duas definições oferecidas por Aristóteles foi evidenciado na distinção medieval entre relações segundo a natureza ou o ser (secundum esse) e relações meramente segundo a linguagem (secundum dici), como o próprio Tomás de Aquino distingue: Certos nomes relativos são impostos para exprimirem as relações (habitudines relativas) em si mesmas, como Senhor e servo, pai e filho, e outros; estes se chamam relativos quanto ao ser. Outros, porém, são impostos para exprimirem coisas a que certas relações são consecutivas, como motor e móvel, chefe e chefiado (caput e capitatum) e semelhantes, que se chamam relativos quanto à apelação. 17 Os termos que exprimem relações secundum dici indicam por si mesmos primeiramente, portanto, não uma relação, mas coisas a que se seguem certas relações. De fato, motor significa em primeiro lugar o sujeito de uma ação; ora, segue-se à constatação de uma ação, uma certa referência ao objeto desta, e, por isso, podemos dizer que motor também exprime, em segundo lugar, uma relação. Por outro lado, há termos que significam em primeiro lugar uma relação. O termo pai, por exemplo, indica primeiramente a relação de paternidade que um indivíduo mantém com seu filho, de tal modo que, se nos for permitido pressupor um paralelismo entre significado e realidade, podemos dizemos que o ser do relativo pai é ser propriamente uma relação, o que parece não acontecer no caso de móvel, cujo ser parece pertencer a uma outra categoria. Apesar de os medievais, e em especial Tomás de Aquino, aceitarem esta distinção entre relações secundum esse e relações secundum dici, alguns exemplos parecem provocar desacordo entre eles. É o caso do conhecimento ou da sensação, pois, apesar de serem claramente considerados termos relativos, já que o significado da predicação isto é conhecimento ou 17 Suma Teológica I, q.13, a.7, ad 1. 9

sensação é melhor representado por isto é conhecimento ou sensação de tal objeto, não fica claro se devemos considerá-los como relações genuínas (secundum esse) ou apenas como coisas a que alguma relação se segue (secundum dici). No final do capítulo 7 da obra, Aristóteles aponta um critério puramente epistemológico que parece servir para resolver este problema: É evidente, portanto, que alguém que conheça de modo definido um certo relativo terá necessariamente de também conhecer de modo definido aquilo em relação ao qual ele é dito. Mas a respeito da cabeça, da mão e de cada uma destas substâncias, é possível saber de modo definido o que elas são, sem ser necessário conhecer aquilo em relação ao qual são ditas. Pois não é necessário saber de modo definido de quem é a cabeça ou de quem é a mão. Portanto, estas não serão relativos. 18 Segundo este critério, em uma relação que envolve dois termos, a definição do primeiro como relativo requer a atestação da dependência do conhecimento do segundo termo da relação para a correta compreensão do primeiro. Este critério talvez não seja claro o suficiente para ser facilmente entendido, e certamente não foi considerado definitivo o bastante para resolver os casos mais problemáticos, como o do conhecimento, que foi acima mencionado. O debate sobre estes exemplos continua na filosofia medieval. Relações reais e de razão A distinção entre relações secundum dici e relações secundum esse não resolve, portanto, o debate sobre a existência real das relações, pois esta distinção não pode ser confundida com uma outra: a entre relações reais e relação de razão. Tomás de Aquino parece ter evitado esta confusão, pois em vários textos utiliza as diferentes distinções com significados diversos entre si. É possível encontrar na Suma Teológica 19 a posição de Tomás delineada de forma resumida, onde são definidas as distinções formais entre as relações reais e as de razão. Tomás de Aquino considera que há relações puramente abstratas, produtos da faculdade intelectual humana, mas também considera ser necessário admitir que há relações reais, realidades da natureza e não 18 Categorias 7, 8b13-20. 19 I, q.13, a.7 10

apenas da mente. A formulação tomista, que pressupõe a tese da inerência, conforme abordada acima, admite a existência de três casos: i) Há relações em que ambos os termos são relacionados mutuamente apenas pela razão. Tais coisas são consideradas relacionadas apenas pelo modo que pensamos sobre elas. Por exemplo, quando dizemos que uma coisa é igual a ela mesma (Sócrates é Sócrates), estamos apenas pensando em uma coisa como se fosse duas e relacionando estas duas coisas. O mesmo ocorre quando relacionamos alguma coisa com o nada; neste caso, estamos pensando no não-ser como se fosse algo. Um outro exemplo é quando relacionamos entidades lógicas, como o gênero e a espécie. ii) Há relações que são reais com respeito a ambos os termos, como quando a relação depende de algo que está realmente em ambos. Estas são exemplificadas pelas relações de quantidade: grande e pequeno, dobro e metade, já que a quantidade está nos dois termos. O mesmo se dá nas relações que envolvem um agente e um passivo, como movente e móvel, pai e filho, e etc. iii) Finalmente, há relações as quais estão realmente em um termo e no outro são apenas de razão. Isto acontece quando os termos da relação são de diferentes ordens. Os sentidos estão realmente relacionados com as coisas sensíveis e o cognoscente está relacionado com as coisas cognoscitíveis, mas a percepção e o intelecto são de uma ordem diferente da dos entes materiais. Por isso, o contrário não é verdadeiro: as coisas sensíveis não estão realmente relacionadas com os sentidos; da mesma forma. as coisas que podem ser conhecidas não se relacionam realmente com o intelecto. Portanto, nestes casos temos uma relação que é real em um termo, mas meramente de razão em outro. É evidente, portanto, que Tomás considera a existência real das relações enquanto entidades acidentais inerentes aos sujeitos relacionados. Isto, porém, talvez seja pouco disputado no debate medieval sobre o tema. Entretanto, se são poucos os pensadores medievais que consideram as relações como puramente um produto da atividade intelectual, são, porém, 11

facilmente encontrados dentre os escolásticos aqueles que, apesar de concederem alguma realidade às relações, as consideram idênticas ao seu fundamento, ou seja, a relação não seria uma entidade realmente distinta dos atributos acidentais relacionados. É possível exemplificar dizendo que uma relação de igualdade entre indivíduos de mesma estatura, reduz-se, segundo esta posição, às particulares estaturas de cada um dos indivíduos. De certa forma, a relação são as próprias quantidades. Esta posição encontra na Física de Aristóteles um marcante ponto de apoio. A distinção real entre relação e fundamento No livro V da Física de Aristóteles, encontramos um texto chave para a compreensão do debate medieval e dos principais problemas discutidos na Idade Média: Com respeito à substância, não há movimento, pois a substância não possui contrários entre as coisas que são. Da mesma forma, não há movimento com respeito à relação, pois pode acontecer que quando um correlativo mude, pode-se verdadeiramente dizer que não há mudança alguma no outro. Assim acontece quando o movimento é acidental. 20 É possível interpretar que Aristóteles ensina aqui que A pode passar a relacionar-se a B sem que para isso ocorra alguma mudança em A, mas apenas em B. A conclusão a que alguns comentadores chegam a partir desta passagem é que, se A não muda, mas passa a relacionar-se realmente a B, então A não ganha nenhuma entidade realmente distinta. Se, por exemplo, Símias, crescendo, passa a ter a estatura de Sócrates, Sócrates então passa a relacionar-se a Símias por uma relação de igualdade, sem que tenha ocorrido em Sócrates nenhuma mudança. Ora, o fundamento de tal relação são as respectivas alturas de Símias e Sócrates, acidentes reais da categoria quantidade. Alguns escolásticos, contra aqueles que defendem que uma relação real é uma entidade realmente distinta de seus fundamentos, argumentam que é possível conceber a relação Sócrates é da mesma altura que Símias, apenas como um modo particular de referir-se às alturas de Sócrates e Símias. Ou seja, há uma relação real de igualdade, porém esta só 20 ARISTÓTELES. Física V, 2 [225b11-13]. 12

está presente nos objetos correlacionados nos respectivos acidentes que fundamentam tal relação. Para entender a resposta de Tomás de Aquino a esta tese, é necessário conhecer um dos princípios fundamentais de sua concepção das categorias aristotélicas: Dois elementos deverão ser levados em conta em qualquer um dos nove gêneros de acidentes. Um é o ser conveniente a cada gênero, enquanto acidente. E isso é, em geral, em todos, ser inerente a um sujeito, pois o ser do acidente consiste na inerência. O outro elemento a considerar é a noção (ratio) própria de cada um dos referidos gêneros. 21 Seguindo Aristóteles, Tomás defende que a substância, sendo o que existe primariamente, existe por si mesma, pois a forma substancial atualiza a matéria, concedendo a ela o primeiro ato de ser. Por outro lado, uma forma acidental não existe por si, mas na e pela substância, atualizando alguma potência secundária desta. Um acidente, portanto, recebe da substância seu ato de ser. De acordo com Tomás, a substância é a causa de todos os seus acidentes. Desta forma, o ser de um acidente é estar em um sujeito, pois o ser do acidente consiste na inerência 22. Além do ser acidental, comum a todas as nove categorias acidentais, Tomás aponta que nós podemos considerar o que distingue uma categoria da outra, ou seja, a ratio de cada categoria em particular. O termo ratio em Tomás de Aquino é utilizado diversas vezes com significado distintos. Seguindo o sentido definido por Tomás no Comentário às Sentenças, compreendemos por ratio, nesta passagem específica, o significado de algo conforme conhecido pelo intelecto 23. Entre os acidentes ditos absolutos, como a quantidade e a qualidade, e o acidente da relação, há, porém, uma particular diferença no que diz respeito à ratio própria a cada um deles: Ora, nos outros gêneros que não a relação, como a quantidade e a qualidade, a noção (ratio) própria do gênero reside na sua 21 Suma Teológica I, q. 28, a. 2. 22 Cf. O Ente e a Essência, 6. Tomás explica sua noção de inerência nas Sentenças: se A inere em B, então i) A é dependente de B; ii) A e B formam uma composição; e iii) algo está posto em B. Cf. Sentenças I, 8, q.4, a.3. 23 Cf. Sentenças I, 2, q.1, a.3. 13

relação com o sujeito; pois a quantidade se chama medida e a qualidade disposição da substância. Ao contrário, a essência (ratio) própria da relação não consiste em referir-se ao ser em que está, mas a algo de exterior. 24 A categoria quantidade é a medida da substância na qual inere. Da mesma forma, a qualidade é a disposição da substância na qual inere. A propriedade categorial da relação é, porém, estar direcionado a algo extrínseco à substância na qual a relação inere. Assim, utilizando uma distinção entre ser e significado é possível conceber uma resposta à posição segundo a qual não há distinção real entre a relação e seu fundamento, pois, se assim o fosse, não só o ser acidental da relação e do acidente que é seu fundamento deveriam ser idênticos, mas também a ratio própria destes dois acidentes. Consideremos novamente o exemplo utilizado acima: Símias cresce e se torna da mesma estatura que Sócrates, que passar a relacionar-se com Símias numa relação de igualdade entre as respectivas alturas. Sócrates não muda, mas passa a relacionar-se. Uma posição radicalmente realista defenderia que Sócrates, de alguma forma, adquire um novo acidente inerente a si próprio e, portanto há mudança de fato em Sócrates. Determinar que tipo de mudança esta deveria ser pode, entretanto, provar ser um desafio para os adeptos desta posição. Mark Henninger, em sua obra Relations: Medieval Theories, defende, porém, que é possível para a teoria tomista conciliar estes dois fatos, o fato de Sócrates não sofrer nenhuma mudança e o de passar a relacionar-se, se considerarmos que algo só muda se houver uma mudança neste algo 25. Nesta interpretação, ao contrário da posição realista radical, o ser acidental de uma relação real é idêntico ao ser acidental de seu fundamento. A relação de igualdade entre Sócrates e Símias estaria, de alguma forma, já em Sócrates, pois há em Sócrates antes deste passar a relacionar-se uma das condições de possibilidade de uma relação real: seu ser acidental que é idêntico ao ser acidental de seu fundamento, a estatura de Sócrates. 24 Ibidem. 25 Cf. HENNINGER, Mark. Relations: Medieval Theories. Oxford: Clarendon Press, 1989. 14

Esta interpretação parece estar de fato em consonância com a posição de Tomás de Aquino, pelo que podemos considerar de seu comentário à Física de Aristóteles: E portanto deve ser dito que se alguém, através de uma mudança nele, torna-se igual a mim enquanto eu mesmo não mudo, esta igualdade estava anteriormente em mim de algum modo, como na raiz através da qual ela tem ser real. Pois uma vez que eu tenho tal quantidade, diz respeito a mim que eu serei igual em tamanho a todos aqueles que têm a mesma quantidade. Portanto, se alguém passa a ter aquela quantidade, aquela raiz comum da igualdade é determinada a ele. 26 Podemos certamente compreender esta raiz comum mencionada por Tomás de Aquino como o ser acidental da relação, idêntica ao ser acidental de seu fundamento, e a determinação que ocorre quando algo passa a relacionar-se como a ratio própria da relação. A tese de Henninger, portanto, parece estar em conformidade com a teoria de Tomás de Aquino: receber uma nova ratio, indicando uma relação baseada em uma propriedade inerente anteriormente, não deve ser considerado como uma mudança no sujeito, mas sim como uma ressignificação de sua propriedade com relação a algo. Conclusão Desta forma, a título de conclusão, podemos dizer que o estudo da categoria relação, do modo como foi praticado na filosofia medieval, deve partir de uma consistente interpretação da teoria aristotélica das categorias e tratar, a partir desta interpretação, dos problemas que dela vão surgindo. Apontamos aqui, ainda que por vezes apenas a título de menção, alguns deles: a) as categorias como predicados ontológicos; b) o ser, (einai) fundamental na definição de Aristóteles de relação; c) termos relativos e relações secundum dici; d) relações reais e de razão ; e) a distinção real entre a relação e seu fundamento. Este último problema nos parece revelar a principal contribuição de Tomás de Aquino para o estudo do tema. É possível interpretar que a posição de Tomás 26 In Physic. V, l. 3, n. 8. 15

de Aquino com respeito à categoria da relação é pautada por um realismo moderado, no qual figura a ratio, enquanto oposta ao ser, como um conceito chave. Enquanto confere à relação um estatuto ontológico próprio enquanto categoria, Tomás parece esclarecer também que a relação é um tipo especial de acidente que compartilha o ser acidental com o acidente o qual é o fundamento da relação. É certo que algumas dificuldades com respeito à relação ainda permanecem -- especialmente aquelas que dizem respeito ao conhecimento e a relação entre Deus e as criaturas --, e outras ainda podem surgem a partir desta interpretação. Em uma filosofia tão extensa e sistemática, certamente podemos encontrar razões contínuas e perenes para estudar de modo mais profundo um tema fundamental como a categoria relação. 16