SABERES, PRÁTICAS E CONTROLE DOS CORPOS: UMA ANÁLISE FEMINISTA DO JORNAL NEWS SELLER

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Transcrição:

493 SABERES, PRÁTICAS E CONTROLE DOS CORPOS: UMA ANÁLISE FEMINISTA DO JORNAL NEWS SELLER Clara Guimarães Santiago 1 Esta comunicação é um recorte da minha pesquisa de mestrado no programa de pós-graduação em ensino, história, filosofia da ciência e matemática na Universidade Federal do ABC, que é financiada pela FAPESP e intitulada de Mulher, ciência e tecnologia: uma analise feminista do jornal News Seller, ela diz respeito a um jornal que foi criado em 11 de maio de 1958 e que tinha um conteúdo voltado, inicialmente, para a região de Santo André-SP, mas que não demorou a cobrir a toda a região do ABC. Esta pesquisa é interdisciplinar e tenta dialogar com a epistemologia feminista, história das ciências e Michel Foucault, tem como objetivo analisar as matérias direcionadas ao público feminino entre os anos de 1960 a 1969. Durante um período inicial essas matérias foram, inicialmente, publicadas aleatoriamente no jornal, mas depois de 1964 foram criados locais específicos para ela, primeiro em uma coluna chamada Mulher e lar, depois no suplemento Entre nós... as mulheres, e por fim em um suplemento em forma de encarte chamado Ela. Nosso objetivo de pesquisa é compreender quais as relações entre gênero, ciência e tecnologia contidas nas matérias publicadas e direcionadas ao público feminino pelo jornal News Seller. E nossa hipótese de pesquisa é que em uma sociedade machista, em plena transformação tecnológica e autoritária politicamente, a divulgação do conhecimento científico para as mulheres foi domesticados. O autoritarismo político diz respeito ao golpe ocorrido em 31 de março de 1964, que instaura uma ditadura militar no Brasil, e que se estende para além do período final desta pesquisa. Por isso, temos como hipótese que esse discurso autoritário influenciou de alguma forma os discursos do jornal. 1 Mestranda em Ensino, História e Filosofia das Ciências e Matemática pela UFABC. Bolsista FAPESP. E-mail: <claragui@gmail.com>.

494 Esta comunicação trará um recorte entre os anos de 1964 e 1965, fazendo uma breve análise do período baseando-se na arqueologia do saber de Michel Foucault, apontando a primeira ruptura encontrada. Mas a pesquisa como um todo, se propõe também a realizar uma análise do uso da ciência nas matérias baseadas no entendimento de que a ciência pode ser utilizada como mecanismo de manutenção das verdades. 1. Epistemologia feminista Para Simone Schmidt (2004, p.17) o feminismo é múltiplo em si mesmo por atuar em diversos campos, nesse sentido, deve ser entendido como uma arena, depois, como um campo teórico, uma prática interpretativa e, por fim, como um lugar político. Sendo assim, devem ser problematizadas as relações entre teoria e prática que perfazem o feminismo em sua própria constituição. O problema da teoria e prática está atrelado a um entendimento de que a ciência é algo neutro, pois o feminismo, necessariamente, significa tomar um posicionamento. Guacira Lopes Louro (2003, p. 143) defende que a pesquisa feminista não é desinteressada, pois ela fala de algum lugar, nesse sentido, pesquisar sobre feminismo é assumir que não existe uma ciência neutra ou desinteressada. Dessa forma, a pesquisa feminista não objetiva só a introdução das mulheres nas ciências, mas questiona o modo tradicional de fazer ciência, propor novos modelos, mas, essencialmente, ter disposição epistemológica e política para rever a postura frente às pesquisas. É assumir a instabilidade no fazer científico, subverter matrizes de pensamento, acolher a fluidez, numa arena que tradicionalmente tentou estabelecer verdades duráveis. (Louro, 2003, p. 146). Nesse sentido, os desafios desse tipo de pesquisa são epistemológicos, pois referem-se a modos de conhecer, implicam discutir quem pode conhecer, que áreas ou domínios da vida podem ser objeto de conhecimento, que tipo de perguntas podem ser feitas. (Louro, 2003, p. 154). Esta é uma pesquisa feminista, portanto busca se posicionar politicamente e falar de um local específico.

495 2. Foucault Michelle Perrot (2005, p. 489-490) afirma que ao olhar para a obra de Michel Foucault de uma forma rápida, percebe-se uma certa ausência sobre as questões das mulheres ou de gênero. Entretanto, apesar disso, percebe-se que há um movimento crescente de pesquisas sobre mulheres que tem utilizado a obra do autor como referencial teórico. As maiores críticas que são feitas, nesse sentido, são em relação ao seu androcentrismo, mas isso não impede que a epistemologia feminista tenha se apropriado de suas teorias como referencial teórico, principalmente, com as seguintes características: Sobre o poder, o corpo sexual como alvo e veículo do biopoder, as estratégias de resistência ou as tecnologias de si. Todas aderem à sua crítica ao universalismo, e, a maior parte delas, à crítica ao existencialismo. Entretanto, a maioria hesita em segui-lo em sua crítica às identidades sexuais. (PERROT, 2005, p. 490) Segundo Margareth Rago (2011, p. 2) a crítica de algumas feministas as teorias de Michel Foucault se dão em parte pela falta de contato com toda extensão de sua obra, principalmente, a última fase. A historiadora aponta o uso das artes da existência, das técnicas de si e da parresia como um novo campo teórico para pesquisas históricas relacionadas com a temática feminista. No caso específico das artes da existência, Foucault entende como uma forma dos antigos gregos e romanos investirem na produção de subjetividade, era uma forma de equilíbrio entre a racionalidade e o lado emocional dos sujeitos, seria então, não se deixar escravizar pelo outro, um agir com autonomia. (Rago, 2011, p. 8) Sobre essas relações entre o feminismo e Foucault, podemos citar, por exemplo, o discurso médico (Nascimento da Clínica), pois na medicina, essa trajetória nos leva a manutenção do saber médico enquanto mecanismo disciplinar, pois caberia ao médico ter o domínio do controle disciplinar, e ao hospital a função de assegurar o esquadrinhamento, a vigilância, a disciplinarização. (Foucault, 2007, p.108). Sendo assim, a institucionalização da medicina se mostrou como um segundo meio ou estratégia de buscas para legitimação das relações de poder, por outro lado também é uma prática considerada essencial ao fazer científico, pois é por meio dela que o cientista pode divulgar suas pesquisas à sociedade. E é por meio dessa divulgação

496 que os indivíduos conhecem o que é certo e errado, e o que é saudável para o seu corpo. É através da prática médica e do controle do corpo que os discursos machistas (Rago, 2001, Swan, 2001) são perpetuados também, sejam na definição do que é saudável ao corpo feminino, nas práticas obstetrícias e em alguns casos na normalização da violência. O corpo masculino é considerado o modelo universal de humano, e o da mulher o outro. O problema dessa forma de lidar com o corpo e a saúde está na naturalização dos discursos, esse conflito pode se tornar ainda maior se levarmos em consideração que a constituição do gênero não é binária. (Aquino, 2006) Além das relações entre as ciências médicas e o controle dos corpos, o poder também utiliza como mecanismo de controle social o direito. Foucault (2007, p.179) desenha um triângulo para entrelaçar as relações do poder, que seriam: poder, direito e verdade. Em nossa sociedade essas relações funcionam com base nos discursos verdadeiros, pois não existe para Foucault poder sem verdade: buscamos, produzimos, confessamos e a procuramos em todos os locais ou circunstâncias. Produzimos verdade com o mesmo ímpeto que produzimos riquezas, pois verdade e riqueza estão relacionadas e totalmente, entrelaçadas. Pois também somos submetidos à verdade no âmbito da legislação, pois é por meio das leis que se define o que é verdade, e assim, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo tipo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo elementos específicos de poder. (Foucault, 2007, p.180) O poder é algo que circula, que não pode ser encontrado em um algum local específico, pois se constitui em forma de rede e está em todos os locais. Ele não se aplica aos indivíduos, passa por eles. Por isso não podemos dizer que está na mão de algumas pessoas ou em um só local, pois não se trata de uma coisa, de algo palpável. O poder circula por meio dos indivíduos que ele mesmo criou, seus corpos são a massa que o alimenta. (Foucault, 2007, p.183-184)

497 2.1. Arqueologia do saber A história para Foucault (2009) é feita por meio de rupturas, limiares e descontinuidades. É a história que observa o que está escrito no documento e o que também não está escrito, que se debruça sobre objetos mais individualizados. Uma vez suspensa essas formas imediatas de continuidade, todo um domínio encontra-se, de fato, liberado. Trata-se de um domínio imenso, mas que se pode definir: é constituído pelo conjunto de todos os enunciados efetivos (quer tenham sido falados ou escritos), em sua dispersão de acontecimentos e na instância própria de cada um. (FOUCAULT, 2009, p. 30) Assim, não se trata de buscar somente os enunciados de uma língua, a descrição dos discursos, todas as suas falas, mas de buscar os silêncios também, o invisível que perpassa pelas linhas escritas, o não dito. (Foucault, 2009, p. 31) Essa descontinuidade liberta as formas fixas, os modelos que estavam focados no amplo, mas que ao mesmo tempo limitava os discursos, nesse contexto, os enunciados têm um papel fundamental. (Foucault, 2009, p. 90) Muitas vezes o conceito de enunciado é confundido com o que a lógica chama de proposição ou a gramática entende como frase, mas o enunciado está, além disso, pode-se, por exemplo, ter dois enunciados juntos com sentidos opostos; um enunciado por ser uma frase, mas também pode ser uma palavra. (Foucault, 2009, p. 91) A arqueologia se pretende a definir os discursos em sua especificidade e trata-os como uma espécie de monumentos, pois não interessa a ela entendê-los como documentos ou signos de outras coisas. Ela busca a definição e as normas das práticas discursivas em obras que são individuais, entretanto, não se propõe a reconstruir as coisas, não tenta repetir e reproduzir as palavras e discursos, pelo contrário, é a descrição sistemática de um discurso-objeto. (Foucault, 2009, p.158) Ela diz respeito à forma com que os elementos se relacionam internamente, que em conjunto possuem uma função. Esse espaço feito de organizações se baseia em rupturas, são organizações descontínuas. (Foucault, 2007b, p. 298) A história tradicional se organiza por meio de cronologias que trabalhava em um espaço fixo para todas as coisas, sejam identidades ou discursos qualitativos, o objetivo era sempre delimitar espaços já pré-determinados. Foucault (2007b, p. 299) diz que os

498 princípios que organizam os espaços na arqueologia são: analogia e sucessão. Do século XIX em diante, as práticas mudam, já não são mais cronológicas, passam a ser trabalhadas por meio de analogias. Se refletirmos sobre esse contexto dentro das ciências humanas, Foucault (2007b, p. 475) diz: O modo de ser do homem, tal como se constituiu no pensamento moderno, permite-lhe desempenhar dois papéis: está, ao mesmo tempo no fundamento de todas as positividades, e presente, de uma forma que não se pode sequer dizer privilegiada, no elemento das coisas empíricas. Esse fato e não se trata aí da essência em geral do homem, mas pura e simplesmente desse a priori histórico que, desde o século XIX, serve de solo quase evidente ao nosso pensamento esse fato é, sem dúvida, decisivo para o estatuto a ser dado às ciências humanas, a esse corpo que conhecimentos (...) que toma por objeto o homem no que ele tem de empírico. As ciências humanas não tiveram um período precursor ou uma tradição que tivesse delimita, anteriormente, seu objeto de pesquisa. Esse entendimento que se constituiu de homem ocidental não existia em períodos anteriores, pois essas ciências se deram por uma necessidade de dar conta de questões que surgiram, as análises passaram a ser sobre o homem e suas relações sociais, sua vida em sociedade, seja individualmente ou em grupo. Os argumentos deixaram de ser opiniões e passam a ser um acontecimento na ordem do saber. (Foucault, 2007b, p. 476-477) Neste contexto, a história não é um campo fixo, datado e que pode ser reduzido a formas, conteúdos e normas. O fazer histórico não é algo isento, isolado e objetivo, nem que deve se restringir ao documento como única fonte de conhecimento. A história é feita subjetividade, pois a subjetividade dos sujeitos estudados ou do historiador deve ser levada em consideração. (Rago & Gimenes, 2000, p.9-10) 3. A ruptura Foucault (2009b. p.31) aponta a necessidade de observar a história por meio das rupturas, por isso, gostaríamos de destrinchar a ruptura ocorrida em 1964. O ano de 1964 inicia com matérias direcionadas para mulheres publicadas no 1º caderno do News Seller, mas que estão situadas em páginas separadas, pois não existe uma ligação

499 organizacional entre elas, a não ser falarem sobre mulheres, geralmente, sobre comportamento. Podemos citar como exemplo a matéria intitulada Comportamento da mulher na rua ou em local público, foi publicada em 02 de fevereiro de 1964, no 1º caderno, na página 13. Que diz respeito a uma matéria editorial não assinada que tem como temática o comportamento feminino, e defini algumas regras que devem ser seguidas para que as mulheres não fiquem mal faladas. (News Seller, 02/02/1964, p.13) O texto inicia com a afirmação que não cai bem à mulher que ela discuta com o companheiro em locais públicos, assim como não deve ter qualquer tipo de exibicionismo onde haja aglomeração, sendo assim, não pode passar batom em público, cruzar as pernas com cigarro na boca, no cinema empurrar os demais, procurando abrir caminho para a sala de espetáculo, ou no restaurante chamar o garçom. E finaliza chegando à conclusão de que seguindo essas regras ela agirá como deve, colocando-se em seu devido lugar. (News Seller, 02/02/1964, p.13) (Fonte: News Seller, 02/02/1964, 1º Caderno, p.13) Esse modelo segue até o dia 05 de abril de 1964, quando inicia a coluna Mulher e lar, mas apesar das matérias serem inseridas em um mesmo local, elas não mudam o discurso e nem o formato. Por isso, entendemos que esse é um período de transição que iniciou junto com a ditadura militar e que caminha para uma ruptura em agosto de 1964. O golpe militar foi dado em 31 de março de 1964, e na semana seguinte a coluna inicia. Selecionamos a seguinte matéria Desvendar os "mistérios da atração física" sempre foi preocupação dos cientistas para ilustrar que o formato do discurso não mudou, a única coisa, nesse momento, que mudou foi o agrupamento das matérias que passaram a integrar uma única página. (News Seller, 05/04/2964, p. 4)

500 A matéria que selecionamos é uma das inaugurais da coluna Mulher e lar, que teve início no dia 05 de abril de 1964, que é a primeira edição do jornal após o golpe. A matéria intitulada Desvendar os "mistérios da atração física" sempre foi preocupação dos cientistas, está na página 4 e é assinada por Danielle Paul da News Exchange, especial para o News Seller. (News Seller, 05/04/2964, p. 4) O News Exchange era um correspondente do News Seller, que publicava matérias que tinham sido publicadas, anteriormente, no jornal americano. A matéria sobre os mistérios da atração física diz que numerosos cientistas e estudiosos leigos já tentaram descobrir os motivos pelo qual as mulheres e homens se sentem atraídos por determinadas pessoas e não por outras, e questiona: por que uma mulher olha pra um homem e sente uma paixão avassaladora por um homens específico? Segundo o News Seller, dois cientistas americanos fizeram pesquisas quantitativas para tentar desvendar o mistério, e chegaram à conclusão de que as mulheres se preocupam mais do que os homens em parecer atraentes e os homens prestam atenção primeiro ao olhar, mas que este é algo que surge naturalmente, então às mulheres não precisariam se preocupar. (News Seller, 05/04/2964, p. 4) Como podemos perceber o formato e o discurso não mudou, o fato de ser assinada também não é novidade, já que a maioria até essa época era editorial, mas quando eram do News Exchange, algumas eram assinadas. No nosso entendimento não foi uma coincidência a criação do Mulher e lar ter ocorrido logo após o golpe, pois esse período nos parece uma transição para a ruptura que acontece alguns meses depois, dando a mulher um local específico do jornal. A ruptura ocorre em 23 de agosto de 1964 com a criação do suplemento feminino, Entre nós... as mulheres, que é assinado pela Jornalista Eulina Cavalcante, que é mulher do comandante Sidney de Oliveira. O discurso muda neste momento, pois antes se tratava de matérias informativas, com um texto mais distanciado, fazendo, muitas vezes, alusão a pesquisas científicas. As mulheres recebiam informações diversas, mas em um discurso que é visivelmente de autoridade, entretanto, com o Entre nós... as mulheres o tom muda, é como se elas estivessem recebendo conselhos de uma amiga com mais conhecimento ; esse discurso

501 não deixa de ser de autoridade, mas é uma autoridade suavizada. Um elemento que pode corroborar com a nossa interpretação é o próprio nome do suplemento, que cria um discurso de papo entre amigas, pois tudo estaria entre nós. Referências bibliográficas AQUINO, Estela M L. Gênero e saúde: perfil e tendências da produção científica no Brasil. Revista de Saúde Pública, n. 40 (número especial), p. 121-132, 2006. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2007.. Arqueologia do saber. São Paulo: Forense universitária, 2009.. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins fontes, 2007b LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pósestruturalista. Petrópolis:Vozes, 2003, 6ed. PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: EDUSC, 2005. RAGO, Maria Margareth. Feminizar é preciso: Por uma cultura filógina. São Paulo em Perspectiva, v.15 n.3, p. 53-66, 2001. RAGO, Margareth, GIMENES, Renato Aloizio de Oliveira. (orgs). Narrar o passado, repensar a história. Campinas: Ifch/Unicamp, 2000. SCHMIDT, S. P. Como e por que somos feministas. Estudos Feministas, 12(Número Especial.), 17-22, 2004. SWAIN, Tânia Navarro. Feminismo e recortes do tempo presente: Mulheres em revistas femininas. São Paulo em Perspectiva, 15(3), 67-81, 2001.