CURSO DE PRODUÇÃO DE TEXTOS PARA O CACD Profa. Vivian Müller CONCURSO DE ADMISSÃO À CARREIRA DE DIPLOMATA FORMATAÇÃO DA PROVA DISCURSIVA DE LÍNGUA PORTUGUESA 2010 Di Cavalcanti, Baile Popular Eis o aparente paradoxo de Emiliano Di Cavalcanti: este grande individualista é um pintor social, este boêmio dispersivo é um trabalhador obstinado, este copiador de histórias pitorescas é um espírito sério capaz de disciplina. O homem Di Cavalcanti é rico em surpresas e imprevistos, solidário com outros no sofrimento e na alegria. Sabe que o prazer sempre foi um elemento importante na criação da obra de arte. Sabe que o prazer encerra também conflitos, abismos, contradições. Daí o aspecto triste, às vezes mesmo sinistro, de certos personagens festeiros de seus quadros. Todos nós sabemos que o substrato da alegria brasileira é carregado de tristeza. Em alguns dos melhores momentos de sua carreira Di Cavalcanti atingiu pela força da verdade plástica o cerne da nossa própria verdade metafísica na unificação de seus contrastes: de fato a gente brasileira foi ali recriada em síntese erudita...". Murilo Mendes 1949
PARTE I - REDAÇÃO Leia os trechos abaixo, que têm caráter meramente motivador, e, com base nos fatores históricos, socioeconômicos, políticos e culturais que deram origem à atual configuração da sociedade brasileira, disserte sobre a projeção internacional do Brasil. Extensão: de 600 a 650 palavras (valor: 60 pontos) Sou antes um espectador do meu século do que do meu país: a peça é para mim a civilização, e se está representando em todos os teatros da humanidade, ligados hoje pelo telégrafo. Uma afeição maior, um interesse mais próximo, uma ligação mais íntima, faz com que a cena, quando se passa no Brasil, tenha para mim importância especial, mas isto não se confunde com a pura emoção intelectual [...]. A abolição no Brasil me interessou mais do que todos os outros fatos de que fui contemporâneo; a expulsão do imperador me abalou mais profundamente do que todas as quedas de tronos ou catástrofes nacionais que acompanhei de longe [...]. Em tudo isto, porém, há muito pouca política; [...] o que há é o drama humano universal de que falei, transportado para nossa terra. Joaquim Nabuco. Minha Formação. 10.ª ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1981, p. 41. A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente, muitas vezes, desfavorável e hostil, somos, ainda hoje, uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e outra paisagem. Assim, antes de perguntar até que ponto poderá alcançar bom êxito a tentativa, caberia averiguar até onde temos podido representar aquelas formas de convívio, instituições e ideias de que somos herdeiros. 2 Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. 26.ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 31. Nenhum país escapa a seu destino e, feliz ou infelizmente, o Brasil está condenado à grandeza. A ela condenado por vários motivos, por sua extensão territorial, por sua massa demográfica, por sua composição étnica, pelo seu ordenamento socioeconômico e, sobretudo, por sua incontida vontade de progresso e desenvolvimento. [...] Ou aceitamos nosso destino como um país grande, livre e generoso, sem ressentimentos e sem preconceitos, ou corremos o risco de permanecer à margem da história, como povo e como nacionalidade. [...] Em uma palavra: a política internacional do Brasil tem como objetivo primordial a neutralização de todos os fatores externos que possam contribuir para limitar o seu poder nacional. Rodrigo Amado (Org.). Araújo Castro. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982, p. 212 (com adaptações). Pelas suas dimensões territoriais e de população, pelos recursos naturais de que dispõe e pelo impulso de sua história, nosso país está destinado a uma crescente projeção no mundo. Não nos podemos esquivar deste mandato, que não deliberamos, mas que nos é postulado pelo que somos e pelo que podemos ser. Devemos preparar-nos para assumi-lo, procurando expressar essa projeção segundo critérios pautados pela tolerância, pelo espírito de conciliação, pelo respeito aos direitos alheios e pela conformidade com as tradições e a cultura [...]. Azeredo da Silveira. Discurso pronunciado por ocasião do Dia do Diplomata, em 20/4/1977. In: Anuário do IRBr, 1977.
JOÃO PAULO MARAO (50,55/60) Em decorrência das especificidades históricas na formação da sociedade brasileira, o Brasil tornou-se importante nação nas relações internacionais contemporâneas. A transposição da cultura europeia para o território colonial e a formação social miscigenada originaram a característica brasileira de país universalista e diversificado. O processo de desenvolvimento de ideias autônomas acerca das idiossincrasias do Brasil permitiu a consolidação das instituições e da economia nacional, o que garante independência e respeito perante outros países. A universalidade da cultura brasileira é o aspecto subjetivo que confere imponência e aceitação do país no mundo atual. A sociedade brasileira formou-se por meio da miscigenação cultural e da adaptação da civilização europeia ao território nacional. Esse processo é compreendido, por muitos intelectuais do país, como criador de uma civilização brasileira. A sociedade constituída após a independência da nação resultou da combinação de ideias vindas da Europa e de influências inerentes à estrutura socioeconômica da colônia. As contradições decorrentes dessa organização social eram vistas, inicialmente, como problemáticas; no entanto, pensadores como Gilberto Freyre revelaram que a diversidade cultural e a adaptabilidade eram características que conferiam originalidade ao povo brasileiro. Joaquim Nabuco, em Minha Formação, revela o aspecto universal da sociedade brasileira apenas em momentos específicos da história do país. Essa perspectiva aponta para uma ideia eurocentrista de cultura. O Brasil, na ótica de Nabuco, estaria na periferia da civilização. Diferentemente desse pensamento, pode-se compreender que os valores europeus que se tornaram universais são também ideais humanitários e, por essa razão, foram apreendidos pela sociedade formada após a difusão dessas ideias dentro do país. Combinados os valores humanitários e a diversidade cultural brasileira, percebe-se que, a partir da década de 1920, surgiu um pensamento crítico autônomo brasileiro, que iniciou a projeção de um país destinado à grandeza. Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado, é importante exemplo do pensamento desenvolvimentista que possibilitaria a ascensão do Brasil como potência, quando fossem superados os entraves econômicos e a dependência internacional herdados do passado. A consolidação desse pensamento, na segunda metade do século XX, permitiu uma prática política voltada para o desenvolvimento econômico e o fortalecimento das instituições democráticas no país. Como resultado, o Brasil encontra-se capacitado para atuar globalmente com independência econômica. A característica universalista da sociedade brasileira proporciona uma participação autônoma e contributiva nos principais debates internacionais em temas que envolvem a humanidade como um todo. O país não enfrenta restrições de fundo ideológico em negociações com países de diversas índoles culturais, políticas ou religiosas. Da mesma maneira, não há, contra o Brasil, pressão causada pela dependência econômica internacional. Esses fatores são fundamentais para que o país tenha crescente participação nas relações internacionais, principalmente em temas humanitários, como meio ambiente, proliferação nuclear e direitos humanos. O reconhecimento do Brasil como nação livre de ideologias e de interesses imediatistas é consensual contemporaneamente, conforme exemplificam a atual controvérsia iraniana e o 3
problema humanitário no Haiti, situações em que o país se apresenta como principal interlocutor internacional. A projeção global do Brasil deve ser compreendida sob a perspectiva da universalidade da cultura brasileira. Desde a formação colonial, o país constituiu-se pela adaptação da cultura europeia e pelo desenvolvimento de meios autênticos de estrutura social. A cultura brasileira compreende os valores universais difundidos pela Europa e está aberta à diversidade cultural, que foi característica da formação do país. Dessa forma, ao atuar globalmente, o Brasil revela-se capacitado para ser reconhecido como nação respeitável por todos os países, sem rivalidades ou ideologias conflitantes com outros povos. Os aspectos do passado que eram vistos como entraves na formação do país, como a miscigenação e a dependência econômica, tornaram-se, no século XXI, as principais vantagens para a projeção do Brasil no mundo. 4
PARTE II EXERCÍCIO I Com base na leitura do trecho abaixo, discorra acerca do conceito de equilíbrio de antagonismos, sobretudo com referência à noção de diversidade cultural. Extensão: de 100 a 150 palavras (valor: 20 pontos) O que se sente em todo esse desadoro de antagonismos são as duas culturas, a europeia e a africana, a católica e a maometana, a dinâmica e a fatalista, encontrando-se no português, fazendo dele, de sua vida, de sua moral, de sua economia, de sua arte um regime de influências que se alternam, se equilibram ou se hostilizam. Tomando em conta tais antagonismos de cultura, a flexibilidade, a indecisão, o equilíbrio ou a desarmonia deles resultantes, é que bem se compreende o especialíssimo caráter que tomou a colonização do Brasil, a formação sui generis da sociedade brasileira, igualmente equilibrada nos seus começos e, ainda hoje, sobre antagonismos [...]. Considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade, [...] um processo de equilíbrio de antagonismos. Gilberto Freyre. Casa-Grande & Senzala. 13.ª ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1963, p. 72-3, 116 (com adaptações). 5
RICARDO FAGAN PASIANI (15,82/20) Em Casa Grande e Senzala, constata-se o equilíbrio de antagonismos na formação da sociedade brasileira desde os primórdios da colonização. Gilberto Freyre atenta para o momento inicial de surgimento da família patriarcal, em que se determinou a polarização de classes no âmbito da economia açucareira. Desde esse momento, embora senhores e escravos passassem a exercer papéis sociais opostos, haveria espaço para a interpenetração cultural entre eles. Dois processos pareciam ocorrer em paralelo no âmbito da sociedade patriarcal. De um lado, a referência cultural do senhor de engenho encontrava-se na Europa, especialmente em Portugal. De outro, os negros escravizados traziam da África cultura bastante rica e consolidada. Embora essa distinção fosse evidente, a convivência desses dois pólos sociais em um mesmo espaço impulsionava processo de miscigenação. O equilíbrio de antagonismos, que não se restringe à mera coexistência de culturas distintas em um mesmo ambiente, resultou na formação peculiar da sociedade brasileira. 6
PARTE II EXERCÍCIO II Interprete e comente o seguinte trecho do fragmento de texto abaixo: há casos em que a memória dos obséquios aflige, persegue e morde, como os mosquitos; mas não é regra. Extensão: de 100 a 150 palavras (valor: 20 pontos) Nenhum obséquio, por ínfimo que seja, esquece ao beneficiado. Há exceções. Também há casos em que a memória dos obséquios aflige, persegue e morde, como os mosquitos; mas não é regra. A regra é guardá-los na memória, como as jóias nos seus escrínios; comparação justa, porque o obséquio é muita vez alguma jóia, que o obsequiado esqueceu de restituir. Machado de Assis. Esaú e Jacó. Cap. LXXVI. In: Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. 7
GUSTAVO HEYSE MARCHETTI (17,11/20) Em sua fase realista, Machado de Assis escreveu contos e romances cuja característica marcante é a crítica de costumes. O escritor carioca fez uso da ironia, a fim de criticar a elite brasileira do final do século XIX. No trecho de Esaú e Jacó, o narrador, Aires, faz comentário acerca de prática bastante comum na sociedade brasileira da época, que é a troca de favores. O favor teve como origem a família patriarcal, cuja característica básica é o personalismo ibérico, nota Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil. A família patriarcal tornou-se o paradigma para grande parte das relações na sociedade brasileira, o que fez que o clientelismo, a proteção, a relação de compadrio e a troca de favores fossem considerados normais. Esperava-se que, quando se fizesse um favor, o favorecido retribuísse com outro obséquio. A necessidade de retribuição não atormentava aqueles indivíduos acostumados com a troca de favores. 8