sobre os povos indígenas no Brasil de hoje nos fez enveredar por um ASSIS DA COSTA OLIVEIRA 1 UFPA



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Transcrição:

LUCIANO, Gersem dos Santos. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: MEC/SECAD; LACED/Museu Nacional, 2006. 233p. (Coleção Educação Para Todos. Série Vias dos Saberes n. 1). ASSIS DA COSTA OLIVEIRA 1 UFPA Refletir sobre a obra O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje nos fez enveredar por um caminho metodológico que procura analisar o livro a partir do recorte de como o autor enxerga os problemas indígenas. De certo, a este referencial analítico adicionamos dois outros que servem de base para sua fundamentação: quem é o autor e em que contexto ele enxerga os problemas indígenas. Gersem dos Santos Luciano ou Gersem José dos Santos Luciano, conforme consta no seu currículo lattes 2 é índio Baniwa, graduado em filosofia pela Universidade Federal do Amazonas (1995), com mestrado na Universidade de Brasília (2006). Atualmente, também é doutorando em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. Ocupa o cargo de diretor-presidente do Centro Indígena de Estudos e Pesquisas CINEP e de representante indígena no Conselho Nacional de Educação, além de possuir uma larga experiência militante há mais de 22 anos. Portanto, trata-se de um Baniwa falando sobre os povos indígenas, logo, sobre si mesmo (2006, p. 15), como observa Antonio Carlos de Souza Lima no Prefácio do livro. Essa inovação ao menos em termos brasileiros representa algo que marca presença no seu texto, 1 Graduando em Direito na Universidade Federal do Pará, bolsista de iniciação científica do CNPq. E- mail: assisdco@yahoo.com.br. 2 Dado interessante no currículo lattes de Gersem Luciano é quanto aos idiomas que ele domina. Para especificar seu domínio de línguas indígenas teve que utilizar a opção outros (duas vezes) para, assim, incluí-las como parte de sua biografia acadêmica, o que reforça o fato de como a discriminação se reproduz nos mínimos detalhes.

187 na forma (com poucas citações, a maioria destas de dados oficiais) e no conteúdo. Acima de tudo, nas entrelinhas do discurso, deslocando o poder de quem fala para dentro (simbolicamente) de quem é falado, dando novo fôlego à afirmação de Manuela Carneiro da Cunha (1992) da participação histórica dos índios como construtores ativos das políticas indigenistas e indígenas ao longo dos séculos de colonização. Por outro lado, devemos contextualizar a época em que o livro foi escrito, seu momento histórico-cultural, por assim dizer. É certo que 2006 ano de publicação do livro carrega a bagagem de um recente passado de lutas, reconhecimentos e afirmações dos povos indígenas que repercutem na própria historicidade do autor, membro que é do movimento indígena. Gersem Luciano está, assim, situado numa época onde os valores democráticos e os direitos humanos cheiram só para usar uma expressão de Luis Alberto Warat (1997) a valorização e respeito da dignidade humana por meio de mudanças sociais. Mas que, paradoxalmente, continua imersa numa cultura de discriminação aos sujeitos etnicamente diferenciados e cuja atuação estatal se mantém majoritariamente embasada na ótica da tutela sobre os povos indígenas num nítido afronte a afirmação plena de sua identidade e capacidade (BECKHAUSEN, 2008, p. 1) garantidas pela norma constitucional. Talvez devido a esse paradoxo pós-moderno, o livro possui uma estrutura similar à das etnografias anteriores a década de 80, pois discute a questão indígena por diversos aspectos de sua organização social; todavia, procura fazer dessa estrutura, e da universalidade/unidade de seu discurso sobre os indígenas, um instrumento da estratégia política para afirmação de uma outra percepção para com os povos indígenas, é dizer, uma ressignificação do ser indígena pelas vias da cidadania, autonomia e autodeterminação conceitos que permeiam todo seu texto. Para tanto, este outro olhar, para Gersem Luciano, deve partir do próprio indígena a quem os séculos de colonização foram impingindo o medo ou a precaução de afirmarem quem são e lutarem pelos seus direitos. É, assim, um enxergar do problema indígena retornando, antes de tudo, ao indígena, como protagonista da transformação. Conforme ele expressa de forma contundente na Introdução:

188 [e]ste livro é uma tentativa de abordar questões que envolvem auto-identificação, auto-estima, autorepresentação e autoprojeção dos índios diante de si mesmos e da sociedade de uma maneira geral (LUCIANO, 2006, p. 19). Nesse plano, inicia o primeiro capítulo trabalhando a questão da identidade indígena, recuperando a histórica dualidade da percepção dos povos indígenas pela sociedade brasileira por um lado, a visão romântica do índio ingênuo, ligado eternamente à natureza, e, por outro, a visão diabólica (bárbara ou selvagem) do indígena, tendo-o por sujeito cruel, preguiçoso e/ou traiçoeiro. Em seguida, delimita a (nova) identidade gestada pelo próprio indígena: o orgulho identitário de ser índio, identidade política simbólica que articula, visibiliza e acentua as identidades étnicas de fato (LUCIANO, 2006, p. 40). O surgimento dessa (nova) auto-identidade indígena está imbricado na história de luta pelos direitos indígenas, conforme explica o autor na análise do movimento e das organizações indígenas no segundo capítulo. De fato, o surgimento do movimento indígena, na década de 70, e a difusão das organizações indígenas formais, servem de fundamentação para o fortalecimento político dos povos indígenas brasileiros. A repercussão do seu protagonismo na luta pelos direitos indígenas contribuiu decisivamente não só para o fortalecimento do orgulho de ser índio, mas também para a mudança na relação de poder existente entre povos indígenas e Estado brasileiro. Após a Constituição Federal de 1988 (período que denomina como indigenismo governamental contemporâneo ), essas lutas levaram à ampliação da relação do Estado com os povos indígenas,... a partir da criação de diversos órgãos em vários ministérios com atuação com os povos indígenas, quebrando a hegemonia da FUNAI (LUCIANO, 2006, p. 73), e, além disso, à superação formal da tutela dos povos indígenas por parte do Estado brasileiro, com o reconhecimento normativo da diversidade cultural e da organização política dos índios. Essa última reflexão norteia o terceiro capítulo do livro, no qual se discute cidadania, autonomia e autogestão indígena. A outorga da cidadania indígena pela Constituição Federal de 1988 significou, na teoria, a garantia de uma dupla cidadania indígena: etnia indígena e

189 brasileira. Tem-se, assim, uma cidadania diferenciada, cujo respeito às culturas indígenas, por um lado, e a garantia do acesso desses povos ao mundo global, por outro, exigem uma ressignificação prática da própria dimensão do que é ter cidadania a partir da perspectiva dos índios (LUCIANO, 2006, p. 87). Isso significa que Gersem Luciano enxerga tais problemáticas visando o uso estratégico (instrumental) da cidadania diferenciada para o reforço dos direitos e dos interesses específicos dos povos indígenas, no qual a garantia da autonomia e da autodeterminação são eixos de fundamental sustentação e estruturação dos direitos indígenas a terra/território, educação, saúde e economia. Autonomia que represente a distribuição de competências e a emancipação social, política e econômica; e autodeterminação que implique o respeito aos direitos indígenas, especialmente o reconhecimento dos seus territórios como espaços étnicos, visando o fortalecimento das comunidades indígenas,... o que acarreta necessariamente a representação e a participação política dos cidadãos indígenas no governo do Estado (LUCIANO, 2006, p. 94). Desse modo, nos quarto, quinto e sexto capítulos o autor trata da educação, saúde e economia indígena, respectivamente, nos marcos da lente tridimensional (cidadania, autonomia e autogestão) apontada acima. Quanto à educação indígena, Gersem Luciano distingue educação escolar indígena de educação indígena tradicional, ponderando que ambas são espaços de transmissão de conhecimentos ainda que a segunda tenha sido historicamente alijada em detrimento dos fins ideológicos incrustados na primeira: integração pela aculturação dos indígenas. Por isso mesmo, o atual aumento das escolas indígena e da escolarização em todos os níveis dos indígenas invocam reflexões e lutas pela qualidade dessa universalização que incide tanto no seu programa educacional objetivando inserir (e valorizar) saberes tradicionais indígenas, por meio de metodologias específicas de aprendizagem quanto na gestão escolar garantindo a autonomia dos projetos educacionais, escolares ou não, considerando as características e as necessidades definidas pelos povos indígenas. Ao tratar da saúde indígena, parte da significação de saúde e doença para os povos indígena, é dizer, como estados resultantes do

190 tipo de relação individual e coletiva que se estabelece com as demais pessoas e com a natureza (LUCIANO, 2006, p. 173). Avança, mostrando como a saúde indígena está em estado crônico, e como a política indigenista baseada em serviços de saúde prestados via convênios firmados com organizações não-governamentais, dentre as quais as organizações indígenas, tem criado conseqüências sociopolíticas nem sempre benéficas. Assim, a formação de quadros indígenas na área da saúde e a resolução do problema da terra concentração de indígenas em pequenos espaços são os desafios invocados por Gersem Luciano para a melhoria da gestão e condição da saúde indígena no Brasil. A economia indígena envolve questões relativas à subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico sustentável dos povos indígenas na perspectiva da autonomia econômica. Nessa questão, o autor evita referendar as classificações modernas que lhe são feitas subsistência, em vias de adaptação, preocupado em tratar essa diversidade a partir do que oferecem como possibilidades de soluções dos velhos e dos novos problemas, dentre os quais o da integração socioeconômica indígena, a qual, sendo vista pela ótica indígena, passa a ser desejada desde que ao seu modo e de acordo com o seu tempo (LUCIANO, 2006, p. 203), atestando uma irreversibilidade do contato com o mundo branco que obriga o repensar das condições de existência e de continuidade étnica, não para negá-las, mas para atualizá-las de acordo com desejos e vontades próprios (LUCIANO, 2006, p. 204). As relações de gênero merecem um capítulo à parte o sétimo no livro onde se discute a designação da matéria no universo indígena, criticando-a como uma intervenção ideológica do mundo branco; por outro lado, sua incorporação trouxe avanços na luta por políticas públicas setorizadas, ao mesmo tempo em que deflagrou problemas para com os modos de vida tradicionais, gerando conflitos em decorrência de disputas de poder entre organizações de mulheres indígenas e lideranças tradicionais. Para o autor, a possibilidade de equilíbrio das forças perpassa pela necessária relativização desses direitos, garantindo-os as mulheres pressupondo o pertencimento étnico diferenciado destas, e pela efetivação de alguns consensos políticos, como o incentivo à presença feminina nos espaços de participação no movimento indígena.

191 Por fim, o oitavo capítulo traz o sugestivo título de Contribuições dos povos indígenas ao Brasil e ao mundo. Para além da compreensão dessa contribuição, seja pela formação lingüística nacional ou pelas medicinas, culinárias e megadiversidade encontrada nas terras indígenas, a principal reflexão é sobre o futuro dos povos indígenas. Quanto a isso, o autor lança cinco propostas, numa perspectiva otimista de otimização da cidadania, autonomia e autodeterminação indígenas: a) construção de um novo projeto etnopolítico do movimento indígena brasileiro, contemplando uma ampla e plena participação das bases do movimento indígena (LUCIANO, 2006, p. 220); b) busca de formas de sustentabilidade socioeconômica dos povos indígenas em suas terras, assegurando a capacidade de autogestão territorial por meio da progressiva transformação das terras indígenas em Distritos Especiais Indígenas e, posteriormente, em Unidades Territoriais Autônomas; c) implementação de um programa permanente de capacitação política e técnica para os quadros indígenas; d) estabelecimento de um Parlamento Indígena; e, e) representação própria no Congresso Nacional. Em suma, essa é uma leitura branca (ou moreno cor de jambo, como diz minha mãe) de como o autor enxerga os problemas indígenas, a qual nos remete, decididamente, a como eu enxergo o que o autor enxerga. Acredito que as colocações do autor nos indicam uma politização da alteridade na sociedade brasileira atual. Essa alteridade vem encharcada pelo fomento ético a outras sensibilidades jurídicas que subsidiem a valorização da dignidade humana dos sujeitos etnicamente diferenciados. Referências bibliográficas BECKHAUSEN, Marcelo. Questões de cidadania e o diálogo entre o jurídico e a Antropologia: as conseqüências do reconhecimento da diversidade cultural. Porto Alegre: NACI/UFRGS, 2008. Disponível em: www.ufrgs.br/ppgas/nucleos/naci/documentos/humanas_beckhausen.pdf. Acesso em: 02 abr. 2008. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Introdução a uma História indígena. In:. (Org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 09-24.

192 LUCIANO, Gersem dos Santos. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: MEC/SECAD; LACED/Museu Nacional, 2006. 233p. (Coleção Educação Para Todos. Série Vias dos Saberes n. 1). Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001545/154565por.pdf. Acesso em: 26 out. 2008. WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao Direito III: o Direito não estudado pela teoria jurídica moderna. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997.