LETRAMENTO E EDUCAÇÃO NÃO-FORMAL: DESARMANDO AS ARMADILHAS DA EXCLUSÃO.

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Transcrição:

LETRAMENTO E EDUCAÇÃO NÃO-FORMAL: DESARMANDO AS ARMADILHAS DA EXCLUSÃO. Jailze de Oliveira Santos Universidade Federal de Pernambuco Premissas No ano de 1995 um grupo de especialistas educacionais, de todas as partes do mundo, reuniu-se, a pedido da UNESCO, para definir alguns pilares fundamentais para a educação do século XXI. Como resultado desta reflexão, foram concebidos como objetivos precípuos da educação: aprender a aprender; aprender a fazer; aprender a ser; aprender a conviver. 1 Passaram-se dez anos e estes pilares constituem ainda um verdadeiro desafio para nós educadores. As atuais Políticas Educacionais estão procurando responder a esta evocação do UNESCO. Os PCN s atuais são uma prova disto. Contudo, verificamos que os dois últimos pilares, aprender a ser e aprender a conviver é um desafio ainda mais longínquo. Ensinar a ser, a ser cidadãos ativos e participativos, que saibam conviver com as diversidades e adversidades, é uma tarefa muito difícil no mundo pósmoderno. A construção de uma sociedade democrática, mais justa e igualitária, ultrapassa a dimensão de ensinar a juntar letras e reproduzir sons compartimentados. É preciso considerar, que a aquisição lingüística, tem um significado social e político. A linguagem é vista assim, como potencial de envolvimento nas questões sociais e como alicerce de uma inserção cultural do homem, a fim de tornar-se crítico e historicamente situado. No mundo da informação, não basta mais se preocupar em saber ler e escrever. A sociedade atual exige um cidadão capaz de lidar com estas técnicas para comunicar-se, para relacionar-se com o outro em todas as práticas sociais que o mundo letrado demanda o que o torna visível como cidadão e inserido nos processos culturais. Aliás, a capacidade de se relacionar é o que nos torna pessoa e nos constitui sujeito da história. Soares afirma: Socialmente e culturalmente, a pessoa letrada já não é a mesma que era quando analfabeta ou iletrada, ela passa a ter uma outra condição social e cultural- não se trata propriamente de mudar de nível ou de classe social, cultural, mas de mudar seu lugar social, seu modo de viver na sociedade, sua inserção na cultura- sua relação com os outros, com o contexto, com os bens culturais torna-se diferente. (Soares, 2004, p. 37) 1 DELORS et al, la educacion encierra um tesoro. Informe a la UNESCO de la Comissión Internacional sobre la educación para el siglo XXI, presidida popr Jacques Delors. Santillana, Ediciones UNESCO, Madrid, 1996. 1

Progressivamente, a nossa Sociedade Brasileira vem valorizando a escrita e cada vez mais vem se constituindo, como uma sociedade grafocêntrica. Hoje, não é importante apenas aprender a codificar e decodificar símbolos; além disso, é preciso saber fazer uso dessas habilidades e veiculá-las como forma de manifestação de poder. O mundo exige dos indivíduos uma multiplicidade de habilidades de habilidades de leitura e escrita, para que se possa transitar em todas as práticas sociais em que o código escrito é o elemento preponderante da interação. Esta é uma necessidade dos nossos tempos. Os termos e conceitos utilizados pelos censos e entidades de avaliação educacional revelam uma crescente preocupação em distinguir os indivíduos capazes de utilizar a linguagem como prática social e aqueles que não o fazem. Soares ratifica esta mudança assim: Um fato que sinaliza bem esta mudança, embora de maneira tímida, é a alteração do critério do Censo para verificar o número de alfabetos e de analfabetos: durante muito tempo, considerava-se analfabeto o indivíduo incapaz de escrever o próprio nome; nas últimas décadas, é a resposta à pergunta sabe ler e escrever um bilhete simples? que define se o individuo é analfabeto ou alfabeto (2004, p. 21) A autora assevera que passamos da habilidade de apenas codificar o nome para um uso social da escrita e da leitura. E que esse fenômeno é um progresso. Os indivíduos pouco letrados procuram táticas para se inserirem em práticas de letramento. Tem-se já claro o fato de que muitas práticas orais (como práticas de leitura de cordel a voz alta) são subsídios para um posterior apoderamento das técnicas de leitura. 2 Viver num mundo letrado, imerso em um mundo onde o escrito estar em todos os lugares e em vários gêneros, faz crescer a familiaridade com a cultura escrita. O mundo não pára, está em processo de constantes transformações. Destarte surgem entidades não governamentais que cônscias da sua ação indispensável na sociedade contemporânea, procuram sanar, e/ou amenizar o hiato que se instaura entre cidadãos letrados e os não-letrados, numa tentativa de cobrir essa defasagem, conseqüência de uma escolarização falha, ou da falta dela. Normalmente são entidades com perfil ideológico bem definido. Trabalham com crianças e adolescentes das classes menos favorecidas e procuram meios para abolir os estereótipos do mundo em que vivem, onde as idéias das classes dominantes de poder tornam-se idéias de todas as classes sociais, tornando-se idéias dominantes (hegemonia). 2 Para um maior aprofundamento ver artigo de Ana Maria Galvão. Oralidade, memória e a mediação do outro: Práticas de letramento entre sujeitos com baixo níveis de escolaridade- O caso do cordel( 1930-1950). 2

Umas dessas Instituições é a Associação de Apoio à Criança e o Adolescente - AACA 3. Trata-se de uma ONG localizada na Ilha de Santa Terezinha, bairro de Santo Amaro, na cidade do Recife. Nasceu com o intuito de atender crianças e adolescentes no horário contrário à escola, a fim de que, as mesmas não ficassem na rua, pois a vida do bairro é marcada por muitos episódios de violência e por uma forte presença do tráfico de drogas. Constitui-se uma obra social dos Movimentos dos Focolares, que é um Movimento Eclesiástico Ecumênico, nascido na Itália, em 1943, que tem como objetivo contribuir na realização de um mundo mais unido. A AACA atende a 460 crianças e adolescentes desde os 04 anos de idade, num total de mais de 300 famílias. O projeto da AACA visa o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, resgatando os valores que os dignificam como seres humanos, assegurando os seus direitos fundamentais. Realiza atividades sócio-educativas, recreativas, esportivas, informática, teatro, artes plásticas entre outras. Procura desenvolver os conceitos de participação, integração, cidadania e solidariedade, contribuindo para a formação pessoal e comunitária. Atendendo ao seu público no horário oposto àquele escolar. É neste contexto que se enquadra o nosso projeto de pesquisa, cujo objetivo é investigar as práticas de letramento que a Associação de Apoio à Criança e ao Adolescente - AACA, uma instituição de educação não-formal, desenvolve no seu trabalho. Os objetivos da pesquisa se delimitam a compreender quais são estas práticas, como se desenrolam, quem são seus agentes e se efetivamente propiciam um maior sucesso no desenvolvimento das habilidades de linguagem, tão preocupante como forma de amenizar a crescente marginalização de grupos sociais. Pretendemos ainda observar/analisar se as práticas de ensino de escrita e leitura desenvolvidas na AACA levam em consideração o letramento das crianças participantes do projeto e se valorizam as práticas culturais da comunidade a que pertencem. Para realizar tais estudos, utilizaremos uma metodologia que permita descrever e entender os microcontextos em que se desenvolvem estas práticas de letramento, por isso, trabalhamos com uma pesquisa etnográfica, com uma abordagem qualitativa. A fundamentação teórica do trabalho gira em torno de autores que ressaltam a linguagem numa perspectiva social, principalmente teóricos que discorrem sobre o letramento. Ao privilegiar as dimensões do letramento e compreendendo que é preciso que haja condições para se promover o letramento, o presente artigo apresenta um recorte desta pesquisa maior e pretende elucidar as concepções de leitura e escrita subjacentes à prática educacional da AACA. 3 A partir deste ponto esta Instituição será citada com a sigla AACA. 3

E surge um novo fenômeno: o Letramento O fato de utilizar a palavra alfabeto ou analfabeto restringe este mundo (o da apropriação da linguagem), a uma concepção meramente mecânica. De fato o analfabeto era concebido como aquele incapaz de ser autônomo, aquele que não usufrui profundamente dos seus direitos, dada da limitação que possui (não saber ler nem escrever). Mas o termo letramento traz uma concepção mais ampla. Pode-se ter algum nível de letramento, mesmo que seja um analfabeto. Isto porque todos nós vivemos em um meio no qual a leitura e a escrita estão presentes sensivelmente e não podemos ficar à margem disto. Evidencia Soares: À medida que o analfabetismo vai sendo superado, que um número cada vez maior de pessoas aprende a ler e a escrever, e à medida que, concomitantemente, a sociedade vai se tornando cada vez mais centrada na escrita (cada vez mais grafocêntrica), um novo fenômeno se evidencia: não basta apenas aprender a ler e a escreve. As pessoas se alfabetizam, aprendem a ler e a escrever, mas não necessariamente incorporam a prática da leitura e da escrita, não necessariamente adquirem competências para usar a leitura e a escrita, para envolver-se com as práticas sociais da escrita (2004, p.45). Intrínseca à concepção de letramento está à capacidade de poder fazer uso dos diferentes tipos de produção escrita circundantes na nossa sociedade e poder utilizá-las para compreender, interpretar, criticar. Na perspectiva do letramento, alfabetizar considera mais o sujeito como aquele que está construindo sua identidade, que dialoga com o outro e consigo mesmo. Um sujeito que, aos poucos, desenvolve sua consciência critica e procura uma maior inserção social e política. Por conseguinte, è preciso desenvolver um ensino voltado à aquisição da escrita enquanto prática discursiva. Este argumento é notado por Kleiman (2002), baseada em Street, como modelo ideológico de letramento, onde não existe apenas uma concepção de letramento, mas sim, práticas de letramento, que são sociais e culturalmente determinadas. Street afirma ainda que as práticas de letramento estão ligadas às estruturas de poder vigente numa determinada sociedade. Segundo o autor [...] qualquer estudo etnográfico atestará, por implicações, sua significância para diferenciações que são feitas com base no poder [...] (1993, p. 9). Na concepção de letramento no modelo ideológico, o trabalho pedagógico deve estar voltado aos usos e funções da língua escrita e nas interações que a criança faz com o material escrito que o rodeia. Kleiman ainda discorre sobre uma outra concepção de letramento: o modelo autônomo. Assinala que, A característica da autonomia refere-se ao fato de que a 4

escrita seria, nesse modelo, um produto completo em si mesmo, que não estaria preso ao contexto de sua produção para ser interpretado (2002, p.22). Aspectos metodológicos e tratamento dos dados A nossa pretensão neste trabalho, não vai mais além de que procurar analisar nas falas dos educadores da AACA, a sua própria concepção de leitura, sua importância, para verificarmos se esta se encaixa na perspectiva do letramento. Remandamos a observação em sala de aula para um posterior momento, para fixarmos nas concepções e objetivos do ensino de leitura e escrita dos educadores, ou seja, se estes apóiam a sua prática numa dimensão apenas autônoma do letramento ou o extrapolam para uma dimensão ideológica. Para tanto, realizamos entrevistas com oito educadores da instituição. Todos educadores entrevistados trabalham em sala de aula. 4 O interesse em investigarmos primeiramente estes educadores deu-se pelo fato de estarem trabalhando mais ditadamente com a escrita e leitura. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas, para que o pesquisador pudesse ter em sua posse todos os dados objetivos com este método de pesquisa. Um dos pontos principais que visávamos esclarecer com a entrevista era compreender o que significava leitura para os sujeitos. Ainda procuramos saber a importância dada pelos entrevistados ao aprender a ler e escrever, visando identificar nas suas falas, as concepções acerca do objeto citado. Com a utilização deste método de investigação, também buscamos levantar dados necessários para apreender os tipos de textos trabalhados na instituição, seu uso e função. Para categorização dos dados foi feita uma tabulação que permitisse um olhar qualitativo das respostas. Análise dos dados A maioria dos sujeitos entrevistados são jovens; estando na faixa etária 19 e 32 anos. Predominatemente são mulhures (75%). Outro dado que tivemos a oportunidade de identificar refere-se à formação profissional dos entrevistados. A maioria dos entrevistados (62,5 %) cursou, no 4 Na AACA existem educadores que desenvolvem exclusivamente atividades de dança, capoeira, informática, esporte e outros. 5

Ensino Médio, o curso científico e apenas um educador optou pelo magistério neste nível. A primeira pergunta que fizemos aos entrevistados refere-se à concepção do que seja leitura. Em relação a esta pergunta, percebe-se que seis educadores (75%) compreendem leitura num sentido amplo. Ressaltaram que vivemos num mundo onde o escrito está em todos os lugares e não se pode viver à margem disso. Podemos subentender nas suas falas a concepção de leitura como leitura de mundo. Leitura é uma forma de conhecer o mundo (Elisabete) No discurso abaixo transcrito, verificamos uma concepção de leitura que vai além da capacidade de decodificar letras e palavras. A entrevistada considera as palavras (o texto) como sendo uma desculpa para se chegar ao objetivo final. A leitura pra mim, não só basta a partir de letras, de palavras... Pra mim a leitura é muito importante na vida de uma criança, de uma pessoa. A finalidade de ler, não é só de educar ele (o aluno) na educação escolar, que ele também tem que atingir. Mas, como diz, isto é uma desculpa pra se chegar ao objetivo de formar uma pessoa como um todo, porque agente trabalha também de outras partes. Em cima de temas e a partir dali agente tira textos e com eles vai lendo. (Adriana) Quando indagados sobre os objetivos da leitura e escrita realizada em sala de aula, encontramos um maior número de respostas interessantes. Percebemos que muitos dos nossos entrevistados (precisamente seis sujeitos) apontaram o objetivo de seu trabalho ligado à função social da escrita e da leitura. Em seus discursos percebe-se também a preocupação em ampliar a competência em nível de leitura e escrita como exigência de se viver numa sociedade essencialmente grafocêntrica e assim acompanhar as cobranças impostas pela mesma. Leitura é uma parte essencial da vida, porque assim... sem a leitura você não tem conhecimento de nada. É o básico par você ter conhecimento do que acontece no mundo... É uma parte essencial da vida. É uma abertura pro mundo. (Dayvison) 6

Nenhum dos entrevistados citou o termo letramento, porém percebe-se nas suas falas a preocupação em inserir os seus alunos em práticas sociais de leitura e escrita, portanto dentro de uma concepção do letramento. Sempre que se falava em alfabetizar relacionava-se a uma perspectiva de letramento, até mesmo na fala dos educadores que lidam com crianças que ainda não estão alfabetizadas e que muitas vezes ainda não participam da vida escolar. Dayvison, trabalha com crianças de 4 e 5 anos. Algumas estão na pré-escola, outras não. Ele nos conta: Mesmo se eles não sabem ler, eu dou revistinha de estórias em quadrinhos, jornal, Revista Cidade Nova, livros. Pra ele ter o gosto pelo livro, porque eles não têm costume. É importante para a vida ler! Eu dó livros, para que eles vejam que é importante pra eles aprenderem a ler. Foi comum identificarmos, no discurso dos entrevistados, aspectos importantes, próprio do letramento. Suzana nos diz: Agente agora pouco mesmo teve o tema que foi cidadania, e agente trabalhou a carteira de identidade e certidão de nascimento. Trabalhamos a casa, o nome da rua, dizemos que às vezes é homenagem a algumas pessoas, endereço, agente trabalhou tudo isso. Isso eu tô falando pra dizer, que não é a palavra solta, mas em um contexto real da vida (Suzana). Soares (2004, p. 44) argumenta assim:...o letramento é o estado, uma condição: o estado ou condição quem interage com diferentes portadores de leitura e de escrita, com diferentes gêneros e tipos de leitura e de escrita, coma s diferentes funções que a leitura e a escrita desempenham na nossa vida. Observemos agora, esta fala deste educador: Eu tava até comentando com o Ari. O que agente faz em uma hora, escola não consegue fazer em quatro horas. Porque agente senta, acolhe, trabalha a parte pedagógica e agente tem mais resultado, até na disciplina, tem mais resultado do que a própria escola. O que agente faz aqui dificilmente em escola, se realiza isso. Por que agente usa a leitura como caminho, assim, não para só pra aprender a ler, ler o que está escrito para ajudar na formação dele. (Daniel) 7

Percebe-se claramente na fala deste educador, que ele consegue diferenciar o trabalho da escrita e leitura realizado na Instituição em que trabalha, daquele realiza na escola. Ele atribui uma certa ineficiência a escola, pois apesar de ter mais tempo com as crianças, tem menos resultado. Parece que justifica este posicionamento porque em seu trabalho usa a leitura como caminho e exemplifica bem que não é só pra aprender a ler como muitas vezes a escola faz. Kleiman vem ratificar esta declaração do educador: O fenômeno do letramento, então, extrapola o mundo da escrita tal ele é concebido pelas instituições que se encarregam de introduzir formalmente os sujeitos no mundo da escrita. Pode-se afirmar que a escola, a mais importante das agências do letramento, preocupa-se, não com o letramento, prática social, mas com apenas um tipo de letramento, a alfabetização... Já outras agências de letramento, como a família, a igreja, a rua como lugar de trabalho, mostram orientações de letramento muito diferentes. (Kleimam, 2002, p. 20) Quando se perguntou quais os textos que se trabalhava na Instituição, alguns educadores responderam aqueles textos presentes na vida do aluno que ele não tem oportunidade de pensar sobre eles. Agente tem trabalhado sobre a cultura da paz, da solidariedade, união e cidadania. Os textos são direcionados a estes temas. Para que eles possam transpor aquilo que estão lendo para a vida deles; para a vida aqui e também na família, na escola... (Elisabete) Tratava-se, portanto de textos funcionais, como a música, receitas, cartas, textos literários e vários outros, que possam contribuir para a formação global do indivíduo. A próxima entrevistada nos revelou uma experiência muito significativa. Percebe-se na sua fala que o trabalho em sua sala de aula está voltado para a construção de sentindo, levando a criança a perceber a escrita e a leitura como significativa. Ela nos diz: Agora ta saindo a questão do Rebelde. Muitos falam, eu sou Rebelde. Aí eu pergunto. Você é rebelde, por quê? Você sabe o que é Rebelde. Rebelde é uma criança assim..., você é rebelde? Eles respondem: não tia. Porque, rebelde tá falando uma coisa, vamos vê, se o que eles falam é bom pra você. Aí então, pego uma música, copio no quadro ou peço a um dele para copiar, e discutimos. ( Karla) 8

O seu discurso nos remete a uma concepção bem diferente daquela da escola, onde muitas vezes O texto é visto por elas como um conjunto de palavras cujo significado não interessa, a leitura é vista como apenas decodificação dessas palavras, e compreender o texto nada mais é que usar a estratégia de pareamento e mecanicamente localizar a resposta. (Terzi, 2002, p. 94) Somos praticamente forçados a interagirmos com a escrita, pois estamos imersos em ambientes onde a circulação de material escrito é exacerbado. Na nossa vida diária temos necessidade das habilidades de letramento. Não é necessário concluir que precisamos oferecer espaços onde as crianças possam desenvolver estas habilidades. Considerações finais A linguagem é um caminho que junto com outras vias constroem significados e conceitos em nossa sociedade. Constituída por um sistema de signos, que se inter-relacionam, tem a capacidade de significar e de se intercomunicar com alguém, com um grupo, tornado-se imprescindível enquanto prática social global. Tornar-se letrado requer um processo contínuo. Nós educadores e as instituições que se prezam com este adjetivo, deveríamos veicular desde cedo, um apoio sistemático, que propicie ao nosso aluno interagir com a língua escrita de acordo com o seu papel, seus interesses e necessidade da comunidade em que vive. Para tornar-se um agente social participativo a criança necessita ao mesmo tempo, se assim se pode dizer, ser alfabetizado e letrado, afim de que este possa saciar as expectativas sócio-econômica e cultural da nossa sociedade hodierna. É preciso fornecer a este aluno a oportunidade de estar em contato com usos e funções da língua; é preciso fazer com que reflita sobre a língua: é preciso possibilitar práticas de escrita e leitura que lhes possibilitem compreender o mundo que o cerca, para que ele possa ter maior interação sócio-cultural. Concordamos com Scribner quando considera: A necessidade de habilidades de letramento na nossa vida diária é obvia; no emprego, passeando pela cidade, fazendo compras, todos encontramos situações que requerem o uso da leitura ou a produção de sinais escritos. Não é necessário apresentar justificativas para insistir que as escolas são obrigadas a desenvolver nas crianças as habilidades de letramento que as tornarão aptas a responder a estas demandas sociais cotidianas (SCRIBNER, 1984, p. 9) 9

O que nos parece comprovar nesta pesquisa e que existe outros logos, que não a escola onde a leitura e a escrita são práticas realísticas, acontecem no hoje e agora da vida e não somente nas restritas horas em que se permanecem sentados em uma carteira disposta em fila. A Associação de Apoio à Criança e ao Adolescente parece propor-se a desarmar armadilhas e fornecer a estes alunos oportunidades de estar em contato com uso, diversificações e significância da língua, ser construtores de um mundo melhor. Inferimos, no andamento deste trabalho, que o trabalho realizado pela AACA é uma contribuição efetiva para a emancipação do indivíduo e, portanto articuladora de uma sociedade mais justa. Referências Bibliográfica KLEIMAN, Angela (org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. São Paulo: Mercado de Letras, 2002. SCRIBNER, S. Literacy in three metaphors. América Juornal of Education, v. 93, n. 1, 1984, p. 6-21. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. STREET, Brian (org). Cross-Cultural Approaches to Literacy. Cambridge: University Press, 1993. TERZI, S.B. A oralidade e a construção da leitura por crianças de meios iletrados. In: Os Significados do Letramento, 2002, pp. 91-117. 10