TRABALHO REAL. Jussara Cruz de Brito

Documentos relacionados
UM REGIME DE PRODUÇÃO DE SABERES SOBRE O TRABALHAR E SUAS RELAÇÕES: A COMUNIDADE AMPLIADA DE PESQUISA

FUNÇÃO PSICOSSOCIAL DO TRABALHO. Profª Maria Dionísia do Amaral Dias Deptº de Saúde Pública Faculdade de Medicina de Botucatu UNESP

Introdução ao Olhar da Ergonomia

Ergonomia. Prof. Izonel Fajardo

Introdução ao olhar da Ergonomia. Prof. Dr. Ildeberto Muniz de Almeida Deptº Saúde Pública Faculdade de Medicina e Botucatu UNESP

ERGONOMIA SITUAÇÃO DE TRABALHO. Prof. Fred

Construção da cultura de segurança do paciente: contribuições da psicologia

MÉTODO DE ANÁLISE E PREVENÇÃO DE ACIDENTES ILDEBERTO MUNIZ DE ALMEIDA

FMB - Unesp Botucatu

FORMAÇÃO DO TRABALHADOR E O DESENVOLVIMENTO DO SEU CONHECIMENTO. Resumo

Avaliação do contexto de trabalho em Terapia Intensiva sob o olhar da psicodinâmica do trabalho

6 Considerações Finais

PSICOLOGIA E DIREITOS HUMANOS: Formação, Atuação e Compromisso Social

Piaget. A epistemologia genética de Jean Piaget

O trabalho médico em urgências e emergências

A apropriação de gêneros textuais pelo professor: em direção ao desenvolvimento pessoal e à

TRABALHO PRESCRITO. é vinculado, de um lado, a regras e objetivos fixados pela organização do trabalho e, de outro, às. Jussara Cruz de Brito

Análise de Acidentes Construindo uma Abordagem Sócio-técnica

ERGONOMIA Aula 1 DISCIPLINA: ERGONOMIA

BNCC e a Educação Infantil

Enfª Jeane A.G.Bronzatti COREN-SP. Nº23.219

INSERÇÕ ES DE ORIENTAÇÕ ES POSTURAIS COMO FERRAMENTA DE INTERVENÇÃO NAS ORGANIZAÇÕ ES

Apresentação. Mara Takahashi. Amanda Macaia. Sayuri Tanaka. O processo de trabalho no sistema de atividade humana

Seminário Internacional Saúde, Trabalho e Ação Sindical DIEESE

Críticas Recentes a Pressupostos e Limites de Programas de Segurança Comportamental

Profa. Dra. Léa das Graças Camargos Anastasiou

Capítulo 19. O trabalho como fenômeno psicossocial

ARTICULAÇÃO DA GERÊNCIA E CUIDADO DE ENFERMAGEM. Profa. Dra. Ana Maria Laus

Análise Ergonômica do Trabalho ANÁLISE ERGONÔMICA DO TRABALHO

Raciocínio clínico: conceito.... mas afinal o que é o raciocínio clínico?

RISCOS DE ADOECIMENTO NO TRABALHO: estudo entre profissionais de uma instituição federal de educação

Ricardo Carvalho de Almeida

O PROCESSO DO DESENVOLVIMENTO COGNITIVO

* REGINA CÉLIA FIORATI

Saúde e espaço social: reflexões Bourdieusianas. Ligia Maria Vieira da Silva Instituto de Saúde Coletiva - UFBa

Curso de Atualização em Psicopatologia 7ª aula Decio Tenenbaum

PARTICIPAÇÃO E CIDADANIA

Eu lhes falarei me apoiando, exclusivamente, nos avanços recentes das Ciências Humanas e Sociais.

Ementário das disciplinas

Aula 04. Fundamentos de Ergonomia. Prof. Daniel Braatz. Introdução à Engenharia de Segurança. Introdução à Engenharia de Segurança DEP UFSCar 02sem09

Avanços, obstáculos e superação de obstáculos no ensino de português no. Brasil nos últimos 10 anos 1 Tânia Maria Moreira 2

TRABALHO SOCIAL COM FAMÍLIAS NO SUAS

MAPA: Modelo de Análise e Prevenção de Acidentes de Trabalho

Ricardo Carvalho de Almeida

ANÁLISE ERGONÔMICA DO TRABALHO

ATORES SOCIAIS DA ESCOLA

FORMAÇÃO E SABERES DOCENTES NA INTERFACE DA MATEMATICA

Teoria das Relações Humanas O comportamento humano é determinado por causas que, às vezes, escapam ao próprio entendimento e controle humano. Essas ca

Centro de Ciências Humanas e Letras/ Departamento de Psicologia - Probex. O processo de adoecimento não se restringe a determinações fisiológicas, ao

Dançar Jogando para Jogar Dançando - A Formação do Discurso Corporal pelo Jogo

A Saúde do Trabalhador

CARTOGRAFIA ESCOLAR: UMA EXPERIÊNCIA DO PIBID DE GEOGRAFIA

CURRÍCULO centrado em competências básicas da

SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE PLANO DE ENSINO


QUANDO O TRABALHO ADOECE E O ENFRENTAMENTO DAS CONVENÇÕES NA OIT ADRIANA DANIELA JULIO E OLIVEIRA

Recursos. Corpo Docente. Lab. Psicofisiologia. J. Marques-Teixeira. CAEC Centro Apoio ao Estudo do Cérebro. Fernando Barbosa

NOTAS DE AULA CONSTRUÇÃO DO MARCO TEÓRICO CONCEITUAL 1

COLÉGIO PEDRO II CAMPUS TIJUCA II

A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE DA CRIANÇA: UMA REFLEXÃO SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DA ESCOLA 1

Referência Bibliográfica: SOUSA, Charles Toniolo de. Disponível em <

O CUIDADO EM SAÚDE. Maria Terezinha Gariglio

Aprendendo o dinamismo do mundo vivido

14- LA TAILLE, Yves. DANTAS, Heloisa e

Habilidades Cognitivas. Prof (a) Responsável: Maria Francisca Vilas Boas Leffer

Lairson de Nascimento Psicopedagogo CRPp Sindical 083

O trabalhador como protagonista da produção de saúde

Soft-skills / Comportamental

Tomada de decisão na organização

Competências Requeridas para os Promotores de Saúde

ISBN O ESPAÇO QUE EDUCA CRIANÇAS DE 0 A 5 ANOS: UMA ANÁLISE DO AMBIENTE FÍSICO E SUAS INTERLOCUÇÕES COM O PROTAGONISMO INFANTIL

Aspectos recentes de concepções de acidentes e suas implicações nas práticas de RH e de profissionais de Segurança e Saúde no Trabalho

A DIALÉTICA ESSÊNCIA/APARÊNCIA DA ATIVIDADE DO PROFESSOR: EM BUSCA DO REAL DA ATIVIDADE REALIZADA

E r g o n o m i a. m e r i n c c e. u f s c. b r ERGONOMIA. Ergonomia

TBL Gestão de Pessoas

Gestão da Sinistralidade Evidências Psicossociais. Sandra Gonçalves

Concepções sistêmicas da confiabilidade e da segurança. Organizações de alta confiabilidade (HRO)

Psicologia da saúde: Novas demandas, novos caminhos DE ONDE PARTIMOS E HORIZONTE FUTURO SÍLVIA MARIA CURY ISMAEL

10 Ensinar e aprender Sociologia no ensino médio

REI-SOL DE RICARDO MACHADO

Os sete saberes necessários à educação do futuro. Fabiana Pinto de Almeida Bizarria (UNIFOR) -

POLÍTICA DE EDUCAÇÃO INFANTIL FRENTE AOS DESAFIOS DA BNCCEI. Rita Coelho

RESOLUÇÃO EM SAÚDE- RESOLUÇÃO 588, DE 12 DE JULHO DE 2018

Introdução ao olhar da Ergonomia

5º Simposio de Ensino de Graduação DESENVOLVIMENTO DE INSTRUMENTO DE COMPLEMENTAÇÃO DA SISTEMATIZAÇÃO DA ASSISTÊNCIA DE ENFERMAGEM EM UTI NEONATAL

Programa Institucional de Cursos de Capacitação e Aperfeiçoamento Profissional PICCAP

PEDAGOGIA. Aspecto Psicológico Brasileiro. Psicologia Genética (Piaget) Professora: Nathália Bastos

Avaliação numa escola inclusiva

ANEXO I. DISCIPLINAS A SEREM OFERECIDAS PELO BiBEaD:

CURSO: ENFERMAGEM Missão Objetivo Geral Objetivos Específicos

Apresentação: Carlos Eduardo Carrusca Vieira. carloscarrusca.blogspot.com

PLANO DE ENSINO DA DISCIPLINA BLOCO I IDENTIFICAÇÃO. (não preencher) Saúde mental e trabalho Segunda-feira 17:00 18:30

Programa BIP/ZIP 2018

MATRIZ DE COMPETÊNCIAS

Novas formas de pensar a aprendizagem. Cristina Monteiro

4.3 A solução de problemas segundo Pozo

O que se remonta de Espinosa em Pêcheux? Pedro de SOUZA

EMENTAS DAS DISCIPLINAS /2 (em ordem alfabética)

A Atividade dos Psicólogos Jurídicos do Tribunal de Justiça da Paraíba

Compreendendo decisões absurdas: para uma teoria positiva do erro humano

Transcrição:

TRABALHO REAL Jussara Cruz de Brito Como uma primeira definição de trabalho real ( atividade ), pode-se dizer que é aquilo que é posto em jogo pelo(s) trabalhador(es) para realizar o trabalho prescrito (tarefa). Logo, trata-se de uma resposta às imposições determinadas externamente, que são, ao mesmo tempo, apreendidas e modificadas pela ação do próprio trabalhador. Desenvolve-se em função dos objetivos fixados pelo(s) trabalhador(es) a partir dos objetivos que lhe(s) foram prescritos. A parte observável da atividade (o comportamental) é apenas um de seus aspectos, pois os processos que geram a produção deste comportamento não são diretamente observáveis. O esforço conceitual sinalizado na expressão trabalho real está vinculado ao pressuposto de que as prescrições são recursos incompletos, isto é, que desde a sua concepção elas não são capazes de contemplar todas as situações encontradas no exercício cotidiano de trabalhar. Nesse sentido, é dada ênfase ao papel das pessoas como protagonistas ativos do processo produtivo (e não como fator ou recurso humano). Mesmo no caso de tarefas muito repetitivas, cabe ao trabalhador fazer regulações/ajustes/des- 290

Trabalho Real vios mesmo que infinitesimais que garantam a continuidade da produção. Isso implica o questionamento de expressões, como trabalho manual ou trabalho de execução, que não assinalam ao caráter ativo (mobilização cognitiva e afetiva) do trabalhador. Fundamentalmente, a defasagem sempre existente entre o trabalho prescrito e o trabalho real se deve ao fato de as situações reais de trabalho serem dinâmicas, instáveis e submetidas a imprevistos, conforme mostram os estudos realizados no âmbito da ergonomia da atividade, desde do final da década de 1960. Portanto, a atividade de trabalho envolve estratégias de adaptação do prescrito às situações reais de trabalho, atravessadas pelas variabilidades e o acaso. Do ponto de vista do sistema sócio-técnico, as variabilidades dizem respeito a oscilações normais do processo produtivo (por exemplo, quanto à quantidade e tipo de produtos/ atendimentos/procedimentos/ações ao longo do dia, mês ou ano) ou resultam de imprevistos e disfuncionamentos (falhas ou defeitos em equipamentos, problemas com instalações, inadequação ou falta de material, problemas relativos aos fluxos previstos e à comunicação etc.). Do ponto de vista dos trabalhadores, as variabilidades estão ligadas, principalmente, às características das equipes (qualificações e competências dos diferentes profissionais, se são majoritariamente compostas de mulheres, de homens ou mistas, diferenças culturais, de ritmo etc.) e às mudanças de estado de cada trabalhador durante a jornada, mês ou ano (condições de saúde, problemas extraprofissionais, nascimento de filhos, desenvolvimento de competências, expectativas e perspectivas profissionais, efeitos da idade, fadiga etc.). Conseqüentemente, a compreensão da atividade não se limita ao que é posto em jogo pelo(s) trabalhador(es) para realizar o trabalho prescrito, pois alguns de seus determinantes são encontrados na história da pessoa ou equipe, na cultura. A atividade de trabalho ( trabalho real ) pode ser definida, então, como um processo de regulação e gestão das variabilidades e do acaso. Compreender a atividade de trabalho é compreender os compromissos estabelecidos pelos trabalhadores para atender a exigências freqüentemente conflitivas e muitas vezes contraditórias. Esses compromissos se vinculam a dois pólos de interesses: os relativos aos próprios trabalhadores (saúde, desenvolvimento de competências, prazer) e os relativos à produção. A atividade de trabalho é, T 291

DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE portanto, sempre singular, dado que caracteriza o trabalho de indivíduos singulares e instáveis/variáveis, efetuado em contextos singulares e variáveis (em suas dimensões materiais, organizacionais ou sociais). Além disso, a defasagem entre a prescrição e a realidade do trabalho também se deve à diferença entre o discurso produzido sobre a prática e aquilo que os trabalhadores experimentam concretamente na prática. Tratase dos limites das rotinas e protocolos tomados como referência, indicando que há sempre uma parte da atividade que não é traduzida em palavras. É por isso que a abordagem da psicodinâmica do trabalho chama a atenção que trabalhar implica sair do discurso para confrontar-se com o mundo. E nesse confronto os trabalhadores não aplicam os saberes adquiridos (não são executores ), mas, afetados pela situação de trabalho, mobilizamse, operando com o patrimônio de saberes adquiridos, produzindo novos elementos. Observa-se, além disso, que os problemas que os trabalhadores têm de resolver, além de nunca estarem definidos inteiramente no enunciado formal de suas tarefas prescritas, não estão totalmente definidos a priori; ou seja, são os trabalhadores que devem ser capazes de construir estes problemas, como sinalizou há décadas o ergonomista Alain Wisner. A inteligência do/no trabalho, de acordo com a psicodinâmica do trabalho (Dejours, 1997), se caracteriza pela astúcia a que é necessário recorrer diante das dificuldades da prática. É uma forma de inteligência criativa, multiforme e móvel, o que permite uma atuação exitosa nos processos de trabalho, com suas instabilidades. Um outro traço desta inteligência que tem como modelo uma divindade feminina da Grécia Antiga, Mètis é que suas capacidades estão sempre enraizadas no corpo. A inteligência da prática está relacionada com ajustes feitos às normas prescritas, visando solucionar as dificuldades experimentadas no confronto com o real (e não previstas nos manuais, protocolos etc.). Portanto, o trabalho envolve inteiramente aquele que trabalha, tem sempre um caráter inventivo e, neste sentido, é enigmático. A evolução do debate sobre o hiato entre trabalho prescrito e trabalho real tem levado à efervescência e renovação conceitual da noção de atividade de trabalho para muitos mais fértil que a noção de trabalho real. Yves Schwartz (2005), na perspectiva da ergologia, aponta três razões para esta efervescência do debate. Primei- 292

Trabalho Real ramente, porque se trata de uma noção que não pode ser absorvida totalmente por nenhuma disciplina, na medida em que a atividade atravessa o biológico, o psicológico e o cultural, o individual e o coletivo, o fazer e os valores, o privado e o profissional, o imposto e o desejado. Em outras palavras, a atividade faz uma síntese desses diversos elementos, pois nas situações concretas não é possível separálos: o fazer é impregnado de valores, o privado se articula com o profissional etc. Logo, a atividade de trabalho não pode ser vista apenas de um ângulo, compreendê-la, operar com este conceito, exige o diálogo entre diversas disciplinas, diferentes campos de saberes. A ergologia chama atenção que este debate sinérgico proposto envolve necessariamente os protagonistas do trabalho em análise, remetendo para a discussão sobre um dispositivo pertinente à geração de saberes para compreender-transformar positivamente o trabalho. A efervescência da noção de atividade de trabalho está vinculada também ao seu caráter de mediação entre o micro (o espaço-tempo onde ocorre o processo de trabalho) e o macro (seu contexto social, econômico e político), entre o local e o global. Se aparentemente a noção de atividade refere-se a um plano muito específico e local do trabalho (seu nível micro ), sua acepção tem sido renovada pela indicação de que o foco sobre o micro remete ao macro e vice-versa. Dito de outro modo: o foco sobre a atividade de trabalho permite tanto compreender os condicionantes econômicos e sociais dos processos produtivos quanto reconhecer a história singular que se faz no cotidiano desses processos. É nesse sentido que a perspectiva ergológica propõe um vai-vem entre micro e macro: um dado olhar sobre as dificuldades e possibilidades encontradas nas situações concretas de trabalho, buscando identificar aí as marcas da história de uma sociedade (seu desenvolvimento científico e cultural, as relações de poder instituídas) e seus valores. Nesse sentido, a atividade de trabalho é sempre um encontro entre micro e macro : no caso dos serviços de saúde, um encontro entre, de um lado, diferentes profissionais (com seus saberes particulares e distintas formas de inserção do processo), usuários (com suas histórias de vida e condições clínicas), chefias, equipes, tecnologias; de outro lado, políticas e programas de saúde, legislações, a estruturação da rede assistencial etc. Atividade como encontro que envolve lógicas distintas: a lógica do cuida- T 293

DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE do, a lógica da gestão do serviço e a lógica financeira. O trabalho real acontece neste encontro, e é o trabalhador, individual e coletivamente, que faz a gestão de tudo isso no cotidiano, muitas vezes se virando. É nesse sentido que trabalhar é gerir, e que a atividade de trabalho envolve sempre criação. Há ainda uma outra razão para efervescência da noção da atividade. Ela remete, simultaneamente, às normas antecedentes instituídas e enraizadas nos processos de trabalho e à tendência dos seres humanos de criar novas normas diante dos desafios do cotidiano (renormatizações). Ou seja, o trabalho real é um lugar de debates de normas e valores, como se entende na perspectiva ergológica. Para entender essa afirmação, lembremos que há normas (antecedentes) propostas-impostas, ligadas a instâncias exteriores aos indivíduos, assim como há normas instauradas na própria atividade (renormatizações), ligadas ao próprio indivíduo pois, conforme Canguilhem (2001), cada um busca ser produtor de suas próprias normas, re-centrando a situação de trabalho. As normas que o indivíduo (re)inventa não são da mesma natureza que as normas às quais ele se confronta em seu trabalho. Pensar o trabalho como reprodução idêntica das normas econômicas e técnicas subentendidas na atividade de trabalho seria pensá-lo numa perspectiva apenas adaptativa, o que, na verdade, não dá conta da complexidade da vida e do trabalho. Do mesmo modo que é impossível eliminar as variabilidades do meio de trabalho (conforme evidenciou a ergonomia da atividade), não se pode viver sob um regime de total imposição deste meio já-dado, isto é, de suas normas antecedentes. Diante delas, na situação real de trabalho, os trabalhadores (re)criam estratégias, em um movimento contínuo de (re)normatização. É nesse sentido que Yves Schwartz (2005), na linhagem de Canguilhem, afirma que em toda atividade de trabalho há sempre uso de si. De um lado, uso de si pelos outros, como nos é mais visível; de outro, algo que é mais difícil de considerar: uso de si por si. Sim, pois os trabalhadores precisam nas situações reais de trabalho mobilizar-se, fazer uso de suas próprias capacidades, de seus próprios recursos e de suas próprias escolhas, além de fazer uso de si para mobilizar redes de parceiros, para equacionar e gerir os problemas emergentes, as variabilidades, as diferentes lógicas e as diferentes normas então presentes. Nesta mesma perspectiva, na abordagem da clínica da atividade 294

Trabalho Simples (Clot, 2006), sinaliza-se que, para uma melhor compreensão da atividade de trabalho, se deve considerar também o que não se fez e o que não se faz, por não querer ou poder, assim como aquilo que se tem vontade e se pensa fazer em outro momento. Esta abordagem enfatiza que o conceito de atividade de trabalho deve englobar, além do trabalho realizado e dos obstáculos encontrados, também as possibilidades de desenvolvimento da atividade, remetendo ao trabalho como zona de desenvolvimento potencial e às potencialidades do agir individual e coletivo no trabalho aquilo de novo que no trabalho cada um pode se tornar. Todo este debate sobre o trabalho real e mais especificamente sobre o conceito de atividade de trabalho mostra que este é um assunto atraente e complexo, envolvendo vários aspectos. A dimensão coletiva do trabalho exige ser considerada. Já foi evidenciado pela ergonomia da atividade e pela psicodinâmica do trabalho que a organização real do trabalho se baseia na cooperação espontânea entre os trabalhadores, ao contrário da organização prescrita do trabalho que busca definir separadamente os papéis, os domínios de competência e as responsabilidades de cada um. A cooperação não pode ser prescrita: é uma construção fundada em regras produzidas pelos coletivos de trabalho, a partir de critérios de eficácia e de valores. Esta cooperação depende de condições favoráveis à mobilização subjetiva que por sua vez está relacionada à dinâmica do reconhecimento das contribuições dos trabalhadores (invenções e ajustes feitos) para que não haja uma paralisação da produção. Trata-se de uma dinâmica que passa necessariamente pela visibilidade do que se faz (das transgressões), exige a possibilidade de confiança, compreende a existência de um espaço público interno no meio de trabalho, passa por um julgamento por parte dos pares, da hierarquia e dos clientes sobre o ato profissional e o seu produto, enfim, pelo reconhecimento da contribuição. Logo, o trabalho real apresenta também uma dimensão subjetiva e intersubjetiva. Considerar a dimensão coletiva do trabalho implica ainda reconhecer que diferentes redes são formadas para que as atividades se desenvolvam. Redes que podem envolver contatos presenciais diretos ou comunicações telefônicas ou escritas, que podem se constituir e em seguida se desfazer, mas que integram o trabalho real. Por exemplo, no cuidado de recém-nascidos prematuros, em uma UTI- T 295

DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE Neonatal, se constitui um coletivo transitório formado por profissionais da equipe de enfermagem e as mães dos bebês. Outro exemplo: redes que se criam a partir da ação do Programa Saúde da Família (PSF), envolvendo inclusive a comunidade. Para concluir: é muito importante e difícil apreender o trabalho real, especialmente quando este envolve tão poderosamente um componente relacional, como o trabalho em saúde. O fundamental é não negar que desvios, ajustes, transgressões, micro-decisões fazem parte desse universo, pois o trabalho humano é sempre necessário para fazer face aos acontecimentos. Para saber mais: CANGUILHEM, G. Meio e normas do homem no trabalho. Proposições, 12(2-3): 35-36, jul.-nov., 2001. CLOT, Y. A Função Psicológica do Trabalho. Petrópolis: Vozes, 2006. DEJOURS, C. O Fator Humano. São Paulo: Ed. FGV, 1997. DANIELLOU, F. (Org.) A Ergonomia em Busca de seus Princípios: debates epistemológicos. São Paulo: Editora Edgard Blücher, 2004. SCHWARTZ, Y. Actividade Laboreal, 1(1): 63-64, 2005. Disponível em: <http:// laboreal.up.pt>. WISNER, A. A Inteligência no Trabalho: textos selecionados de ergonomia. São Paulo: Fundacentro, 1994.