O homem e suas bases existenciais

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OS PRIMEIROS FILÓSOFOS E AS PRIMEIRAS QUESTÕES FILOSÓFICAS. A physis é a Natureza eterna e em constante transformação

Transcrição:

O homem e suas bases existenciais O homem na natureza A natureza, como totalidade ordenadora, é um fenômeno que compreende todos os aspectos físicos, químicos e biológicos. Nós, como seres vivos, somos portadores de uma condição biológica intrínseca. Ainda que nossa consciência tenha alcançado um nível superior a de todas as outras formas de vida conhecidas, não estamos livres de termos que atender às nossas necessidades biológicas mais elementares. Somos parte de um equilíbrio natural e dependemos desse equilíbrio para a manutenção de nossa vida. No entanto, nosso papel nesse equilíbrio é maior do que meramente o resultado de ações instintivas. Não somos seres passivos nesse processo de relação com o mundo, pelo contrário, somos, sem dúvida, o ser que possui as mais amplas possibilidades de atuação nesse equilíbrio. Essa condição, ao mesmo tempo em que situa a importância do papel do homem na natureza, indica para a necessidade de que pensamos quais são os fundamentos desse papel, ou seja, como é que se dá, efetivamente, a presença do homem na natureza. Para começarmos a compreender essa presença, temos que observar quais são as nossas necessidades básicas, pois é na busca de tais necessidades que a maior parte das ações humanas vai se direcionar. Temos algumas necessidades básicas tal como alimento, comida e abrigo. Essas três, vistas isoladamente, mostram que somos semelhantes em nossas necessidades à maioria dos demais animais, em especial aos animais da classe a que pertencemos dos mamíferos. No entanto, para compreendermos o verdadeiro papel do homem na natureza, temos que ir além dessa semelhança que, de fato, é apenas o ponto de partida. Isso porque tais semelhanças, quando observadas no exercício da vida diária, apresentam uma grande diferença, geradora de inúmeros distanciamentos entre a vida animal e humana. Essa diferença básica é a de que os animais, também dependentes de alimento, água e abrigo, proliferam a sua espécie de acordo com tais condições, ao passo que o homem prolifera-se independentemente da disponibilidade natural desses fatores, o que lhe obriga a criar as condições favoráveis à vida. Em termos práticos, isso equivale a dizer que os animais são passivos frente à natureza, pois sua vida depende da oferta das condições naturais. Já o homem é ativo em relação à natureza, pois sua forma de existir transforma as condições naturais de modo a permitir sua existência. Dessa forma, o homem cria técnicas que lhe permitem morar em locais muito frio, por exemplo, uma vez que dispõe de moradia e de roupas que lhe protegem de tal frio. Em relação ao alimento e a água, dá-se o mesmo papel ativo: se o local não oferece as condições necessárias para suprir as necessidades alimentares e de água de seus moradores, cria-se uma logística por meio da qual há a possibilidade de transporte e estoque dos insumos desejados. A rede de água e esgoto é um exemplo simples e bastante comum de como o homem transforma a oferta de matéria natural de acordo com os seus interesses e necessidades.

Conhecimento do Homem, da Natureza e da Sociedade Claro que essa configuração de coisas traz também alguns problemas e, no nosso atual estágio de desenvolvimento, em especial das grandes cidades, tais problemas já mostram sinais alarmantes. Basicamente, podemos identificar dois grandes conjuntos de problemas resultantes desse papel transformador do homem frente à natureza. O primeiro diz respeito a um suposto equilíbrio natural que pode ser afetado por essa ação do homem. Trata-se de acreditar que o mundo, como um sistema fechado, tem um equilíbrio próprio e que alterações significativas em suas condições naturais acarretariam uma onda de desequilíbrios. É evidente que esse problema pode estar acompanhado de uma defesa fundamentalista do meio ambiente, o que não é uma posição razoável do ponto de vista da necessidade do progresso humano, no entanto, também não podemos ignorar que a natureza tem um equilíbrio que precisa ser respeitado e é por isso que, atualmente, são fundamentais os estudos de impacto ambiental. O outro conjunto de problemas que podemos relacionar a esse papel do homem na natureza é de grande amplitude e, de certa forma, abarca até mesmo o primeiro conjunto: trata-se das conseqüências da teoria de Malthus 1. De acordo com tal teoria, o equilíbrio natural está frente a um grande ameaça, protagonizada, justamente, pelo homem. De acordo com os estudos de Malthus, a população humana cresce em progressão geométrica, ao passo que as ofertas de alimento crescem em proporção aritmética. É evidente que tal quadro aponta para uma saturação da oferta das condições naturais de existência. Ainda que o progresso humano tenha sido capaz de reverter em grande parte essa expectativa de Malthus, com implementos técnicos que potencializam a produtividade, esse é um problema que não pode ser descartado e que, na atualidade, aponta, especialmente, para o aproveitamento da água. De um modo geral, o que devemos observar é que o papel do homem na natureza, como ser que se reproduz velozmente, traz consigo a necessária preocupação com a sustentabilidade do planeta. Sua condição ativa permite-lhe por um lado, transformar as condições naturais, por outro, obriga-lhe a uma alta carga de responsabilidade sobre o próprio planeta. Thomas Robert Malthus, 11766 1834, economista britânico. Suas obras exerceram influência em vários campos do pensamento, como nas teorias evolucionistas de Darwin e Wallace. 2 ONFRAY, Michel, A Arte de Ter Prazer, São Paulo: Martins Fontes, 1999. A existência biológica do ser humano Como seres que temos na nossa consciência nosso maior diferencial, somos inclinados a nos esquecermos da nossa condição fisiológica. O filósofo Michel Onfray, na introdução de sua obra A Arte de Ter Prazer 2, conta como, por muitos anos, esteve entretido quase que exclusivamente com suas atividades intelectuais, de modo a acreditar que sua existência se limitava, basicamente, a sua atividade mental. Até certo dia no qual um infarto lhe acometeu, quase tirando-lhe a vida em uma idade ainda bastante precoce. A partir de tal evento, o filósofo passou a conferir grande valor ao corpo e a nossa realidade material. Por tal realidade material compreende-se tudo aquilo que faz parte da nossa existência física e biológica. O homem é um ser vivo, uma realidade biológica, e a nossa condição existencial está fundamentada nessa realidade corporal por mais que uma tradi- 28

O homem e suas bases existenciais ção dualista nos iluda do contrário. Essa tradição dualista refere-se, fundamentalmente, ao pensamento Cartesiano 3. Para Descartes, a condição de nossa existência está fundamentada no fato de que pensamos ( penso, logo existo ). Isso traz ao corpo uma condição secundária. Por isso, essa teoria é dita dualista; de um lado tem-se o corpo, do outro, a mente. Acredita-se que o ser seja dividido entre essas duas esferas, a corporal e a intelectual, sendo que Descartes conferiu à dimensão intelectual toda a condição humana por excelência. Qual é o impacto sobre o conceito de homem e natureza em uma visão desse tipo? O que, basicamente, teremos a partir dessa forma de entendimento do homem é um distanciamento entre os fenômenos humanos e os fenômenos naturais. Aquilo que diz respeito ao homem refere-se ao seu intelecto e nunca a sua biologia ou ao seu corpo. Mesmo quando somos obrigados a pensar sobre o corpo, como, nas necessárias abordagens da medicina, por muitas vezes seguiu-se, também, a orientação de Descartes, que era a de considerar o corpo como uma espécie de máquina. Para Descartes, o modelo de uma máquina hidráulica explicava muito bem o que se passa com o nosso corpo. Uma vez que aquilo que somos está fundamentado, unicamente, em nosso intelecto, o corpo aparece como um arcabouço e a nossa biologia como uma forma de manutenção dessa máquina, nada além disso. Essa orientação, que influenciou toda a ciência moderna e, em grande medida, ainda faz parte do imaginário atual, opera um desligamento do homem em relação à natureza. A condição biológica do ser humano não é, nessa forma de pensar, um fator que oriente ações ou movimente preocupações. Não somos participantes da natureza, a não ser de forma indireta e inevitável. Ou seja, para o sonho de uma racionalidade pura, os fatores biológicos do homem são apenas empecilhos. Nos dias de hoje, a Filosofia e muitas outras instâncias do pensamento humano têm se esforçado para construir um saber orgânico, ou seja, uma forma de pensar que leve em consideração que o homem é, ao mesmo tempo, um ser racional e um ser biológico. Trata-se não de um ser dividido entre corpo e mente, mas de uma unidade biológica, psicológica e social. Somos participantes do todo natural, como seres vivos que somos, mas temos também nossa particularidade que é a nossa capacidade racional e nossas formas de socialidade, constituintes daquilo que chamamos de cultura. A vida em conjunto e a formação comunitária Se observarmos o homem em relação aos demais animais e lembrarmos que, nos primórdios, sua vida selvagem o colocava no mesmo ambiente em disputa direta com os outros animais, perceberemos que há uma desvantagem nítida do homem em relação à sua força física, sua velocidade e sua resistência. Como animal caçador e nômade, o homem é fraco e leva desvantagem na competição 3 René Descartes, 1596 1650, filósofo francês, autor de Meditações Metafísicas e o Discurso do Método, entre outras. É considerado um dos pais da filosofia moderna. 29

Conhecimento do Homem, da Natureza e da Sociedade 4 HOBBES, Thomas, Leviatã, São Paulo: Martins Fontes, 2003. natural. No entanto, sua capacidade racional fez com que ele desenvolvesse uma forma de aumentar enormemente sua capacidade de luta e de segurança, e, assim desenvolveu a vida comunitária. Mais do que simplesmente viver junto a outros, o homem estabeleceu comunidades nas quais a divisão de trabalho entre seus integrantes garantiam uma maior e melhor otimização do tempo e das condições naturais. Dessa forma, o homem foi capaz de superar suas próprias limitações e incrementar suas potencialidades na competição natural. Vivendo em conjunto, mesmo nas sociedades primitivas, o homem era capaz de revezar-se nas atividades de vigilância, de constituir grupos diferentes de caça abrangendo um território maior, de cuidar melhor de seus filhos, pois alguns dos membros dedicavam-se exclusivamente a isso. Todas essas e muitas outras formas de divisão do trabalho foram aumentando a capacidade humana de sobrevivência, de modo que o homem passou a viver mais e, claro, reproduzir-se mais. O resultado dessa maior preservação e reprodução da espécie humana foi a proliferação da raça pelos territórios da terra, de modo que o homem povoou o mundo com suas comunidades e cidades. Viver em comunidade, portanto, consiste, essencialmente, em dividir tarefas e melhor aproveitar o espaço. Com o tempo, essa forma de vida comunitária foi se complexando. O homem instituiu formas de transmitir suas técnicas e saberes, como a educação, modos de aumentar sua produtividade, como a tecnologia e modos de melhorar seu entendimento como a comunicação. Educação, tecnologia e comunicação são, até hoje, formas essenciais para a circulação do saber humano, o que faz com que possamos tirar o máximo de proveito de nossa existência comunitária. Podemos afirmar que a natureza do homem é a de viver coletivamente. No entanto, como sabemos, nem tudo é paz e harmonia quando o homem decide viver coletivamente. Se, por um lado, a vida coletiva colabora para que possamos nos defender das adversidades naturais, por outro lado, o homem passa a ser uma ameaça ao próprio homem. Thomas Hobbes, filósofo inglês do século XVII, concluiu que o estado natural dos indivíduos não é o de paz, mas sim, o de guerra. Entregues puramente aos nossos interesses individuais e agindo de acordo com nossos impulsos, o que veríamos seria uma guerra de todos contra todos 4. Para que esse estado natural de guerra e o conseqüente caos social sejam evitados, os indivíduos estabelecem um contrato, segundo o qual se comprometem a agir de acordo com a lei que será discutida e aprovada pelos homens os quais também são responsáveis por aplicá-la ao seu dia-a-dia. A partir do pensamento de Thomas Hobbes, a sociedade é uma necessidade. O homem não vive sozinho. Se entregue a sua sorte individual, esse homem só encontrará dificuldades e a morte. Mas se optar pela vida coletiva, haverá a necessidade de ter leis, um contrato social e a normalização dos costumes. É evidente que a aplicação dessas normas e leis deverá ser policiada, de modo que se faça 30

O homem e suas bases existenciais valer o direito de julgar e de punir aqueles que não se comportam de acordo com as leis preestabelecidas. Essa tarefa será de responsabilidade das autoridades, ou melhor, das pessoas encarregadas em policiar e julgar as condutas, para que elas se encaixem de modo justo nos comportamentos desejados. A justeza desse encaixe dá origem à palavra justiça que se refere à obrigação do indivíduo de se comportar de acordo com o contrato social, com as leis e sob o respeito das autoridades que governam. Percebemos, assim, que a vida do homem passa a ser, necessariamente, ligada ao viver coletivo, o que o obriga a criar e obedecer orientações para a sociedade. As necessidades naturais levaram o homem a viver junto a outros e, agora, suas necessidades humanas o obriga a repensar sua existência. O maior problema para o homem é o próprio homem, por isso é preciso que estabeleçamos um saber sobre ele, uma antropologia. Elementos de uma antropologia A palavra Antropologia vem do grego antrophós (homem) e logia (logus, conhecimento). Dessa forma, a Antropologia é a sabedoria sobre o homem. Não que outras formas de conhecimento não se destinem, de modo direto ou indireto, ao homem. Mas cabe à Antropologia a função de colocar o homem, sua existência e natureza, no centro das questões. Existem várias Antropologias no universo de conhecimentos humanos. A Antropologia Física destina-se a estudar a evolução e o desenvolvimento do homem. A Antropologia Cultural centra-se nas questões dos significados, dos símbolos e dos valores que trafegam em uma cultura e que orientam, assim, as condutas e as expectativas dos membros dessa cultura. Por fim, a Antropologia Filosófica é aquela que elabora uma reflexão existencial sobre o homem, pensando em seu papel no conjunto da vida. Ainda que cada uma dessas antropologias tenha seu recorte próprio e que, atualmente, estabeleçam-se como áreas de intervenção distintas, o ponto de partida de todas é o mesmo, ou seja, o homem. Talvez, para entendermos o homem, tenhamos mesmo que cumprir a pesada tarefa de compreender os elementos dessas três formas de Antropologia, pois, como sabemos, em sua complexidade, o homem não apresenta tais fatores isoladamente. Ao mesmo tempo em que somos fruto de uma evolução física, somos também pessoas imbuídas de hábitos e condutas culturalmente determinadas, ao mesmo tempo que somos os únicos seres capazes de refletir, de modo consciente e profundo, sobre sua própria existência. 31

Conhecimento do Homem, da Natureza e da Sociedade Estabelecer uma reflexão antropológica é, portanto, evidenciar a questão humana, é colocar o homem como centro da questão para o próprio homem e, ao fazermos isso, estamos, inevitavelmente, compondo um entendimento que nos coloca em relação à natureza, à vida e, ao mesmo tempo, redefine nossas expectativas sobre nós mesmos. Que significa a arte da 5 parteira. 6 CASSIRER, Ernst, Antropologia Filosófica, México: Fondo de Cultura Económica. O homem como centro da questão para o próprio homem É verdade que, desde as primeiras manifestações de pensamento racionalmente organizado e sistematizado, o homem sempre fez parte das reflexões humanas. Assim, os filósofos da physis (natureza, princípio), desde o século VII a.c., já estavam preocupados, quando estabeleciam seus princípios reguladores do cosmos, em entender qual era a participação do homem nesse processo. No entanto, é a partir de Sócrates que o homem passa a assumir o papel central na reflexão humana. O conhece-te a ti mesmo, máxima socrática, é um lema que atravessa os séculos como uma das mais basilares tarefas humanas, uma espécie mesmo, de sentido da vida. Nós somos intrigados e aficionados pelo próprio fenômeno humano. As perguntas quem somos?, de onde viemos?, para onde vamos? tidas como as grandes perguntas da existência têm um mesmo sujeito, ou seja, o homem. Esse é o sujeito por excelência da reflexão desde Sócrates. Ao fazer suas preleções em praças públicas, o filósofo deparavase, inevitavelmente, com as questões mais diversas, mas quase sempre ligadas pelo fio condutor do desejo humano de autoconhecimento. Por sinal, o saber socrático era tão fundamentado no próprio homem que, para encontrar o conhecimento, Sócrates não recomendava que as pessoas buscassem em outros locais a sabedoria senão em si mesmas. O método socrático, conhecido como maiêutica 5, consistia em extrair do próprio sujeito o conhecimento que ele desejava ter, pois, para Sócrates, só podemos conhecer a partir daquilo que já sabemos. O que o filósofo fazia era provocar a reflexão em seus interlocutores, de modo que eles fossem capazes de cruzar os dados que já sabiam até poderem saber o que supunham ainda não saber. Essa forma de reflexão não levou Sócrates a supor que era possível saber tudo, ao contrário, a atitude inteligente por excelência é a de se admitir que sabemos muito pouco, ou, como proferiu Sócrates, só sei que nada sei. Essa é a postura de um homem que entende as próprias limitações do homem. Essa postura e essa reflexão socráticas levaram Cassirer a afirmar que Sócrates foi o primeiro dos antropólogos 6, ou seja, o primeiro a, realmente, colocar no centro a questão do próprio homem. 32

O homem e suas bases existenciais O Estado natural e o pacto social (HOBBES, 2003) Leviatã, 1.ª parte: Do Homem Cap. XIII [...] O Estado de natureza, essa guerra de todos contra todos tem por conseqüência o fato de nada ser injusto. As noções de certo e errado, de justiça e de injustiça não têm lugar nessa situação. Onde não há Poder comum, não há lei; onde não há lei, não há injustiça: força e astúcia são virtudes cardeais na guerra. Justiça e injustiça não pertencem à lista das faculdades naturais do Espírito ou do Corpo; pois, nesse caso, elas poderiam ser encontradas num homem que estivesse sozinho no mundo (como acontece com seus sentidos ou suas paixões). Na realidade, justiça e injustiça são qualidades relativas aos homens em sociedade, não ao homem solitário. A mesma situação de guerra não implica na existência da propriedade [...] nem na distinção entre o Meu e o Teu, mas apenas no fato de que a cada um pertence aquilo que for capaz de o guardar. Eis então, e por muito tempo, a triste condição em que o homem é colocado pela natureza com a possibilidade, é bem verdade, de sair dela, possibilidade que, por um lado, se apóia nas Paixões e, por outro, em sua Razão. As paixões que inclinam o homem para a paz são o temor à morte violenta e o desejo de tudo o que é necessário a uma vida confortável [...] E a Razão sugere artigos de paz convenientes sobre os quais os homens podem ser levados a concordar. Cap. XIV [...] O direito natural que os escritores comumente chamam de Jus naturale é a Liberdade que tem cada um de se servir da própria força segundo sua vontade, para salvaguardar sua própria natureza, isto é, sua própria vida. E porque a condição humana é uma condição de guerra de cada um contra cada um [...] daí resulta que, nessa situação, cada um tem direito sobre todas as coisas, mesmo até o corpo dos outros... Enquanto dura esse direito natural de cada um sobre tudo e todos, não pode existir para nenhum homem (por mais forte ou astucioso que seja) a menor segurança. Cap. XV [...] Antes que se possa utilizar das palavras justo e injusto, é preciso que haja um Poder constrangedor; inicialmente, para forçar os homens a executar seus pactos pelo temor de uma punição maior do que o benefício que poderiam esperar se os violassem, em seguida, para garantir-lhes a propriedade do que adquirem por Contrato mútuo em substituição e no lugar do Direito universal que perdem. E não existe tal poder constrangedor antes da instituição de um Estado. É o que também resulta da definição que as Escolas dão geralmente da justiça, a saber, que a justiça é a vontade de atribuir a cada um o que lhe cabe pertencer; pois, quando nada é próprio, ou seja, quando não há propriedade, não há injustiça; e onde não há Poder Constrangedor estabelecido, em outras palavras, onde não há Estado, não há Propriedade e cada homem tem direito a todas as coisas. Por conseguinte, enquanto não há Estado, nada há que seja Injusto. 33

Conhecimento do Homem, da Natureza e da Sociedade 1. Discuta a importância da vida em comunidade para o desenvolvimento e para a sustentabilidade do ser humano 2. Discuta, preferencialmente em grupos e opine. A partir da teoria de Malthus, qual é o cenário que devemos esperar para o futuro do planeta? O que devemos fazer para evitar o colapso dos meios de subsistência? 34

O homem e suas bases existenciais Livros: CASSIRER, E. Antropologia Filosófica. México: Fondo de Cultura Económico, 2006. Ernst Cassirer, além da interpretação de Sócrates como o primeiro antropólogo, traz importantes considerações sobre o papel do homem e da cultura. Sua abordagem é, evidentemente, filosófica, mas as chaves de conhecimento que o autor oferece podem ser úteis em diversas áreas do conhecimento e para estudos em variadas abordagens. HOBBES, T. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003. O Leviatã é uma obra clássica de referência política, ética e, sobretudo, da natureza humana. Como esta aula teve como tema o homem e suas bases existenciais, um aprofundamento nessa questão seria de grande proveito a partir das considerações de Hobbes de como o homem é o lobo do homem. 35

36 Conhecimento do Homem, da Natureza e da Sociedade