O CORPO DO SETTING Evelyn Pryzant Eixo: O corpo na teoría Palavras chave: corpo do setting, metapsicologia, consultório do psicanalista, supervisão. Resumo: O corpo do setting é considerado como a base do trabalho analítico. A autora articula o setting analítico a um corpo formado pela intersubjetividade analista-analisandos e os múltiplos personagens que habitam a cena analítica, seus autores psicanalíticos preferidos, a implicação de sua própria análise e supervisão, e propõe um constructo metapsicológico do corpo do setting, contando que a capacidade de sonhar do analista deve ser constantemente praticada. Desenvolvimento: Incorporar é fazer com que algo se torne corpo Mesmo as coisas espantosas nunca me espantaram. Encaixo tudo, somo, incorporo. (Andrade, 1954/2002)
A proposta deste trabalho, para nunca perder a capacidade de sonhar, é pensar o setting psicanalítico como um corpo, formado pela intersubjetividade da dupla analítica, construído na relação de análise, como um sonho metapsicológico. Desde que a metapsicologia abarca o ponto de vista dinâmico, o corpo do setting passa a existir com a entrada do paciente na sala e se desconstrói a cada término da sessão, transformado; do ponto de vista econômico, quando a projeção no corpo do setting traz o alívio da pulsão; e do ponto de vista tópico, quando esse corpo é constituído pelo espaço físico do consultório do analista, mas pode ser usado, de forma inconsciente pela dupla analítica. Um paciente deprimido tinha vontade de se deixar cair do divã para sentir o impacto do seu corpo no chão. Também pensava em se deixar cair da varanda de seu prédio, buscava o impacto. Assim como o corpo precede a mente, o espaço físico da sala do analista, precede a chegada do paciente. É nesse ambiente que o terceiro analítico é construído como um corpo que gesta a estrutura que permite facilitar um estado mental, experimentado, elaborado e usado pela dupla analista/analisando, com a finalidade de ajudar o paciente a concentrar a atenção em sua auto-observação. A paciente obesa mórbida estava muito curiosa e tentada a abrir o armário da analista, trancado por uma chave, imaginava que lá dentro existiam guloseimas e refrigerantes, talvez alguns livros. Ainda não tinha consciência do desejo de investigar e conhecer sua mente-corpo-armário. O corpo do setting alimenta, privado de qualquer alimento que não seja simbólico, digere, vê e escuta, recorda, abraça e embala, encarnado sem carne, joga nesse espaço, o interjogo de revêries onde se encontra a arte da psicanálise. Para que esse campo onírico, analítico e intersubjetivo possa acontecer é preciso um contexto de realidade como é a sala de um consultório psicanalítico, um divã, um paciente ou um grupo, um analista, uma experiência que se dá rodeada de realidade concreta. O ambiente concreto, constante e seguro, possibilita que a realidade interna do paciente esteja permeável para um contato com a realidade externa. Ao projetar qualquer espaço, há sempre implicada uma visão de mundo que se reproduz por meio de sua expressão concreta. O setting analítico começa pelo desejo do analista de um espaço que para ele signifique conforto, algo que lhe é conhecido e próprio; quando ele prepara sua sala, comunica sua forma de ser, tudo ali delata sua personalidade. É no mundo do analista que o paciente entra.
Partindo da premissa do corpo do setting como uma ampliação do corpo do analista, além de todas as fantasias inconscientes projetadas nesse espaço, tanto da parte do analisando quanto do analista, quando um paciente entra na sala sabemos que não estaremos mais a sós e nem e em quem nos transformaremos. A sessão começa, a paciente entra, com ela o cheiro do perfume da mãe da analista. Já era sabido, tanto sua mãe quanto sua paciente iriam para o divã. Quando Freud refere-se a Georg Groddeck, que está sempre a enfatizar que aquilo que chamamos nosso Eu conduz-se, na vida, de modo essencialmente passivo, somos vividos por poderes desconhecidos e incontroláveis (Freud, 1923-1925/1987, p. 28). Um paciente, advogado criminal insistiu em investigar a vida da analista, para ele, a incógnita era insuportável, não poderia se dirigir a alguém sem saber seus precedentes, como um inimigo que andava a espreita, o divã era ameaçador, imaginava que a qualquer momento poderia ser atacado pelas costas. Nesse ambiente, além da dupla analítica ser incorporada, uma série de personagens e experiências vividas anteriormente estão disponíveis para serem abarcadas por esse corpo-ambiente, as associações livres desfilam no espaço no momento do encontro. Além das palavras existe a formação de muitos outros símbolos na cena analítica que não são exclusivamente verbais. Essa comunicação, como na identificação projetiva, por exemplo, captada pelo analista é especial e única, pode se dar por meio de uma multiplicidade de autores psicanalíticos que desfilam no setting: Ogden, Bion, Klein, Dolto, Groddeck, e outros que, com suas respectivas teorias, também se acomodam nesse espaço; pode se dar pelas associações com as experiências vividas do analista na sua própria análise, às vezes, impasses que exigem que o analista busque mais análise pessoal, trazendo outro personagem ao corpo do setting: o analista do analista. Assim também se dá com a voz do seu supervisor quando atravessa seus pensamentos conscientes durante a sessão. A paciente entra calada depois de uma sessão intensa e verborrágica do dia anterior. Em menos de dez minutos se levanta do divã e senta na poltrona, muito brava, já que a analista não tinha nada para lhe falar naquele dia.
Diz Freud, o papel das representações verbais é agora perfeitamente claro. Pela sua intermediação, processos de pensamentos internos são transformados em percepções. É como se fosse demonstrada a proposição de que todo saber tem origem na percepção externa. Num superinvestimento do pensar, todos os pensamentos são percebidos realmente como de fora e por isso tido como verdadeiros. (Freud, 1923-1925/1987, p. 18) A paciente tinha a certeza de que um novo objeto fora incluído recentemente na sala da analista, um quadro na parede que sempre esteve lá. Supervisão O grande significado no enquadre institucional da supervisão do psicanalista é a transmissão da psicanálise, que também contribui para a identidade do futuro analista, já que o engajamento na relação de supervisão só será reconhecido e investido pelo analista quando o valor simbólico do supervisor estiver constituído como um objeto interno. Assim como uma mãe precisa abrir espaço no seu corpo para gerar um bebê, a mente precisa abrir um espaço psíquico para receber um novo objeto afetivamente investido. Abrir espaço psíquico causa dor mental. Ainda que conscientemente a função da supervisão ocupe um lugar de orientação na direção do tratamento, ao afrouxar os enlaces transferenciais-contratransferenciais, ao desvelar as identificações e liberar imagos primitivas, abre um espaço de caráter afetivo e mobilizador precipitado pela relação com o novo objeto-supervisão na mente do psicanalista, que pode causar sofrimento psíquico. Reportar a intimidade do trabalho com o paciente demanda esforço, empatia e confiança. Transcrever a sessão de um encontro que foi único e que se deu em outro momento supõe disciplina e a aceitação de que o relato nunca será fidedigno, e estará direcionado à escuta do supervisor que pode tomar o lugar de um objeto bom ou persecutório, incluindo assim, no corpo do setting, mais um personagem.
A atenção flutuante da analista, atenção uniformemente suspensa segundo Freud a denominou (Freud, 1911-1913/1976, p. 150), constituída por objetos internos, se deteve nas palavras da supervisora que ocupava uma cadeira especial no corpo do setting e na mente da analista, ainda que esta tentasse se desvencilhar de qualquer traço de memória, lembrava no meio da sessão do paciente do relatório, de sua supervisora a incentivando para ter coragem! afinal, com um paciente que vem três vezes por semana, você pode falar!, a voz da supervisora ecoava seja você mesma, com sua própria personalidade, para depois, em outro momento mais séria, apontar: tente não sair de sua função analítica. A paciente, em análise há quatro anos, entra com um vaso de flores e senta na poltrona em vez de, como de costume, deitar no divã. A imagem daquela mulher com a flor na sala de espera dizia para a analista que aquela seria a última sessão, ainda que nenhuma delas antes havia mencionado algo sobre sua saída. A analista recebeu mais três vasos de flores, durante todo tempo da análise. Esse abandono revelou a presença de mais um obstáculo a resistência dos pacientes ao tratamento, sua relutância em cooperarem na própria cura (Freud, 1893/1976). Afinal, para se criar uma experiência humana será preciso um corpo afetivo e disponível. É a presença viva da mãe que devolve ao bebê a sua existência por meio de dois aspectos, seu olhar e seus cuidados maternos. No sonho metapsicológico do corpo do setting, o fluxo dos objetos internos se dá dinamicamente, desde que a analista abre a porta para o primeiro paciente entrar, até que o último saia, há uma flutuação constante de personagens, objetos internos construídos e desconstruídos sob uma multidão de estímulos externos concretos e reais. E como a prática da psicanálise demanda do analista o desenvolvimento da capacidade de imaginar, devanear, seria possível, nesse sentido, conceber a essa altura, que esse corpo do setting, que foi habitado durante o dia por tantas imagens e associações inconscientes, personagens e seus símbolos, estaria pronto para aproveitar todos os restos diurnos das sessões e passar a noite inteira, sonhando, sozinho. Referências Andrade, O. (2002). Um homem sem profissão. Memórias e confissões. Sob as ordens de mamãe. In Obras completas de Oswald de Andrade (2ed.). São Paulo: Globo. (Trabalho original publicado em 1954)
Freud, S. (1976). Estudos sobre a histeria. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 2). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1893) Freud, S. (1976). O caso Schereber, artigos sobre técnica e outros trabalhos. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 12). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1911-1913)