Construindo interfaces entre História da Ciência e da Matemática e Ensino 1

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Transcrição:

Introdução Palestra proferida na Diretoria Regional de Educação São Miguel Construindo interfaces entre História da Ciência e da Matemática e Ensino 1 Fumikazu Saito PEPG em Educação Matemática/HEEMa/PUCSP PEPG em História da Ciência/CESIMA/PUCSP fsaito@pucsp.br Várias propostas que buscam articular História da Ciência/Matemática e Ensino têm sido apresentadas e apreciadas não só por educadores, mas também por historiadores da ciência no Brasil e no exterior. Da mesma forma que os educadores têm valorizado consideravelmente as contribuições da História Ciência/Matemática no Ensino, historiadores da ciência/matemática parecem estar convencidos de que a história tem um papel importante no ensino. Buscando transpor os limites acadêmicos nos quais desenvolvem suas pesquisas, eles têm voltado sua atenção não só para o papel da história na formação do cientista, mas também do professor de ciências e matemática (SAITO, 2010). Assim, o meu objetivo aqui é apresentar, à guisa de introdução, alguns pontos importantes a serem considerados ao lidarmos com a história da ciência e da matemática no ensino. A primeira pergunta que devemos fazer é: como construir uma interface entre duas áreas de conhecimento? Para tanto, é importante que tenhamos em consideração o que vem a ser a história da ciência e da matemática. Vamos entender aqui a matemática como ciência. Não faremos aqui a distinção entre ciência (física, química, biologia) e matemática. Isso porque historicamente tanto a matemática quanto às ciências naturais foram assim distinguidas a partir de finais do século XIX, quando passou a existir a categoria de ciências formais e ciências concretas (ou naturais). Nessa classificação, a lógica e a matemática fariam parte das ciências formais e as outras ciências ditas naturais, parte das concretas. Aristóteles (384 AEC-322 AEC) já considerava a matemática como ciência, juntamente com a filosofia primeira e a física (estudo da natureza) em sua classificação do conhecimento. Entretanto, entendia-se matemática num sentido muito amplo. Naquela época a matemática não era um corpo unificado e autônomo de conhecimento tal como hoje entendemos. A matemática, assim como as diferentes ciências que hoje reconhecemos como física, química e biologia, por exemplo, só adquiririam seus contornos definidos apenas no século XIX. Tendo isso em consideração, pergunto: o que é história da ciência? Certamente, não basta juntar história e ciência para daí concluirmos que temos uma área que se denomina "história da ciência". A história da ciência não é uma soma de áreas, mas outra área de conhecimento 1 CNPq - Projeto Universal: Formação continuada de professores de matemática na interação entre história da matemática e teoria das situações didática (CNPq 484784/2013-7).

diferente da ciência e da história. Ela tem contornos e métodos de investigação bem definidos. Sem entrarmos em detalhes epistemológicos, mas apenas para termos uma ideia do que é a história da ciência, vamos ver o que o historiador da ciência faz. Vamos ver, em linhas gerais, qual é o ofício do historiador da ciência. O ofício do historiador da ciência História da ciência, hoje, se constitui como o espaço privilegiado de reflexões sobre as diferentes formas de se elaborar e utilizar conhecimentos sobre a natureza, as técnicas e a sociedade. Ela trata das formas de elaboração, transmissão e adaptação de antigos conhecimentos sobre a natureza, as técnicas e a sociedade, considerando as três esferas de análise: historiográfica, epistemológica e contextual (ciência e sociedade). Por historiográfica, entendemos a escrita da história. Designamos por epistemológica a análise interna do documento, por meio da qual procuramos reconstituir a episteme de uma época, ou seja, a concepção de conhecimento, bem como os critérios de validade deste mesmo conhecimento devidamente contextualizado. E, por contextual, entendemos as relações sociais e culturais que podem ser detectadas no próprio documento, ou seja, mobilizaremos instrumentos de análise que possibilitem recortar a malha analítica na qual se inserem os documentos aqui considerados para análise. Essas três esferas serão articuladas conjuntamente, mobilizando instrumentos específicos de análise quando requeridos (BELTRAN, SAITO, TRINDADE, 2014). O historiador escolhe um tema e levanta suas fontes de pesquisa que são documentos (textos, imagens, cultura material) e literatura secundária, ou seja, estudos que já foram feitos sobre o tema escolhido. O historiador, entretanto, não busca apenas narrar a história. Ele procura compreender o processo da construção do conhecimento em diferentes épocas, tendo em consideração sua transmissão, apropriação, aplicação e elaboração. Tendo isso em consideração, pergunto: a história da ciência é a história de que "ciência"? Certamente não a da física, da química, da biologia e da matemática, visto que estes campos de conhecimento não eram, até o século XIX, áreas especializadas, tal como hoje as reconhecemos, embora possamos dizer que todos são campos de conhecimento científicos na medida em que a física, a química, a biologia e a matemática são ciências. Convém observar que antes do século XIX não existiam ainda "cientistas" embora existisse um corpo de conhecimentos relativos à natureza que podemos reconhecer como "ciência" na medida em que explicava o mundo e os fenômenos naturais. Na verdade, aquilo que hoje reconhecemos como ciência, ou seja, a ciência moderna, teve sua origem por volta dos séculos XVI e XVII e é ligada a essa nova ciência, filosofia natural, magia natural, ou filosofia experimental, entre outras denominações dadas à ciência naquela época, que nasceu a história da ciência. Assim, é a essa história da ciência é a história desta ciência moderna que teve origens por volta dos séculos XVI e XVII. Cabe observar, entretanto, que isso não significa que não houvesse ciência antes desse período. Muito pelo contrário, podemos dizer que antes da ciência moderna, havia uma ciência antiga que estava ancorada e fundamentada em outras bases. Daí que o historiador da ciência pode se dedicar à ciência antiga e medieval, além da ciência moderna (BELTRAN, SAITO, TRINDADE, 2014).

Assim, quando a história da ciência busca reconstruir a história da física, por exemplo, ela não procura narrar a história da física desde priscas eras até os dias de hoje, como se a física sempre tivesse existido. O mesmo ocorre com a história da química, da biologia ou da matemática. A história da ciência reconhece existir uma física, uma química, uma biologia ou uma matemática no passado porque o historiador da ciência parte do que são essas áreas de conhecimento nos dias de hoje. Desse modo, dizemos que há uma história da física, assim como da química, da biologia e da matemática, no sentido de que a história ali narrada referese a algum conceito que é da física. (BELTRAN, SAITO, TRINDADE, 2014). Quando nos referimos à história da ciência e ensino é importante ter em conta, portanto, que a ciência moderna não é um aprimoramento de uma ciência antiga. Além disso, os protagonistas da ciência moderna nem sabiam ao certo a que tipo de ciência se chegaria, embora todos estivessem envolvidos num mesmo "projeto". História da ciência e ensino Cabe aqui observar que grande parte do material em história da ciência disponível aos professores brasileiros encontra-se defasada, visto que ainda está pautada em tendências historiográficas que remontam ao início do século XX. Essas são narrativas históricas que privilegiam os aspectos internos à própria área do conhecimento, encadeando linear e progressivamente as diversas descobertas científicas. Essa perspectiva histórica linear e progressista permeia o material didático para o ensino de ciência e é veiculada pelos meios de divulgação científica. Nessa abordagem, a história é utilizada como fonte de exemplos na apresentação das teorias, e espera-se que os discentes construam conhecimento sobre a natureza da ciência por meio de conceitos científicos. Entretanto, esse tipo de história não favorece a aprendizagem porque os alunos são colocados diante de questões epistemológicas que sequer formularam e acabam sendo conduzidos a interpretações sobre um conceito sem terem estabelecido qualquer tipo de crítica sobre eles (SAITO, 2013). Os educadores têm buscado utilizar a história da ciência para propiciar uma formação em que o discente veja a ciência de modo crítico. Todavia, ao pautarem-se em questões formais da ciência, os educadores muitas vezes não percebem que uma história da ciência que apenas ilustre ou encadeie logicamente as ideias científicas do passado até o presente numa sequência cronológica e linear tende a reforçar a ideia de que a ciência progride e aprimora-se deixando de lado questões de ordem contextuais importantes. É importante levar em consideração que história da ciência não se encontra pronta e acabada. Ela não é um monólito, pois existem diferentes histórias da ciência, escritas em diferentes contextos e épocas. Uma história da ciência escrita por matemáticos e cientistas, por exemplo, será diferente daquela escrita por filósofos, por sociólogos e por historiadores. Isso porque é possível narrar uma história por diferentes perspectivas e grande parte do que é escrito em história depende de quem a escreve. Além disso, a história não é uma narrativa única e acabada. A história é sempre reescrita, pois as interpretações relativas a determinados

aspectos e processos divergem, algumas vezes, daquilo que comumente foi considerado. Isso ocorre em virtude do surgimento de novos documentos, novas abordagens metodológicas e, principalmente, da perspectiva historiográfica adotada pelo historiador (SAITO, 2013). A história da ciência sempre foi escrita. Entretanto, ela era muito mais uma justificativa da ciência que se estava formando do que uma história propriamente dita. Desse modo, ela tinha o perfil do debate que estava gerando a formação da ciência. Nos séculos XVI e XVII havia muitas discussões e grandes debates sobre a caracterização dessa nova ciência. Em linhas gerais, num extremo, encontravam-se aqueles que defendiam que esta ciência deveria retomar e complementar os conhecimentos clássicos, aqueles da Grécia antiga. Num outro, pensadores que defendiam que esses antigos conhecimentos deveriam ser descartados e que se deveria fundar a ciência moderna sobre novas bases, partindo da própria natureza. Entre esses dois extremos, entretanto, havia um matiz de opiniões defendidos por diferentes grupos, fomentando calorosos debates em que, muitas vezes, a história justificava suas posições e argumentos. Debates estes que continuaram nos séculos XVIII e XIX quando, gradativamente, como observa vai chegando a seu final (pelo menos oficialmente...) e vão se tornando também oficiais as 'regras do jogo' em Ciência. (BELTRAN, SAITO, TRINDADE, 2014). A história da ciência, assim, foi se transformando nas grandes narrativas sobre as conquistas científicas. Em outros termos, as descobertas são encadeadas de forma a apresentar ao leitor apenas as grandes realizações e os resultados, omitindo os processos que conduziram a tais resultados. E é essa história de "resultados" que o professor tem acesso geralmente. Podemos dizer que essa história é útil no sentido de que fornece informações cronológicas das realizações científicas do passado. Contudo, não dá acesso ao processo de construção de conhecimento, acabando por legitimar um conhecimento pronto e acabado. Ao dar ênfase aos grandes feitos e às grandes narrativas panorâmicas, a história da ciência apenas justifica o fazer o científico. Em linhas gerais, podemos dizer que a história nesse sentido aproxima-se de um discurso que busca legitimar o fazer científico moderno. Não quero aqui criticar a ciência moderna, nem desvalorizá-la. Apenas quero enfatizar que para se compreender a natureza da ciência é preciso considerar o processo de construção e não voltar-se apenas a aspectos formais. Ou seja, é necessário restituir a ciência na malha histórica e compreendê-la em sua historicidade. É nesse sentido que historiadores da ciência têm voltado seus esforços. A história da ciência busca compreender a ciência num contexto muito mais amplo em que envolvem aspectos não só científicos e formais, mas também axiológicos, políticos, econômicos, sociais, religiosos etc. Desse modo, ao pensarmos na articulação entre história da ciência e ensino, devemos também considerar essas diferentes dimensões relacionadas com a ciência. Mas isso não significa que o professor deva ser um historiador. É preciso que o professor dialogue com o historiador para que juntos construam uma interface entre história e ensino. Essa interface, entretanto, deve considerar não só aspectos historiográficos e epistemológicos, mas também didáticos e/ou pedagógicos. A aproximação da história do ensino, portanto, não deve ser apenas uma soma. Essas duas áreas devem se aproximar articulando diferentes teorias didáticas/pedagógicas

com as questões epistemológicas que emergem da história da ciência pautada em tendências historiográficas atuais. Nesse movimento, que em essência é dialético, o professor, ao se apropriar do conhecimento histórico, resignifica os objetos da ciência, pois o contato com o processo da construção deste mesmo objeto na história proporciona ao professor um "deslocamento" cognitivo. O contato com o mesmo objeto no passado conduz o professor a perceber os diferentes nexos conceituais que estão em torno do objeto na sua formação. O processo histórico, dessa maneira, propicia ao professor a experiência daquilo não lhe é familiar. Esse deslocamento permitirá ao professor levantar diferentes questões epistemológicas relevantes para o ensino e aprendizagem de ciência (SAITO & DIAS, 2013) Cabe observar que os documentos históricos são ricos em algoritmos, procedimentos e métodos que permitem explorar operacionalmente diferentes conteúdos. Entretanto, é preciso tomar o cuidado de não utilizar esses mesmos elementos transportando-os ao presente. Isso porque esses elementos estão ancorados numa concepção de conhecimento de uma época. Desse modo, a história da ciência não pode ser vista meramente como um repositório fixo de informações onde o professor possa "pinçar" o que lhe é conveniente para ser utilizado em sala de aula. Isso porque o que é mais importante na história não são os objetos em si, mas o processo da construção desses objetos. Considerações finais Visto que muitos manuais e livros didáticos de ciência, que buscam aproximar história e ensino, ainda reforçam a ideia linear e progressista do desenvolvimento do conhecimento científico, é preciso aproximar o educador do historiador da ciência. Isso porque a história da ciência pode ser um instrumento importante para o professor que, utilizando-se de fontes adequadas e atualizadas, possa promover uma visão mais crítica em relação à ciência e à construção do conhecimento científico. Todavia, é importante que o educador tenha consciência de que a História da Ciência não se encontra pronta e acabada. Ela não deve ser confundida pelo educador como um repositório fixo de informações onde ele poderia buscar recursos para articular história e ensino. A História da Ciência deve ser tomada como ponto de partida para resignificar os conteúdos e levantar discussões sobre diferentes modelos de conhecimento, para então levantar questões epistemológicas mais relevantes. Em outros termos, a História da Ciência pode contribuir para a formulação de questões epistemológicas importantes para se compreender a natureza da ciência. Referências bibliográficas BELTRAN, M. H. R.; SAITO, F.; SANTOS, R. N. dos; WUO, W. (Orgs.). História da Ciência e Ensino: propostas, tendências e construção de interfaces. São Paulo: Livraria da Física, 2009. BELTRAN, M. H. R.; SAITO, F.; TRINDADE, L. S. P. (Orgs.). História da Ciência: tópicos atuais. São Paulo: CAPES/Ed. Livraria da Física, 2010.

. (Orgs.). História da Ciência: tópicos atuais 2. São Paulo: Ed. Livraria da Física/CAPES, 2011.. (Orgs.). História da Ciência: tópicos atuais 3. São Paulo: Ed. Livraria da Física/CAPES/OBEDUC, 2014. BELTRAN, M. H. R.; SAITO, F.; TRINDADE, L. S. P. História da Ciência para formação de professores. São Paulo: Ed. Livraria da Física/CAPES, 2014 [no prelo] SAITO, F. História da Ciência e Ensino: em busca de diálogo entre historiadores e educadores. História da Ciência e Ensino: Construindo interfaces, 1 (2010): 1-6. SAITO, F. Continuidade e descontinuidade : o processo da construção do conhecimento científico na História da Ciência. Educação e Contemporaneidade. Revista da FAEEBA, 22 (39, jan,-junho 2013): 183-194. SAITO, F. & DIAS, M. S. (2013). Interface entre história da matemática e ensino: uma atividade desenvolvida com base num documento do século XVI. Ciência & Educação, 19 (1): 89-111.