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Transcrição:

Acta Pediatr. Port., 1999; N. 6; Vol. 30: 453-7 CLARA GOMES *, CONCEIÇÃO MOTA**, LURDES MORAIS'*, ARMANDO REIS *", CASTRO HENRIQUES **", ELÓI PEREIRA ** Serviço de Nefrologia Hospital Maria Pia Resumo A uropatia malformativa congénita é uma causa importante de insuficiência renal crónica (IRC) terminal na criança. O objectivo deste estudo foi avaliar a influência da uropatia na evolução e complicações em 42 transplantes renais (TR) efectuados em 39 crianças entre 1985-1996. Dividiu-se a população em dois grupos de acordo com a etiologia da IRC: uropatia (n=22) e outros diagnósticos (n=17) e compararam-se vários parâmetros clínico- -laboratoriais. A uropatia foi mais frequente no rapaz. A idade de transplante foi semelhante nos dois grupos embora a idade de diagnóstico de IRC tivesse sido mais precoce no grupo com uropatia. Verificaram-se episódios de rejeição aguda em 54% do grupo com uropatia e 37% no outro (p=ns). A incidência de infecção urinária após o transplante foi semelhante nos 2 grupos e maior nos primeiros 3 meses. Nenhum enxerto foi perdido por complicações urológicas. A depuração da creatinina apesar de ser discretamente inferior no grupo com uropatia não mostrava diferença significativa nos 2 grupos durante os 3 primeiros anos após o TR. A sobrevida actuarial do enxerto ao ano foi de 86 vs 88,5% e aos 5 anos foi 69 vs 80%, respectivamente no grupo com e sem uropatia (p=ns). A uropatia malformativa congénita não condicionou diferença significativa na evolução pós-transplante renal nesta população. Palavras-Chave: Transplante renal pediátrico, uropatia malformativa, infecção urinária pós-transplante. Summary Congenital Uropathy and Pediatric Renal Transplantation Urologic disease is a importante cause of end stage renal failure in children. To evaluate the influence of urologic disease on the outcome and complications of renal allograft, we studied 39 children who have received 42 renal transplants between 1985 and 1996. Twenty two patients with renal failure of urologic origin were compared with 17 patients with renal failure of other than urologic origin. The uropathy was most frequent in male patients. The mean age at transplantation was the same in both groups but diagnosis of renal failure was earlier in the uropathy. Acute rejection episodes occurred in 54% of the renal allograft of uropathic patients versus 37% of the other patients (p=ns). The urinary tract infection rate was similar in both groups and higher in the first three months post-transplantation. No kidneys were lost due to urological complications. The mean clearence creatinine at one and three years post-transplantation was similar. There was no difference in graft survival at one and five years between recipients with renal failure of urologic origin and other group: 86% versus 88,5% and 69 versus 80% respectively in two groups. The results suggest that in our patients uropathy did not influence negatively the outcome and complications of renal graft. Key-Words: Pediatric renal transplantation, congenital uropathy, urinary tract infection. Introdução Correspondência: Conceição Mota Serviço de Nefrologia Hospital Maria Pia Rua da Boavista, 827 4050 Porto * Hospital Pediátrico de Coimbra ** Hospital Maria Pia. *** Hospital Geral de Santo António. Aceite para publicação em 31/08/99. Entregue para publicação em 31/07/98. A uropatia malformativa congénita é uma causa importante de insuficiência renal crónica (IRC) na criança sendo responsável por 17 a 54% dos transplantes renais (TR) efectuados neste grupo etário ('). As malformações podem envolver o parênquima renal e aparelho urinário superior [hipoplasia renal congénita, síndrome de junção uretero-piélica ou uretero- -vesical e refluxo vesico-ureteral (RVU)] ou o aparelho urinário inferior (bexiga neurogénica, estenose uretral e válvulas da uretra posterior). No segundo caso o armazenamento e esvaziamento de urina são perturbados e o

454 aparelho urinário superior é secundariamente atingido (2' 5' 6). Os receptores com problemas do tracto urinário inferior eram excluídos inicialmente dos programas de transplante e, especialmente as crianças com uropatias malformativas, eram consideradas receptores de alto risco ( I). As complicações associadas à uropatia malformativa congénita na criança portadora de enxerto renal são variadas. A ureterohidronefrose pode produzir isquemia do parênquima do enxerto pelo aumento da pressão e, este efeito, pode agravar os fenómenos de rejeição aguda. A persistência de um rim nativo refluxivo ou hidronefrótico e a presença de estornas são potenciais focos de infecção e sépsis pela estase de urina que condicionam. Outras vezes o rim nativo é causa de hipertensão arterial (HTA) pela produção de renina. É indispensável prevenir estas complicações, que podem comprometer o enxerto e aumentar a mortalidade do receptor, através do diagnóstico e tratamento sistemáticos dos problemas urológicos antes do TR. Os centros de transplante têm diversos protocolos de actuação (2, 7-9). No Hospital Maria Pia a preparação da criança com uropatia envolve a pesquisa sistemática de RVU, de processos obstrutivos e de disfunção vesical. Na criança com RVU ou obstrução bilaterais, é efectuada a remoção do rim com menor função quando se inicia a terapêutica dialítica e do outro rim na altura do TR. Os estudos urodinâmicos permitem caracterizar a perturbação funcional e seleccionar a terapêutica médica mais adequada (2,5). Quando a terapêutica médica é insuficiente existem várias técnicas cirúrgicas para corrigir ou substituir bexigas disfuncionais (com megaureteres ou intestino) que possibilitam a estas crianças ser transplantadas (2, 7, 8) (alterações do aparelho urinário alto até à junção vesical do ureter) ou inferior (envolvendo a bexiga e a uretra), mas devido à fragmentação da amostra comparámos apenas alguns dos parâmetros referidos. Fez-se o cálculo da taxa de filtração glomerular (TFG) pela fórmula de Schwartz [estatura (cm) x 0,55 / creatinina plasmática (mg/dl)]. As crianças foram transplantadas no Hospital Geral de Santo António (HGSA) entre 1985 e 1996 e são seguidas no Hospital Maria Pia. Na análise estatística foram utilizados os testes de x2 e T de Student. A sobrevivência actuarial foi calculada pelo métodos das lifes tables e a sua diferença pelo log rank test. Resultados A uropatia malformativa foi responsável pela IRC em 56% das crianças. Neste grupo, a nefropatia de refluxo presente em 9 crianças, foi a patologia mais frequente seguida de 5 casos de válvulas da uretra posterior (VUP) e de 3 hipo/displasias (hipo/displ) renais congénitas. Na outra patologia.estavam incluídos 7 casos de glomeruloesclerose focal e segmentar (GEFS), 3 nefronoptisis (Nefron), 3 glomerulonefrites crónicas (GMN), 1 cistinose, 1 vasculite e 1 doença de Goodpasture (figura 1). RVU XECIEWEEMEEE VUP 212OSOKEEME=21 Hipo/Displ. O objectivo deste trabalho consistiu em avaliar a influência da uropatia malformativa nas complicações e evolução do TR num grupo de crianças. usem uropatia ECOM uropatia GEFS Nefron )11insessione GMN 2 4 6 8 10 n' crianças Métodos e Doentes Num grupo de 42 TR efectuados em 39 crianças com IRC de causa conhecida, procedeu-se à avaliação retrospectiva da patologia primária que conduziu à IRC, sexo, idade, idade de diagnóstico de IRC e intervalo de tempo até início de terapêutica substitutiva renal, a idade de TR e o tempo de seguimento, as cirurgias do aparelho urinário, as infecções urinárias (ITU), a terapêutica imunossupressora, as complicações que ocorreram após o TR, a evolução da função e sobrevida do enxerto. Compararam-se estes parâmetros nas 22 crianças cuja etiologia da IRC foi uropatia malformativa com outro grupo de 17 crianças com IRC de causa conhecida não urológica. As crianças com uropatia foram divididas em 2 subgrupos consoante a patologia urinária era superior FIG. 1 Patologia primária que mais frequentemente conduziu à IRC. Vinte crianças (51%) eram do sexo masculino, sendo no grupo com uropatia 16 (72,7%) e no outro grupo 4 (23,5%). A idade média de diagnóstico de IRC no grupo com uropatia foi 3,48 anos (A) e no outro grupo 6,78 A (p=0,056); o intervalo de tempo entre o diagnóstico de IRC e início de terapêutica substitutiva foi de 7,98 A e 3,46 A, respectivamente (p=0,015). No subgrupo com uropatia baixa o diagnóstico de IRC foi mais precoce mas o intervalo de tempo até início de terapêutica substitutiva foi significativamente maior: idade média de diagnóstico 1,01 A vs 6,03 A (p=0,041) e intervalo de 12,99 vs 7,98 A (p=0,0004).

455 A idade média de TR (uropatia: 12,99 A e outra patologia: 12,48 A; p=0,59) e o tempo de seguimento após TR (uropatia: 2,56 A e outra patologia: 2,84 A; p=0,69) foi semelhante nos 2 grupos. No grupo com uropatia as crianças necessitaram de múltiplas intervenções cirúrgicas ao aparelho urinário antes do TR, com uma média de 2,7 intervenções/ /criança. Na altura do TR 8 crianças com uropatia fizeram nefrectomia do rim nativo homolateral ao enxerto por RVU. A terapêutica imunossupressora de indução foi semelhante nos 2 grupos tendo sido utilizado na maioria dos casos um esquema triplo, com prednisolona (PDN), ciclosporina A (CsA) e globulina antilinfocítica (ATG) (figura 2). longo de 3 períodos: primeiros 3 meses, entre os 3 meses e 1 ano e após o ano. Os primeiros 3 meses correspondem ao período de maior imunossupressão e manutenção de um cateter ureteral que é retirado entre o segundo e terceiro mês. A incidência de ITU ao longo do tempo foi semelhante nos 2 grupos de patologia, com redução após o primeiro ano. A percentagem de ITU sintomática, definida pela existência de qualquer sintoma urinário ou febre, foi aumentando ao longo do tempo. Sessenta a 75% das ITU que ocorreram após o primeiro ano de TR foram sintomáticas, enquanto nos primeiros meses a maioria foi assintomática (quadro I). O agente mais frequente foi variando ao longo do tempo de forma semelhante nos 2 grupos. Nos primeiros 3 meses predominaram Enterococcus, Enterobacter e Pseudomonas, entre os 3 meses e o ano Enterococcus e a partir daí Escherichia coli e Klebsiella. A perda de enxerto ocorreu em 4 (16,6%) enxertos do grupo com uropatia (2 rejeições agudas, 1 trombose da artéria renal e 1 morte do hospedeiro) e em 5 (26%) com patologia não urológica (4 rejeições agudas e 1 recidiva de GEFS) (p=ns). I M sem uropafic e com uropalla I QUADRO I: ITU pós-tr FIG. 2 Terapêutica imunossupressora de indução prescrita em cada um dos grupos. Tempo pós TR N. ITU / ENXERTO ITU sintomática (%) Com uropatia Sem uropatia Com uropatia Sem uropatia Durante o tempo de seguimento, às 22 crianças com uropatia corresponderam 24 enxertos e às outras 17 crianças 19 enxertos (p=ns). No primeiro grupo ocorreram episódios de rejeição aguda em 14 (58%) dos enxertos dos quais 10 (71%) recuperaram totalmente, 2 (14%) motivaram perda de enxerto e 2 (14%) recuperaram parcialmente a função. No grupo da patologia não urológica houve episódios de rejeição aguda em 7 (37%) dos enxertos, que em 3 (43%) condicionaram perda do enxerto, assistindo-se nos restantes 4 (57%) a recuperação total. Após o TR as complicações urológicas foram mais frequentes no grupo com uropatia, com 6 hidronefroses ligeiras e 2 linfocelos sem indicação cirúrgica. Ocorreram complicações vasculares em 3 crianças deste grupo (1 trombose da veia renal, 1 estenose da artéria renal e 1 trombose da artéria renal), tendo sido possível conservar o rim nas 2 primeiras. No grupo sem uropatia ocorreu 1 estenose e 1 necrose de ureter, também corrigidas com êxito. Um doente cuja etiologia da IRC foi bexiga neurogénica faz cateterismo intermitente. A ITU antes do TR foi apenas diagnosticada no grupo da uropatia. Treze das 22 crianças (59%) tinham infecções repetidas que definimos como mais de 3 episódios/ano. Após o TR avaliamos a incidência de ITU ao < 3 meses 1,04 1,3 24 8 3 meses - 1 ano 0,63 0,82 27 21 > 1 ano esporádicas esporádicas 60 75 A depuração da creatinina média ao ano e aos 3 anos pós-tr no grupo com uropatia foi de 62,8 e 61,34 e no outro grupo 70,7 e 64,4 ml/min/1,73m2, respectivamente (p=ns) (figura 3). A sobrevida actuarial do enxerto ao ano foi de 86 vs 88,5% e aos 5 anos foi 69 vs 80%, respectivamente no grupo com e sem uropatia (p=ns) (figura 4). 80 70 ao 60 48 - m1imint1.73m2 p=ns 20 6M 1A 2A 3A uropatia -a-oom uropatia Tempo FIG. 3 Depuração da creatinina até três anos após TR em cada um dos grupos.

456 %110 100 90 80 70 60 50 ao 30 o 2 3 4 5 Anos -4- sem uropatia -o- com uropatia FIG. 4 Sobrevida actuarial do enxerto em cada um dos grupos. Discussão A uropatia malformativa constituiu uma causa importante de IRC (56%) o que está de acordo com o descrito noutras séries (1-4), sendo a nefropatia de RVU a patologia isolada predominante (21%). Nas crianças com uropatia o diagnóstico precoce e, sobretudo, a prevenção de ITU podem modificar a evolução natural desta patologia (101. Inicialmente, além do objectivo já referido, pretendiamos também comparar a evolução após o TR da uropatia alta e baixa mas o reduzido número de crianças em cada subgrupo tornou inviável este propósito. No entanto, foi possível verificar que a idade de diagnóstico de IRC foi mais precoce na uropatia baixa sendo o intervalo de tempo até ao início de terapêutica substitutiva mais longo. Alguns autores têm investigado factores de prognóstico precoces na evolução da patologia baixa, e níveis de creatinina ao ano de vida superiores a 0,8-1 mg/dl nas VUP são considerados um factor fiável de pior prognóstico (17, 10). As crianças com uropatia necessitam de múltiplas intervenções cirúrgicas antes do TR 11. 2' 8), o que se confirmou nesta população com uma média de 2,7 intervenções por criança. As complicações após o TR foram sobreponíveis nos 2 grupos. A rejeição aguda não foi significativamente diferente, embora tivesse ocorrido em 58% das crianças com uropatia e em 37% do outro grupo. Estes valores são mais baixos que os referidos de 60 a 80% em estudos cooperativos (3.4) (71% ao segundo ano nos receptores de rim de cadáver na última revisão do NAPTRCS (4)). A hidronefrose do enxerto ocorreu em 6 (27%) das crianças com uropatia mas, apenas num caso de bexiga neurogénica, condicionou agravamento da função renal e necessidade de tratamento com cateterismo intermitente. A ITU é a principal causa de morbilidade após o TR (8. "). Todas as crianças, como consta no protocolo do HGSA, mantiveram cateter ureteral até ao segundo/terceiro mês, o que nalguns estudos não tem mostrado aumento da incidência da ITU 1"). A evolução da incidência da ITU foi semelhante ao descrito na literatura 18, ", '2), ocorrendo a maioria no primeiro trimestre. A patologia primária ou a existência de ITU prévia ao TR não influenciaram esta incidência, o tipo de agente ou a presença de sintomas. Tal como referenciado por outros autores (8) a bacteriúria assintomática foi muito frequente nos primeiros 3 meses. Pelo risco potencial de envolvimento do rim e mesmo bacteriemia, deve fazer-se a sua pesquisa regular e tratar agressivamente. Outros autores defendem a utilização de profilaxia de ITU durante o primeiro ano (8, '2), podendo o uso de cotrimoxazol prevenir simultaneamente outra infecção comum após o TR, a infecção por Pneumocystis carinii. Após o primeiro ano de TR cerca de 70% das ITU foram sintomáticas o que facilita o diagnóstico. A depuração da creatinina e sobrevida de enxerto aos 5 anos não tiveram diferenças significativas nos 2 grupos, sendo os resultados comparáveis aos de estudos internacionais, como por exemplo a sobrevida de 59% aos 5 anos no receptor de rim de cadáver (englobando 22% de crianças com menos de 5 anos na altura do TR) do último NARPTCS (4). Ao contrário do que se pensava no início do TR os estudos cooperativos não têm demonstrado que a uropatia malformativa influencie negativamente a evolução do TR. Pelo contrário, a GEFS começa a emergir como a patologia isolada com pior prognóstico (4). Este estudo confirmou que na nossa amostra populacional, a uropatia não condicionou diferenças significativas na evolução após o TR. Bibliografia 1. A. John NK, William TS, E DV. Transplantation in children with end stage renal disease of urologic origin. J Urol 1980; 12: 508-12. 2. Churchill BM, Jayanthi RV, McLorie GA, Khoury AE. Pediatric renal transplantation in abnormal urinary tract. Pediatr Nephrol 1996; 10: 113-20. 3. Johnson RWG, Webb NJA, Lewis MA, Postlehwaite RJ, Dyer PA, Connolly JK. Outcome of pediatric cadaveric renal transplantation: a 10 years study. Kid Int 1996; 49 (S 53): 72-6. 4. Warady BA, Hébert D, Sullivan EK, Alexander SR, Tejani A. Renal transplantation, chronic dialisys and chronic renal insufficiency in children and adolescente. The 1995 annual report of the North American pediatric renal transplant cooperative study. Pediatr Nephrol 1997; 11: 49-64. 5. Houle AM, Gimour RF, Churchill BM, Gaumond M, Bissonette B. What volume can a child normally store in the bladder at safe pressure? J Urol 1993; 149: 561-4. 6. Jlandau EH, Chuchill BM, Jayanthi VR et al. The sensitivity of pressure specific bladder volume versus total bladder capacity as a mesure of bladder storage dysfunction. J Urol 1994; 152: 1578-81. 7. Sheldon CA, Geary DF, Shely EA, McLorie GA. Surgical considerations in childhood end stage renal disease. Pediatr Clin North Am 1987; 34: 1187-1207.

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