BEMBEM, Ângela Halem Claro. A Ciência da Informação e os Espaços Antropológicos: Uma aproximação possível? São Paulo: Cultura Acadêmica, p.

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Transcrição:

BEMBEM, Ângela Halem Claro. A Ciência da Informação e os Espaços Antropológicos: Uma aproximação possível? São Paulo: Cultura Acadêmica, 2013. 137p. Renato CRIVELLI A obra em questão é o resultado dos estudos desenvolvidos pela autora em seu curso de mestrado, realizado junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Estadual Paulista, campus de Marília. Dissertação defendida em 2012, seu trabalho foi um dos poucos selecionados pela Cultura Acadêmica a receber o selo da editora e ser publicado na versão e-book. Este fato demonstra a singularidade do trabalho de Ângela Bembem. No contexto do Programa de Pós-Graduação ao qual é vinculada, a autora desenvolveu seus estudos no âmbito da linha de pesquisa Informação e Tecnologia, o que justifica o viés tecnológico dado ao trabalho. No entanto, a relação deste universo com questões sociais e históricas é facilmente traçada. Ao não se limitar a questões estritamente técnicas das Tecnologias de Informação e Comunicação, como por exemplo, vocabulários de programação, Bembem deixa seu trabalho aberto para interpretações e usos por variadas áreas interessadas no estudo do desenvolvimento do indivíduo em sociedade. É também relevante para estimular pensamentos a respeito dos caminhos seguidos pelo ser humano ao longo do desenvolvimento de suas tecnologias, iniciando pela principal delas: o desenvolvimento da escrita. O ponto de partida para a argumentação de Bembem é a teoria dos Espaços Antropológicos, do francês Pierre Lévy. Com estudos direcionados à cibercultura, Lévy é professor do Departamento de Hipermídia da Universidade de Paris VIII. Enquanto filósofo da informação, Lévy tem como principal objeto de estudos o chamado ciberespaço. Para o francês, o ciberespaço é entendido como um ambiente onde é imbricada toda a comunicação virtual produzida. Para além disso, ele é um espaço que congrega os meios comunicacionais, as informações e, principalmente, os indivíduos. Neste sentido, o ciberespaço é onde se desenvolve a inteligência coletiva. O conceito de inteligência coletiva é muito pertinente para esta discussão, uma vez que vem atender a uma demanda cada vez mais presente nas sociedades atuais. Colaboração pode ser compreendida como a palavra-chave para a ideia de inteligência coletiva, pois se constrói com base na participação ativa de um coletivo de indivíduos Doutorando Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília UNESP Universidade Estadual Paulista, Campus de Marília Av. Hygino Muzzi Filho, 737, CEP: 17.525-000, Marília, São Paulo, Brasil. E-mail: renatocrivelli@yahoo.com.br Renato Crivelli 254

inseridos em um mesmo espaço. Tal qual é o que há de mais vigente nas concepções de sociedade, grupos ou coletivos. Destarte, o ciberespaço não é o único espaço onde há inteligência, e esta questão é trabalhada na teoria dos Espaços Antropológicos de Lévy. Para o autor, existem quatro Espaços Antropológicos, a saber: Terra, Território, Espaço das Mercadorias, e Espaço do Saber. Cada um destes Espaços possui características próprias que podem ser comparadas à evolução da humanidade através de seus momentos históricos. O Espaço Terra corresponde ao primeiro lugar onde o humano reside, com tecnologias pouco desenvolvidas. Neste Espaço, o humano tem como principal característica o nomadismo. Neste momento, as comunidades são ágrafas, cabendo principalmente à oralidade a tarefa da comunicação. Enquanto atributo da oralidade, as palavras contam com fluidez, sendo transmitidas de um sujeito a outro através das gerações. Por esta razão, não há durabilidade. As palavras orais são modificadas ou perdidas com facilidade, do mesmo modo que a memória biológica não dá conta de registrar e manter todo o conteúdo que recebe. O Espaço Território emerge com o desenvolvimento da escrita. Este Espaço pode ser compreendido como o Espaço das rupturas, dos distanciamentos. Neste momento, o humano passa a dominar a natureza, com o desenvolvimento de técnicas agrícolas e pecuárias, o que permite a fixação em um local e, sobretudo, a delimitação de territórios de domínio. A repercussão disso encontra-se no afastamento delimitado de famílias, tribos ou grupos. O Território estabelece limites. Do mesmo modo, com o desenvolvimento da escrita há um afastamento do conhecimento. Enquanto na Terra o conhecimento era inserido no sujeito, por meio da oralidade e da memória biológica, no Território ele é retirado do sujeito e fixado em um suporte que permite a escrita. Com isso, a fluidez da comunicação oral é substituída pela dureza da escrita e pela rigidez da permanência. Com o registro em suporte, a duração e o alcance do conhecimento são ampliados. Já no Espaço das Mercadorias, a característica é a velocidade. Seu surgimento está relacionado à Revolução Industrial. Neste momento, as tecnologias de comunicação passam a ser mais elaboradas. A necessidade deste período sugere a comunicação a distância, o que é viabilizado pela criação de instrumentos como o telégrafo e o telefone. O conhecimento, neste Espaço, passa a ser dividido hierarquicamente, sendo esta estrutura já existente no Território. Os novos meios de produção industriais garantem a aceleração das rotinas de trabalho, em oposição à manufatura. Redes de comércio globais tornam-se uma realidade cada vez mais vigente. Este é o momento que vivemos atualmente. Com relação ao Espaço do Saber, este ainda é uma previsão. Seu desenvolvimento será viabilizado por meio do desenvolvimento de Tecnologias de Informação e Comunicação. Neste Espaço, a voga será a inteligência coletiva, o conhecimento será 255 A Ciência da Informação e os Espaços Antropológicos

moeda de troca. O pensamento colaborativo, em substituição ao hierarquizado, será responsável pela instauração de redes de comunicação e informação responsáveis pela geração de conhecimento coletivo. O lugar onde este Espaço do Saber acontece é o ciberespaço. Valendo-se destas premissas, a autora fala com propriedade sobre as aproximações destes quatro Espaços não somente com a área de Ciência da Informação, como sugerido no título do livro, mas também das estruturas sociais em cada uma destas épocas. O modo como Bembem estrutura seu trabalho permite o acompanhamento evolutivo destes momentos por meio de conceitos muito bem delineados. Em cada um destes Espaços, a autora traça as identidades dos povos coetâneos e explana sobre as influências destes sistemas na organização social. Este tipo de análise por parte da autora confere ao trabalho um caráter analítico valioso. Do mesmo modo, Bembem apresenta observação aos olhos da semiótica, especialmente em relação ao segundo Espaço, o Território. Neste Espaço, a questão do afastamento entre sujeito e conhecimento é ricamente trabalhada por meio de considerações semióticas. A criação da escrita e a retirada do conhecimento do sujeito para ser inscrito no suporte faz emergir a questão do signo, do significado e do significante. O desenvolvimento da escrita e seu uso trazem consigo a ideia dos sinais gráficos (signos) investidos de significados, responsáveis por comunicar. É decorrência deste movimento a divisão entre sujeito e conhecimento. Com os signos gráficos representativos, as pessoas não têm mais a necessidade de conhecer pela memória; elas agora podem conhecer pela escrita e pela leitura. A mudança das sociedades ágrafas para o domínio da escrita, de fato, representa um dos mais importantes momentos da história das civilizações. Este tema já foi discutido por outros autores de forma criteriosa, como Walter Benjamin e Jacques Le Goff, por exemplo. Benjamin trouxe, em seu ensaio O Narrador, a questão da habilidade de narrar histórias, prática típica de sociedades sem escrita. A narrativa encontra, na formação de mitologias, rituais e imaginários, algumas formas de permanência na memória dos indivíduos e no contexto social da época. Tais elementos são responsáveis por embasar a construção de identidades sociais e memórias coletivas. Estes, aliás, são apresentados pela autora como a identidade do Espaço Terra; a identidade, o nome, as características que o identificarão. Para os outros Espaços, onde há domínio de escrita, as identidades serão outras, como a propriedade privada, no caso do Território. Já Le Goff segue pela via da permanência das memórias coletivas, ao apresentar a existência dos chamados homens-memória. Eles eram personagens centrais na formação das sociedades ágrafas (famílias, tribos, clãs), por serem os responsáveis por memorizar todos aqueles mitos produzidos ao longo das gerações e repassá-los aos novos indivíduos. Renato Crivelli 256

Os homens-memória representam, na prática, a questão apresentada por Benjamin em O Narrador. Ambos os autores, porém, relatam a morte da narrativa em decorrência do surgimento da escrita. Por contarem, então, com uma nova técnica capaz de registrar seus mitos e histórias, aprimorar técnicas mnemônicas deixa de ser uma prioridade, como sempre fora. Le Goff ainda faz menção ao pensamento de Platão, em sua obra Fedro, ao dizer que a escrita foi criada para matar a memória humana. Esta foi uma mudança de forte impacto nas sociedades da época. Atualmente vivemos algo semelhante. De acordo com o pensamento de Lévy, habitamos atualmente o Espaço das Mercadorias, mas caminhamos rumo ao desenvolvimento do Espaço do Saber. Este período de transição pode ser tão impactante quanto o ocorrido de Terra para o Território. A transformação do ciberespaço em uma realidade cotidiana trará, como diz a autora, uma realidade hipertextual. A escrita nos fornece a possibilidade de uma escrita linear, rígida e dura. Estamos habituados a este modo de escrita, mas não podemos dizer que a escrita pode ser entendida como uma representação da mente e do conhecimento humanos. Podemos entendê-la, no máximo, como uma extensão da mente humana. Isto se dá pelo fato de não ser a mente e o pensamento humanos lineares. Nossas cabeças trabalham em sistema hipertextual, traçando as mais diversas conexões sobre variados assuntos. Uma coisa leva à outra. Este é o sistema de funcionamento da mente humana. Neste mesmo sistema vislumbra-se o Espaço do Saber. Situado no ciberespaço, a inteligência coletiva será diretamente associada a este Espaço. Inteligência coletiva também pode ser entendida como inteligência colaborativa, ou seja, por meio da rede de computadores, a Internet, estabelece-se conexões ao redor de todo o mundo, com milhares de pessoas conectadas, de um modo ou de outro, entre si. O ciberespaço é um espaço virtual, ele não existe fisicamente. Também não é uma página de internet como estamos habituados. Ele é conceito, uma abstração onde ingressamos assim que nos conectamos à internet. A internet atua neste processo como via, como um instrumento que permite a existência do ciberespaço. Conceitos como Web 2.0 e Web Semântica estão presentes neste processo. Um caminho para converter a internet interativa, como conhecemos, a uma internet colaborativa, onde os usuários dos sistemas virtuais passem de expectadores para agentes ativos na formação de conteúdos e conhecimentos. Todos interligados na formação de um espaço comum, acessível, inteligente e estruturado. Este caminho nos leva para um novo contexto social. Uma realidade de menos produtos e mais serviços. O Espaço das Mercadorias é substituído por um Espaço do 257 A Ciência da Informação e os Espaços Antropológicos

Saber. Onde conhecer é mais importante que produzir. Onde significados e inter-relações são estabelecidos a todo instante por qualquer pessoa. Este é um espaço que não deve ser entendido como utópico. Ele está em fase de construção, lenta e contínua. A cada nova criação tecnológica é dado um passo rumo à implantação deste novo contexto de inteligência, conhecimento, informação e indivíduos. A obra de Ângela Bembem nos leva por caminhos que permitem vislumbrar este novo contexto, como uma apresentação do que temos por vir. Uma obra bastante instrutiva no sentido de fornecer subsídios para a compreensão daquela que será, em breve, uma realidade. Como já dito, o fato de a autora não se restringir a uma escrita tecnológica permite que pessoas de qualquer área se utilizem dos temas por ela tratados. Do mesmo modo, os elementos referentes à área de origem da autora, a Biblioteconomia, fornecem ainda mais subsídios para que estudiosos e pesquisadores possam compreender de modo mais refinado o lugar e a posição dos conhecimentos por eles produzidos neste novo cenário. Uma obra consistente, estruturada e escrita de forma exemplar, ganha muito mais ao ser disponibilizada para download gratuito na página da editora Cultura Acadêmica. Um sinal de que os modos de uso das tecnologias estão em fase de transição para melhor. Renato Crivelli 258