Tema III. Política Fiscal e a Crise Econômica Internacional



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Transcrição:

Tema III Política Fiscal e a Crise Econômica Internacional

Política Fiscal e a Crise Econômica Internacional 3º lugar Eric Lisboa Codo Dias * A Crise Econômica de 2008 e o Sistema Financeiro Nacional na Perspectiva pós-keynesiana * Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Assistente de Negócios Private do Banco do Brasil S.A.

Resumo Este trabalho visa a entender como se deu a crise de 2008 à luz da teoria keynesiana a fim de explicar a realidade contemporânea no Brasil. Para análise do cenário que se desenhou, esta abordagem conduzir-se-á à apreciação estritamente do nível lógico-teórico. Na primeira seção será introduzido o tema. Na seção 2, aprofundaremos a discussão da teoria pós-keynesiana acerca da teoria da firma bancária, preferência pela liquidez e sua abordagem no que tange ao comportamento dos bancos e seus efeitos sobre a oferta de crédito e a moeda. Na seção 3, abordaremos a hipótese de instabilidade financeira de Minsky e sua relação com a gênese da crise. Na seção 4, trataremos da crise com foco no Brasil e mostraremos sua relação com a política fiscal e a regulação. Por fim, na seção 5 concluiremos que a crise não deixou o Brasil de joelhos devido ao desenho e à regulação do Sistema Financeiro Nacional. Destarte, a crise em estudo levou o mundo tanto a repensar o próprio papel do Estado na economia quanto à necessidade de re-regular os sistemas financeiros domésticos, reestruturar o sistema financeiro mundial e intervir na economia por meio de políticas econômicas, sobretudo as fiscais, sendo o Brasil a prova empírica de tais afirmações. Contudo, é mister ter em mente que a regulação deve preocupar-se em diminuir a instabilidade na economia sem aumentar os custos de transação de forma significativa. Palavras-chave: crise econômica; Sistema Financeiro Nacional; regulação econômica.

Sumário 1 Introdução, 5 2 Discussão teórica pós-keynesiana, 6 2.1 A teoria da firma bancária, 7 2.2 A preferência pela liquidez, 11 2.3 A oferta de crédito, 13 2.4 A oferta de moeda, 15 3 Minsky e a origem da crise, 18 3.1 A instabilidade financeira de Minsky, 18 3.2 A gênese da crise, 21 4 A crise no Brasil, 24 4.1 Crise e política fiscal, 28 4.2 Crise e regulação, 30 5 Conclusão, 35 Referências, 37

1 Introdução Inovação. Para Schumpeter, esse termo cerne da economia capitalista tem um significado preciso: é a substituição de formas antigas por formas novas de produzir e consumir. Produtos novos, processos novos, modelos de negócios novos. O mundo, no qual as ideias da destruição criativa e da mão invisível predominavam, assistiu à pujança da economia mundial até meados de 2008. A partir desse fato, as circunstâncias surpreenderam até mesmo os mais pessimistas. Uma crise no centro econômico capitalista começou a se tornar aparente, cujo desenrolar colocou em xeque a arquitetura financeira internacional. Essa arquitetura era decorrente de inovações financeiras com o objetivo de alavancar as operações dos bancos (CROTTY, 2009) desde os anos 1980 no contexto da revolução conservadora liderada por Ronald Reagan e Margareth Thatcher sem ter de reservar os coeficientes de capital requeridos pelos Acordos de Basileia. Isso só foi possível porque os outros agentes dispuseram-se a assumir a contraparte dessas operações, ou seja, os riscos contra um retorno que, à época, parecia elevado. Esses agentes foram as instituições financeiras que formam o chamado shadow banking system. 1 Aliado a essas inovações, nas últimas décadas o conjunto de medidas de supervisão e regulação dos sistemas financeiros, na maioria dos países, baseou-se nas ideias de autorregulação. Segundo essas ideias, a mão invisível do mercado, por meio das práticas modernas de governança corporativa e de gestão, seria a maneira mais eficiente de evitar episódios que provocassem riscos sistêmicos. Esse princípio norteou, em grande parte, a revisão dos Acordos de Basileia, incorporando, na segunda versão (Basileia II), as notas das agências de ratings e os modelos internos de precificação de ativos e de gestão de riscos como critérios alternativos para a classificação dos riscos de crédito e incentivos à utilização de mecanismos de mitigação desses riscos, como os derivativos de crédito (MEN- DONÇA, 2008). Assim, a autorregulação aliada às inovações foram fatores que contribuíram para que a crise de 2008 se apresentasse. Quase dois anos após o início da crise internacional, podemos afirmar que o cenário esperado no Brasil não se consolidou, pois a intensidade da crise em nossa economia mostrou-se menor que o esperado. 1 Termo que inclui o leque de instituições envolvidas em empréstimos alavancados que não tinham, até a eclosão da crise, acesso aos seguros de depósitos e/ou às operações de redesconto dos bancos centrais. Incluem-se os grandes bancos de investimentos independentes, os hedge funds, os fundos de pensão e as seguradoras. Nos EUA, ainda se somam os bancos regionais especializados em crédito hipotecário e as agências patrocinadas pelo governo. Essa definição contém um elemento implícito que é importante sublinhar: as instituições financeiras do shadow banking system não estão sujeitas às normas dos Acordos de Basileia, as quais, no caso norte-americano, só se aplicam aos grandes bancos universais com operações internacionais. Finanças Públicas XV Prêmio Tesouro Nacional 2010 5

Ainda que incerto o desdobramento da crise mundial, com possibilidade de novas quebras ou uma piora generalizada da economia internacional, é de extrema importância entender como o Sistema Financeiro Nacional reagiu à crise e em que medida suas particularidades contribuíram para que os efeitos negativos externos não se firmassem como em outros países. Para a análise do cenário que se desenhou, esta abordagem conduzir-se-á à apreciação estritamente ao nível lógico-teórico da proposição pós-keynesiana, pois esta se mostra a mais adequada, visto que pretende compreender a dinâmica de economias monetárias contemporâneas em que falhas sistêmicas intrínsecas ao funcionamento destas levam frequentemente a situações de crise, além de seu exame acerca do comportamento dos agentes financeiros e seus efeitos sobre a oferta de crédito e, em última instância, sobre a demanda efetiva. Enfim, buscaremos entender como o Sistema Financeiro Nacional reagiu à crise e em que medida suas particularidades contribuíram para que os efeitos negativos externos não se firmassem como em outros países. Desse modo, investigaremos considerando o arcabouço pós-keynesiano as teorias que podem esclarecer-nos acerca da crise em questão, quais sejam, a da firma bancária, a da preferência pela liquidez, a da oferta de crédito e a da oferta de moeda. Em seguida, analisaremos as suposições de instabilidade financeira propostas, nomeadamente, por Minsky e a gênese da crise. Por fim, abarcaremos todas essas questões num estudo acerca da relação entre a crise no Brasil e a política fiscal e a regulação. 2 Discussão teórica pós-keynesiana Considerando a solidez dos alicerces econômicos reservas cambiais elevadas, bons indicadores de vulnerabilidade externa, sustentabilidade da dívida pública, etc. do nosso país e considerando ainda que o setor bancário brasileiro praticamente não opera com fundos de investimento que têm em sua carteira títulos externos de alguma forma relacionados ao mercado subprime norte-americano, os efeitos da crise financeira mundial sobre a economia brasileira não deixam de ser, a princípio, surpreendentes. Não que os efeitos da crise não se fariam, em algum momento, sentir, em função do impacto da própria recessão econômica mundial, mas talvez o que surpreenda são seus efeitos diretos e mais imediatos. A análise sobre o papel da autoridade monetária e dos próprios bancos na determinação das condições de crédito e liquidez na economia é fundamental para entender como os efeitos da crise de 2008 atingiram o Brasil e como esses agentes reagiram perante as abruptas mudanças de cenário econômico e expectativas. Distintos graus 6 Finanças Públicas XV Prêmio Tesouro Nacional 2010

de resposta endógena da oferta de crédito e moeda às pressões da demanda modificaram as relações entre a política monetária e o nível de atividade econômica. Para entender por que esses efeitos se fizeram sentir, iremos nos aprofundar na discussão teórica pós-keynesiana, analisando as ideias de vários autores. Considerando o extenso leque de ideias nessa linha teórica, apreciaremos, sobretudo, aquelas que mais se relacionam com a crise em estudo. Partiremos de uma análise mais específica, mostrando a Teoria da Firma Bancária, com base, especialmente, nos trabalhos de J. M. Keynes, H. Minsky, Luiz Fernando Rodrigues de Paula e Fernando José Cardim de Carvalho. Tomando por base essas ideias, abordaremos a questão da preferência pela liquidez e da oferta de crédito. Em seguida, iremos para uma análise mais macro, buscando entender a oferta de moeda. Desse modo, compreenderemos o papel que a preferência pela liquidez, a administração da firma bancária e a moeda exercem no arcabouço teórico keynesiano desvendando as implicações do conceito de moeda na Teoria Geral de Keynes e a transmissão da política monetária a fim de ajudar a explicar o fenômeno de instabilidade na economia monetária brasileira em 2008. 2.1 A teoria da firma bancária Segundo a proposição de Keynes, bancos são estabelecimentos capazes de criar crédito independentemente de depósitos anteriores, uma vez que a flexibilidade de suas operações permite ceder recursos sem ter disponibilidade em caixa: a moeda é criada pelos bancos na forma de compromissos que emitem contra si próprios. No Treatise on money foram ponderadas as relações que se formam entre a atuação dos bancos, considerados individualmente, e o sistema bancário como um todo, e criticou-se a visão de que os bancos, sendo receptores passivos dos depósitos, não podem emprestar mais do que seus depositantes lhes cederam anteriormente. Conforme Keynes (1971), um banco em mercado ativo cria, por um lado, depósitos por valores recebidos ou contra promessas e, de outro, anula depósitos devido a direitos praticados contra ele. Avaliando o banco individualmente, uma parte do total de seus depósitos pode ser compreendida como decorrência do processo ativo de criação de depósitos por esse banco, uma vez que seus clientes poderiam realizar pagamentos, com base em depósitos derivativos criados a seu favor para outros clientes desse banco; e outra parte seria fruto do processo de criação de ativo de depósitos de outros bancos que, para esse primeiro banco, seriam compreendidos como depósitos primários. Por sua vez, segundo a percepção clássica de intermediação financeira, os bancos, ao criarem moeda, estão apenas intermediando a transferência de recursos das unidades superavitárias para unidades deficitárias (GURLEY, 1955). São, Finanças Públicas XV Prêmio Tesouro Nacional 2010 7

assim, meros mediadores na transferência de recursos na economia, ou seja, sua conduta pouco afeta a determinação das condições de financiamento da economia. Os bancos comerciais operam, portanto, somente como uma correia de transmissão que intermedia a relação entre as autoridades monetárias e os agentes não financeiros. Foi James Tobin que concebeu os determinantes da atuação dos bancos comerciais com base em fatores relacionados às conveniências lucrativas dessas entidades. Criticando o que titulou de visão velha do multiplicador bancário, conforme o qual os bancos são criadores quase técnicos de moeda e a criação de moeda bancária resulta de um ajustamento passivo a uma dada razão de reserva, Tobin expôs que, na visão nova dos bancos comerciais, o volume de reservas não é um constrangimento para o tamanho do banco, na medida em que o uso que eles fazem das reservas disponíveis pelo sistema bancário é uma variável que depende das oportunidades de empréstimos e das taxas de juros. Desse modo, o tamanho do balanço dos bancos o volume de seus ativos e passivos seria apurado pelo seu comportamento otimizador, no qual, num equilíbrio competitivo, a taxa de juros requerida aos tomadores equilibra na margem a taxa de juros paga aos seus credores: Sem as exigências de reserva, a ampliação do crédito e dos depósitos pelo sistema bancário precisaria ser limitada pela disponibilidade de ativos a rendimentos suficientes para compensar os bancos dos custos de atrair e reter os depósitos (TOBIN, 1987). Destarte, a percepção de Keynes objeta-se à visão convencional, segundo a qual os bancos são instituições passivas, constituindo-se em meros mediadores de recursos entre agentes superavitários e deficitários. Nessa visão convencional, os estabelecimentos bancários não criam novos depósitos, apenas os recebem conforme as preferências dos depositantes e, consequentemente, não podem ofertar crédito além da quantidade de depósitos feitos pelos depositantes, pois, do contrário, levarão a situações insustentáveis de desequilíbrio. No entanto, para Keynes (1971, p. 22-23): Por toda extensão em que os clientes tomadores de empréstimos liquidam seus depósitos para clientes de outros bancos, estes outros bancos encontram eles próprios fortalecidos pelo crescimento de seus depósitos criados passivamente pela mesma magnitude que o primeiro banco se enfraqueceu; e, da mesma forma, nosso próprio banco encontra-se fortalecido quando quer que outros bancos estejam ativamente criando depósitos. Uma parte destes depósitos criados passivamente, mesmo quando eles são frutos de seus próprios depósitos criados ativamente, é, contudo, o resultado de depósitos criados por outros bancos. Assim, para Keynes, a criação de depósitos pelos bancos envolve duas dimensões: uma passiva, na qual os depósitos são criados quando as pessoas depositam seus recursos no banco e este concebe um depósito correspondente ao valor 8 Finanças Públicas XV Prêmio Tesouro Nacional 2010

embolsado, criando os denominados depósitos primários, cujo volume não depende do comportamento do banco; e outra dimensão ativa, quando o banco cria depósitos derivativos com base na dilatação dos seus ativos, como investimento ou adiantamento, e torna disponíveis os recursos para aqueles que pagam ou adiantam recursos na forma de depósitos à vista. De forma adversa, o banco precisa cancelar depósitos assim que são exercidos direitos contra ele, quer por saque direto dos seus clientes, quer atendendo a reivindicações de outras instituições bancárias. Portanto, a criação de depósitos resulta da maior ou menor agressividade da estratégia dos bancos: estes, ao utilizarem os depósitos como meio de pagamento, são capazes de emprestar recursos que não possuem. Nesse processo de criação de moeda bancária, existem fronteiras para a dilatação do banco. Usualmente, um banco busca criar depósitos derivativos no mesmo ritmo do sistema bancário, sendo sua conduta governada pela média do comportamento de todos os bancos. Isso porque, a não ser que a participação no total de depósitos de um banco no volume total de depósitos do sistema bancário mude, ele não pode amparar uma ampliação de seus ativos e, por conseguinte, de depósitos derivativos, bem à frente dos outros bancos. Se um banco procurar ampliar seus ativos em cadência superior à média do sistema, tal processo pode ocasionar um fortalecimento dos outros bancos, pois os depósitos derivativos criados por ele, que tenham suas reivindicações exercidas, irão se transformar em depósitos primários de outras instituições bancárias, acarretando um fortalecimento dos balanços dos bancos concorrentes, que teriam sua disponibilidade de recursos aumentada graças ao comportamento enérgico do primeiro banco. Desse modo, num segundo momento, a criação acelerada de depósitos derivativos, com base na dilatação de ativos, pode constituir uma redução em suas reservas. Conforme Keynes (1971, p. 25): Não pode existir nenhuma dúvida de que, usando a linguagem mais apropriada, todos os depósitos são criados pelos bancos ao retê-los. Certamente este não é o caso onde os bancos estão limitados àquele tipo de depósito, que, para ser criado, é necessário que os depositantes, movidos por sua própria iniciativa, tragam dinheiro ou cheques. Mas é igualmente claro que a taxa que um banco individual cria, de sua própria iniciativa, é sujeita a certas regras e limitações, e deve acompanhar o ritmo dos outros bancos, não podendo o banco em questão aumentar seus depósitos relativamente ao total de depósitos além da proporção de sua cota nos negócios bancários do país. Finalmente, o ritmo comum a todos os bancos membros é governado pelo volume agregado de suas reservas. Keynes expõe ainda que as taxas de reservas bancárias, uma vez fixadas por lei ou por força do hábito, tendem a ser conservadas pelos bancos numa mag- Finanças Públicas XV Prêmio Tesouro Nacional 2010 9

nitude estável ao longo do tempo; a conservação de uma taxa mais alta poderia denotar abrir mão de possibilidades de lucro, enquanto uma taxa menor poderia implicar dificuldades de liquidez. O banco, por um lado, busca pôr suas reservas que não rendem juros ao mínimo e elevar os empréstimos o máximo possível, maximizando seus lucros; de outro, ele é infligido a sustentar tantas reservas líquidas quanto possível, minimizando a incerteza da iliquidez. Assim, os bancos, como qualquer outra corporação, têm preferência pela liquidez baseados nas expectativas acerca de um futuro incerto, moldando seu portfólio de acordo com a lucratividade e sua escala de preferência pela liquidez. De tal escolha depende, em bom grau, a criação de crédito e depósitos bancários e, portanto, a oferta de moeda na economia. Além disso, os bancos são notados como agentes ativos que administram ambos os lados de seus balanços, o que denota que eles não tomam seu passivo como dado, pois procuram influenciar as preferências dos clientes por meio do gerenciamento das obrigações e do estabelecimento de inovações financeiras. Como uma empresa que tem expectativas e motivações próprias, sua conduta tem influência decisiva sobre as condições de financiamento da economia e, logo, sobre o estado de consumo dos agentes, afetando, desse modo, as variáveis reais da economia, como produto e emprego (PAULA, 1997). Do ponto de vista de autores keynesianos, como Hyman Minsky, Paul Davidson, Victoria Chick, Sheila Dow e Fernando Carvalho, bancos são entidades ativas que possuem expectativas e motivações próprias, cuja conduta, baseada na administração ativa de seu balanço, tem influência determinante nas condições de financiamento da economia. Tal aspecto, além de enfatizar a função basilar que os bancos exercem no estabelecimento das condições de financiamento da economia e na determinação do nível de atividade econômica, precisa ser ajustada com a visão de Keynes acerca da tomada de decisões sob condições de incerteza não probabilística e sua teoria de preferência pela liquidez. Enfim, para Keynes e pós-keynesianos a dinâmica da firma bancária afeta de forma determinante as condições e o volume de financiamento da economia e, por conseguinte, as decisões de gasto dos agentes, assim como os resultados da política monetária. A lucidez acerca do papel da autoridade monetária e dos próprios bancos na determinação das condições de crédito e liquidez na economia é essencial para compreender como os efeitos da crise de 2008 atingiram o Brasil e como esses agentes reagiram perante as abruptas mudanças de cenário econômico e expectativas. 10 Finanças Públicas XV Prêmio Tesouro Nacional 2010

2.2 A preferência pela liquidez Em sua Teoria Geral, Keynes explanou sua proposição da preferência pela liquidez, na qual a taxa de juros é a gratificação por se abrir mão da liquidez, uma medida do anseio daqueles que possuem recursos, de abrir mão do seu controle sobre eles, num modelo no qual havia apenas duas classes de ativos: moeda e títulos. A moeda é uma forma de riqueza, e a taxa de juros é o preço que norteia a escolha entre forma líquida e ilíquida de riqueza. Nesse arquétipo, os juros pagos aos títulos são uma compensação pelo seu menor grau de liquidez quando comparado à moeda, a qual possui o maior prêmio de liquidez entre os ativos. Em uma economia monetária, os agentes retêm moeda, seja porque planejam gastos para financiar motivo transação, seja porque estão especulando acerca do comportamento futuro da taxa de juros motivo especulação, ou, ainda, por precaução contra um futuro incerto, uma vez que a moeda é um ativo seguro com o qual se pode conduzir a riqueza no tempo motivo precaução. Desse modo, tanto a demanda por precaução por moeda quanto a especulativa são determinadas pela incerteza quanto ao futuro (KEYNES, 1973, p. 167). Ademais, Keynes generalizou sua teoria da preferência pela liquidez para uma teoria de precificação de ativos, não mais delimitada pelos conceitos de ativos líquidos e ilíquidos, mas baseada no princípio geral de que os distintos graus de liquidez precisam ser compensados pelos retornos pecuniários que determinam a taxa de retorno conseguida pela detenção dos diferentes ativos. Destarte, cada categoria de ativos possui sua própria taxa de juros, determinada em termos de preços correntes de mercado. Assim, a preferência pela liquidez é pensada em termos do trade off entre retornos monetários e o prêmio pela liquidez da moeda, acarretando, desse modo, substituições na estrutura de demanda por ativos, que se distinguem conforme combinações de retornos monetários e prêmio de liquidez que eles apresentam, sendo a liquidez apreciada quando a incerteza se eleva. Assim, pode-se determinar a preferência pela liquidez de uma instituição bancária conforme os diferentes níveis de liquidez associados aos diversos ativos ao alcance dela. Nessa abordagem, Keynes (1971, vol. II, p. 67) já havia apontado que o problema dos bancos, considerando o gerenciamento bancário no lado do ativo, relaciona-se ao arranjo de seu portfólio de aplicações: O que bancos estão ordinariamente decidindo não é quanto eles emprestarão no agregado isto é determinado por eles pelo estado de suas reservas mas quais formas eles emprestarão em que proporção eles dividirão seus recursos entre os diferentes tipos de investimentos que estão abertos para eles. Finanças Públicas XV Prêmio Tesouro Nacional 2010 11

Keynes decompõe as aplicações, de forma geral, em três categorias: letras de câmbio e call loans empréstimos de curtíssimo prazo no mercado monetário; investimentos aplicações em títulos de terceiros, público ou privado; adiantamentos para clientes empréstimos em geral. A respeito da rentabilidade dos ativos, os adiantamentos são mais rentáveis que os investimentos, e estes, por sua vez, mais lucrativos que os títulos e call loans, apesar de essa ordem não ser inexorável. No que diz respeito à liquidez, as letras de câmbio e os call loans são mais líquidos que os investimentos, pois são renegociáveis no curto prazo sem perdas expressivas, enquanto os investimentos são em geral mais líquidos que os adiantamentos. Esses adiantamentos abrangem diversos tipos de empréstimos diretos e são, comumente, as aplicações mais rentáveis, todavia são mais arriscadas quanto ao retorno do capital e ilíquidas, pois são de mais longo termo e não comercializáveis. Essa apreciação, quando conjugada com a teoria de decisões dos agentes sob condições de incerteza, aprofundada e desenvolvida por Keynes (1973; 1987) em trabalhos posteriores ao Treatise on money, permite dar foco às estratégias dos bancos com relação ao seu portfólio de aplicações considerando sua preferência pela liquidez. Instituições bancárias, assim como qualquer outro agente cuja atividade seja especulativa e demande algum grau de proteção e cuidado, têm preferência pela liquidez e moldam seu portfólio procurando harmonizar lucratividade com sua escala de preferência pela liquidez, a qual expressa a precaução de uma empresa cuja atividade tenha resultados incertos. Desse modo, é da escolha de que ativos adquirir e que obrigações emitir, balizada pela combinação entre liquidez e rentabilidade, que resulta a ampliação ou a retração da oferta de moeda, pois a moeda é criada quando as instituições bancárias adquirem ativos financiados pela emissão de uma obrigação própria desses estabelecimentos: os depósitos à vista. Sob condições de incerteza, as perspectivas dos bancos têm um papel nevrálgico na determinação do arranjo de seus portfólios de aplicações, isto é, seu ativo. Os estabelecimentos bancários demandam aplicações mais líquidas, não obstante menos lucrativas, devido à incerteza sobre as condições futuras, o que pode provocar um avanço em sua preferência pela liquidez, acarretando, portanto, um rearranjo em sua estrutura de ativos. Ativos líquidos e moeda, cujo retorno vem na forma de um prêmio de liquidez mais do que uma compensação pecuniária, concebem um dispositivo de proteção ao incerto, assim como de arrefecimento dos riscos intrínsecos à atividade bancária. Aos bancos, a detenção de ativos líquidos admite conservar opções abertas, até mesmo para especular no futuro. Dessa forma, as proporções em que as distintas aplicações são decompostas sofrem amplas flutuações, demonstrando as esperanças dos bancos quanto 12 Finanças Públicas XV Prêmio Tesouro Nacional 2010

à rentabilidade e à liquidez de seus ativos e quanto ao estado geral do mercado. Caso suas expectativas sejam boas, as instituições bancárias privilegiarão rentabilidade à liquidez, buscando aumentar prazos e submetendo-se a maiores riscos com relação a seus ativos, abrandando a relação entre ativos líquidos e ilíquidos em suas operações, resultando no aumento da participação dos adiantamentos e de ativos de maior risco no arranjo de sua estrutura ativa, como os empréstimos mais longos (PAULA, 1998). Contudo, caso suas expectativas sejam pessimistas e a incerteza seja alta, uma vez que o grau de confiança nas suas expectativas quanto ao futuro enfraquece, eles demonstram sua maior preferência pela liquidez e apontam suas aplicações para ativos menos lucrativos embora mais líquidos, fazendo baixar a oferta de crédito ao mercado. Ou seja, buscarão abreviar o prazo médio de seus ativos e a seguir uma posição mais líquida, por meio da manutenção de reservas excedentes ou aquisição de ativos de grande liquidez, como títulos do governo, atenuando, em contrapartida, a participação de adiantamentos no total do ativo e focando as aplicações em ativos de menor risco e mais líquidos. Portanto, as estratégias bancárias buscam explorar o trade off liquidez e rentabilidade. Habitualmente, de um lado, um estabelecimento bancário, ao focar liquidez em detrimento de maior rentabilidade, necessitará privilegiar ativos mais líquidos; por outro lado, ao procurar maior rentabilidade, precisará focar em ativos de mais alto risco ou de mais longo termo. Assim, instituições bancárias com preferência pela liquidez poderão não adequar passivamente a demanda por crédito, pois procurarão confrontar os retornos esperados com os prêmios de liquidez de todos os ativos que podem ser adquiridos. A suscetibilidade dos bancos em relação às demandas de crédito das pessoas depende, em grande parte, das preferências que guiam suas decisões de portfólio. 2.3 A oferta de crédito Para Minsky (1992a), os empréstimos bancários representam a troca de moeda hoje por acordos que representem moeda amanhã e, assim, a concessão de crédito depende, em boa parte, das expectativas do banco quanto à viabilidade dos empréstimos, isto é, da competência de o tomador embolsar receitas vindouras para cumprir seus contratos financeiros: Cada transação financeira envolve uma troca de dinheiro-hoje por moeda mais tarde. As partes que transacionam têm algumas expectativas quanto ao uso que o tomador de moeda-hoje fará com os fundos e de como esse tomador reunirá fundos para cumprir a sua parte do negócio na forma de dinheiro-amanhã. Nesse negócio, Finanças Públicas XV Prêmio Tesouro Nacional 2010 13

o uso de fundos pelo tomador de empréstimos é conhecido com relativa segurança; as receitas futuras em dinheiro, que capacitarão o tomador a cumprir as parcelas de moeda-amanhã do contrato, estão condicionadas pela performance da economia durante um período mais longo ou mais curto. Na base de todos os contratos financeiros está uma troca da certeza por incerteza. O possuidor atual de moeda abre mão de um comando certo sobre a renda atual por um fluxo incerto de receita futura em moeda (MINSKY, 1992a, p.13). A volatilidade dessas ponderações feitas pelas instituições bancárias, além de sua preferência pela liquidez, acarreta flutuações na oferta de crédito e, por conseguinte, no nível de investimento, produto e emprego na economia, como ficou bem claro na crise de 2008. Segundo Minsky (1986): Este ativismo do banqueiro afeta não apenas o volume e distribuição do financiamento, mas também o comportamento cíclico dos preços, da renda e do emprego. A partir de Minsky, pode-se estabelecer as seguintes posturas financeiras para os bancos em suas estratégias relacionadas às operações de crédito. Quando prevalece um maior grau de conservadorismo em termos da margem de segurança na administração do ativo bancário, as instituições bancárias focam o fluxo de caixa esperado como principal critério na concessão de fundos, sendo os empréstimos estruturados de tal forma que os fluxos de caixa antecipados preencham os compromissos financeiros, aparentando uma postura de financiamento hedge 2 tanto para o tomador quanto para o emprestador. Concomitantemente, as instituições bancárias buscam elevar a proporção de formas líquidas de aplicações no total do ativo, visando a atenuar a ocorrência do risco de crédito. Não obstante, caso as expectativas se tornem menos conservadoras, os bancos afrouxam os requisitos para concessão de crédito, os quais passam a ser baseados, sobretudo, no valor dos ativos dados como garantia. Consequentemente, amplia a participação de formas menos líquidas de ativos e com retornos mais longos, dando lugar à rentabilidade como principal critério a ser atendido na composição do balanço bancário, passando os bancos a adotar uma postura de financiamento especulativo. 2 Podemos diferir três condutas financeiras para os agentes na economia por meio da relação entre os compromissos de pagamento contratuais provenientes de suas obrigações e seus fluxos primários de dinheiro ao longo do tempo. Primeiramente, temos o comportamento hedge, o qual se refere a uma postura financeira cautelosa do agente, que significa que o fluxo de caixa esperado excede os pagamentos de dívida a cada período, ou seja, o agente manterá um excesso de receitas sobre o pagamento de compromissos contratuais a cada período, pois os lucros superam as despesas com juros e os pagamentos de amortizações. Temos, também, a postura especulativa, na qual uma unidade se torna especulativa quando, por alguns períodos, seus compromissos financeiros de curto prazo são maiores que as receitas esperadas como contrapartida desta dívida, o que a leva a recorrer ao refinanciamento para superar os momentos de déficit sem que haja um aumento da dívida, esperando-se que nos períodos seguintes a unidade tenha um excesso de receita que compense as situações iniciais de déficits. Por fim, temos a postura Ponzi, na qual os recursos líquidos não são suficientes nem mesmo para o pagamento dos juros devidos, tornando necessário tomar recursos adicionais emprestados para que a unidade possa cumprir seus compromissos financeiros, aumentando o valor de sua dívida (MINSKY, 1986). 14 Finanças Públicas XV Prêmio Tesouro Nacional 2010

Nesse caso, o refinanciamento de posições abrange ativos que proporcionam retornos em longo prazo por meio de dívidas de curto prazo, isto é, uma unidade especulativa financia suas posições de longo prazo com recursos de curto prazo. A viabilidade de um arcabouço financeiro especulativo depende tanto dos fluxos de lucro no caso das instituições bancárias dos rendimentos líquidos sobre seus ativos para pagar os juros sobre dívidas quanto do funcionamento do mercado financeiro no qual tais dívidas podem ser transacionadas. Comumente, um período de prosperidade da economia leva a uma redução ainda maior na preferência pela liquidez das instituições bancárias e uma anuência de práticas financeiras mais agressivas. Assim, os bancos afrouxam ainda mais seus requisitos na concessão de fundos, permitindo uma relação de fluxo de caixa especulativo e concedendo empréstimos baseados quase unicamente no valor dos colaterais, se inserido em um financiamento Ponzi uma ocorrência extrema de especulação. Desse modo, o banco atenua as exigências pelas quais concede fundos concomitantemente com o crescimento da participação de adiantamentos no total do ativo. Os empréstimos Ponzi podem, além disso, ser impostos a um banco, pois a renda obtida por ele pode cair abaixo de suas expectativas ou as taxas de juros elevam-se na rolagem especulativa do financiamento além dos níveis antecipados tanto pelo tomador quanto pelo emprestador. A busca das instituições bancárias por maiores lucros ou uma modificação nas condições do mercado financeiro induzem ao financiamento especulativo ou mesmo Ponzi. Destarte, a fragilidade ou a pujança global da estrutura financeira, da qual a estabilidade cíclica da economia depende, surge da gênese dos empréstimos feitos pelos bancos e também das próprias condições do mercado. Um foco no fluxo de caixa pelos banqueiros leva-os a sustentar uma estrutura financeira vigorosa; uma orientação dos banqueiros nos valores dos colaterais empenhados e nos valores esperados dos ativos induz à emergência de uma estrutura financeira mais fragilizada. Minsky (1986) demonstra, portanto, a natureza contraditória da atividade bancária: ao mesmo tempo em que é um componente essencial no financiamento da atividade de investimento e uma condição imprescindível para a operação satisfatória de uma economia capitalista, essa conduta pode induzir ou ampliar uma instabilidade financeira, acarretando um mau funcionamento da economia, especialmente em momentos de boom econômico, nos quais o nível de endividamento dos agentes tende a aumentar significativamente. 2.4 A oferta de moeda Ampliando a acepção de oferta de crédito, nesta subseção iremos abordar a oferta de moeda, cujo comportamento influencia o ritmo de investimentos e de Finanças Públicas XV Prêmio Tesouro Nacional 2010 15

atividades econômicas. No modelo apresentado na Teoria Geral de Keynes, o encontro das condições monetárias e da eficiência marginal determina o nível de investimentos que resulta ser a principal variável para explicar as variações no nível de renda e produção. Cabe aqui investigar em maior detalhe o comportamento do banco central e do sistema bancário em relação à oferta de moeda. A contenda sobre a oferta de moeda, tanto sob a ótica ortodoxa quanto sob a heterodoxa, é extensa. Contudo, não nos iremos ater a essa discussão. Dada a abordagem teórica deste trabalho, vamos explanar a heterodoxia expondo a visão estruturalista, pois sua análise mais detalhada dos mecanismos de oferta de crédito e moeda creditícia que concebe a influência autônoma do sistema bancário, além da atuação do banco central acomoda um melhor entendimento do comportamento das condições monetárias e abre maiores possibilidades à elaboração de políticas monetárias e à construção de parâmetros institucionais capazes de contribuir para a condução esclarecida da política econômica (FIOCCA, 2000). Estruturalistas aludem que o banco central pode restringir a expansão do crédito ao impor limites quantitativos às demandas por liquidez e impelir a elevação da taxa de juros quando a demanda por crédito excede os limites definidos pela autoridade monetária. Nesse caso, a oferta de moeda teria inclinação positiva no plano moeda-juros. Ademais, eles dão maior destaque ao papel dos bancos como elementos interventores no processo de criação de moeda, sopesando como suas decisões de portfólio afetam a disponibilidade final de crédito, assim como afirma Minsky (1986). Essa abordagem enfatiza o papel do sistema financeiro na determinação das condições monetárias vigentes, diversamente da abordagem horizontalista, a qual confere o comportamento das condições de crédito essencialmente à impossibilidade de que o banco central venha a indeferir reservas aos bancos. Por sua vez, a abordagem estruturalista consente relacionar os períodos de taxas de juros altivas à aceleração do desenvolvimento de inovações financeiras. Estas seriam instigadas com o intuito de aumentar a alavancagem do sistema financeiro em relação à base monetária. Taxas de juros elevadas reforçam o esforço de economizar na manutenção de recursos que não rendam juros ou que paguem taxas menores. Portanto, a ampliação da oferta de crédito não é um fenômeno rotineiro e sem tensões. A elevação do crédito não ocorre, nos períodos de maior demanda, pela atuação do Banco Central, mas apesar dela. Tratamento teórico no qual o sistema bancário exerce influência própria sobre as condições de crédito para os processos de expansão que não dependa apenas da postura do banco central tem respaldo no Treatise on money, no qual Keynes (1971) discute o papel do sistema bancário na viabilização da expansão dos investimentos por meio das transferências de moeda de certas esferas de circulação para outras. Conceitual- 16 Finanças Públicas XV Prêmio Tesouro Nacional 2010

mente, como os bancos também estão sujeitos à incerteza, é necessário supor que tais instituições tenham uma escala de preferência pela liquidez. Assim como os outros agentes econômicos, os bancos têm compromissos contratuais expressos em moeda e detêm ativos de liquidez variada. Como passivos e ativos não são impecavelmente casados, o aumento dos balanços, com a elevação dos passivos em relação ao capital próprio, acresce a exposição ao risco. A elevação das operações diminui a posição de liquidez bancária, uma vez que os intermediários financeiros habitualmente ofertam empréstimos de longo prazo baseados em passivos de mais curto prazo. Como ressalta Carvalho (1992, p. 150): Quando os bancos criam financiamentos, eles aceitam ficar temporariamente ilíquidos. Bancos emitem, tipicamente, passivos de curto prazo, tais como depósitos à vista ou certificados de depósitos a prazo. [...] Quando é feito um empréstimo a uma firma investidora, o banco está assumindo uma posição especulativa, pela absorção de um ativo, um empréstimo, que, em última instância, está apoiado em um ativo ilíquido, o bem de um investimento comprado pela firma. As instituições bancárias habitam o mesmo ambiente de expectativas que os gestores de ativos de capital reais e as famílias que possuem ações e outros ativos financeiros. A alavancagem de lucros retidos, isto é, o financiamento com débitos, no financiamento do investimento depende não só das perspectivas das firmas que estão investindo, mas também da disposição dos bancos para acompanhar tal expansão. Destarte, a abordagem estruturalista da endogeneidade da oferta de moeda reconhece a competência do sistema bancário para acompanhar aumentos da demanda de crédito para, assim, criar moeda bancária. Contudo, coerente com o conceito de preferência pela liquidez, e diversamente do que sustenta a visão horizontalista, a visão estruturalista não supõe que a capacidade e o anseio de acomodação pelo sistema bancário sejam infinitos nem que atendam inteiramente a qualquer grau de demanda por empréstimos. A evolução do mercado interbancário demonstra o ganho de eficiência no emprego das reservas. Enquanto cada instituição bancária administra seu grau de reservas independentemente das outras, as sobras de reservas de alguns bancos ficam ociosas, enquanto a carência de reservas de outros é suprida diretamente no redesconto. Assim, o sistema bancário como um todo manterá, em média, uma quantidade de reservas maior do que a soma das quantidades mínimas de reserva de cada banco. Conforme se desenvolve o mercado interbancário, as reservas ociosas de alguns bancos servirão para atender às necessidades de outros sem que estes últimos necessitem apelar para o redesconto. No final, a quantidade total de reservas mantidas pelo sistema aproximar-se-á da soma das reservas mínimas de cada instituição. O sistema financeiro pode, assim, elevar a proporção depósitos/ reservas. Enfim, as condições de oferta de moeda, compreendidas como decorrên- Finanças Públicas XV Prêmio Tesouro Nacional 2010 17

cia da política do banco central e das políticas bancárias, determinadas pela conduta dos bancos em relação às condições colocadas pela autoridade monetária, mas também por sua resposta às pressões relacionadas ao nível de renda, geradas no setor privado convergem para determinar o futuro ritmo de expansão da renda agregada (FIOCCA, 2000). A competência das condições de oferta de moeda para ratificar ou amortecer os movimentos de ampliação ou retração tal como colocados pelo setor privado é, desse modo, essencial para definir a direção macroeconômica. No que concerne às conjecturas de política monetária, a incerteza da taxa de juros de curto prazo e seu impacto apenas indireto e irregular sobre as variações da quantidade de crédito apontam para que se examine a conveniência de instrumentos de caráter regulatório na condução da política monetária. Se um dos efeitos mais importantes da política monetária é sua influência sobre o ritmo de expansão do crédito, então, caso o mecanismo indireto da taxa de juros falhe, faz sentido que a autoridade monetária atue mais diretamente sobre a oferta de crédito. A recíproca dessa proposição é verdadeira, como pudemos notar nas ações que serão explanadas nas seções posteriores do Banco Central brasileiro no período da crise de 2008. 3 Minsky e a origem da crise Nesta seção, inicialmente, estudaremos a visão de instabilidade econômica de Hyman Minsky, desvendando as contribuições desse autor para a compreensão de crises em economias com sistemas financeiros desenvolvidos e evidenciando sua relação com os desdobramentos da crise mundial. Depois, analisaremos como se desenhou em detalhes o colapso econômico de 2008. Desse modo, o entendimento da seção posterior será claro. 3.1 A instabilidade financeira de Minsky Juntamente com o colapso financeiro de 2008 e sua consequente crise econômica se esgotaram também as principais proposições que nas últimas décadas se haviam convertido na ortodoxia do pensamento econômico. Destarte, economistas, integrantes da mídia especializada e autores de políticas econômicas concluíram que é o momento de procurar teorias alternativas à atual ortodoxia que ajudem a entender como funcionam as economias contemporâneas. 18 Finanças Públicas XV Prêmio Tesouro Nacional 2010

Quiçá o mais venturoso resultado dessa procura tenha sido a redescoberta de Hyman P. Minsky. Como iremos expor a seguir, esse economista pós-keynesiano formulou sua hipótese de instabilidade financeira ao explanar que economias capitalistas em expansão são, de modo inerente, instáveis e predispostas a crises, pois a maioria dos agentes apresenta postura especulativa, resultando em práticas de empréstimos de alto risco. O avanço da fragilidade financeira é pautado por um paulatino e despercebido processo de dilaceração das margens de segurança de corporações e bancos em um contexto no qual o crescimento de lucros e rendas corrobora o avanço do endividamento. Dentre todas as proposições que compõem o arcabouço ortodoxo, talvez a mais contestada pela crise financeira recente seja a hipótese dos mercados financeiros eficientes de Eugene Fama (2001). Colocada de forma bem resumida, a teoria financeira desse autor antevê que, em razão da possibilidade de membros de mercados financeiros incorporarem em suas decisões todas as informações relevantes para a ponderação apropriada dos valores de ativos financeiros, os preços ativos negociados em mercados financeiros tendem a refletir diretamente e de forma hábil as variáveis que de fato determinam os ganhos gerados por esses ativos. Para esclarecer melhor, ativos financeiros transacionados em mercados satisfatoriamente desenvolvidos são precificados de forma adequada. Na ausência de modificações conjecturais que desfigurem os fatores objetivos peremptórios da rentabilidade de um ativo, flutuações nos preços de ativos financeiros deveriam ser incomuns e pouco expressivas. À hipótese da instabilidade financeira de Minsky (1992b) pode ser sopesada a antítese da hipótese dos mercados eficientes de Fama. Intenso estudioso de Keynes, Minsky entendeu que em uma economia monetária, na qual a atividade econômica é arranjada em função da busca por rendimentos nominais, é impraticável identificar elementos puramente objetivos que determinem a remuneração futura gerada por um ativo financeiro. Para Minsky, uma contribuição fundamental de Keynes em sua Teoria Geral teria sido a teoria de preferência de liquidez como uma teoria de precificação de ativos. Não obstante na versão de Minsky para a equação keynesiana do valor de um ativo as taxas de retorno tenham sido transformadas em valores nominais, os elementos componentes do valor de ativos foram conservados: o retorno esperado, o custo de carregamento, o prêmio de liquidez e o ganho de arbitragem. Desse modo, em razão de as expectativas de membros de mercados financeiros serem o principal ocasionador do valor presente de instrumentos financeiros e por essas opiniões serem, simultaneamente, guiadas pelas condutas desses mesmos preços, mercados financeiros tendem a ser dominados por interpretações diversas, as quais invalidam de forma crucial a hipótese de mercados financeiros Finanças Públicas XV Prêmio Tesouro Nacional 2010 19

bem comportados de Fama. Os preços de ativos financeiros e o mercado financeiro são tão voláteis quanto as opiniões dos partícipes desses mercados. A hipótese da instabilidade financeira inicia-se com a exposição de uma economia que experimenta um período de expansão estável, na qual as expectativas de produtores e investidores quase nunca são frustradas. Como já vimos, investidores cuidadosos financiam externamente a compra de novos ativos apenas modestamente, assegurando-se que seus fluxos de caixa futuros sejam suficientes para cobrir totalmente seus compromissos financeiros. Minsky definiu a posição financeira na qual o devedor consegue arcar integralmente com seus contratos financeiros sem apelar para novo endividamento como finanças hedge. A perseverança da relativa calmaria econômica faz com que agentes econômicos principiem a desdenhar a possibilidade da ocorrência de retrações inesperadas de renda. Para investidores, a economia em expansão origina oportunidades de alcançar retornos futuros opulentos, que por vezes obrigam a contração de empréstimos mais arrojados. Ainda que as obrigações financeiras totais compostas de juros e pagamentos de principal excedam a capacidade de pagamento dos investidores em cada período, seus fluxos de caixa são suficientes para que ao menos os juros sejam pagos. Minsky classificou a posição financeira na qual o devedor realiza apenas pagamentos de juros sobre sua dívida mantendo estável o tamanho de seu passivo de finanças especulativas. A prosperidade econômica caracterizada por estáveis taxas de retorno sobre o investimento reduz o prêmio de liquidez e, por conseguinte, o custo de aquisição de novo crédito, alimentando a demanda por ativos menos líquidos. O mercado financeiro passa a ser dominado por expectativas positivas, e a persistente disposição de inflação dos preços de ativos nutre ainda mais a demanda especulativa por esses ativos. Na ausência de regulação e políticas contracíclicas, uma bolha financeira, de maneira inevitável, acaba se constituindo. Possuidores de ativos em valorização têm agora a alternativa de refinanciar suas dívidas ainda que seus fluxos de caixa sejam insuficientes até mesmo para cobrir o pagamento de juros. Minsky classificou a posição financeira na qual o devedor acrescenta à sua dívida existente o valor de juros vencidos de finanças Ponzi. No caso de instituições em situação financeira de Ponzi, a não aquisição de refinanciamento para suas dívidas é fator suficiente para que se tornem insolventes. Segundo Minsky (1992b), economias capitalistas tornam-se mais frágeis financeiramente à medida que aumenta o número de instituições especulativas e Ponzi. Isso ocorre porque a sobrevivência financeira de entidades financeiras Ponzi depende da valorização de seus ativos usados como garantia para o refinanciamento de dívidas vencidas. A postergação do colapso financeiro em economias 20 Finanças Públicas XV Prêmio Tesouro Nacional 2010