ADÉLIA PRADO: A poesia em diálogo

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ADÉLIA PRADO: A poesia em diálogo Rosana Ribeiro Patrício A partir de sua súbita aparição, em 1976, com Bagagem, um livro de poemas repletos de religião, erotismo e cotidiano, Adélia Prado se afirmou como uma autora que, superando a invisibilidade doméstica, passou para o cenário público como intelectual e produtora de um discurso feminino na poesia brasileira contemporânea. Como afirma Nelly Gonçalves Valladares (1995, p. 289), Adélia aponta em direção a uma emancipação cada vez maior e faz da cotidianidade mais do que um tempo de luta pela sobrevivência familiar, tornando-o, também, seu momento de meditação mais profunda sobre a possibilidade de equilíbrio entre viver e morrer. Já a ensaísta Angélica Soares (1999, p. 142) afirma que seus textos acenam com um caminho de integração possível entre homem e mulher, o da consumação do erotismo que, sendo sempre sagrado, permite uma nova relação com o corpo e com o prazer. Nesse contexto, a poeta produz uma poesia que chama a atenção pela forma aparentemente simples de dizer essências do viver cotidiano, do ser perante a vida, a natureza e o semelhante, em busca de uma comunhão com seres e coisas, numa poesia de meditação e reconhecimento de si no tempo e no mundo. Um aspecto relevante da poesia de Adélia Prado é o registro de leituras de outros autores que lhe são caros. Sem qualquer receio de confessar influências e motivações, sua poesia dá uma mostra generosa da leitura de obras alheias. O leitor L ÉGUA & MEIA: R EVISTA DE LITERATURA E DIVERSIDADE CULTURAL 229

atento nota essas marcas desde os títulos dos poemas, nos seus versos, na concepção e no enfeixamento textual. Esse procedimento confere a Adélia uma característica marcante em sua poesia: o dialogismo lírico, em que ela estabelece relações com textos anteriores, em citações diretas e indiretas, em que seu texto e o texto referido se enriquecem no diálogo, remetendo um ao outro, sugerindo uma leitura em duo. O texto de Adélia e o texto do outro autor formam, assim, um terceiro em diálogo, cuja abordagem pode se estabelecer na busca de compreender os sentidos novos que se criam, os sentidos que, no texto citado, se ampliam, a convergência e/ou divergência de sentidos em que se pode visualizar o rendimento paródico e estilístico dessas relações. A citação como procedimento criativo pode ser compreendida como uma tática de produção textual, característica da autora, que em regra se motiva inicialmente pela admiração e pela homenagem prestada a escritores como Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Érico Veríssimo, Clarice Lispector, Fernando Pessoa. Segundo Antoine Compagnon (1996, p.17), toda citação é primeiro uma leitura assim como toda leitura, enquanto grifo, é citação. E adiante, continua o autor: A citação é um lugar de acomodação previamente situado no texto. Ela o integra em um conjunto ou em uma rede de textos, em uma tipologia das competências requeridas para a leitura; ela é reconhecida e não compreendida, ou reconhecida antes de ser compreendida (idem, p. 19). Com base nessa observação, percebe-se que a poeta mineira às vezes parte da sugestão de textos anteriores, imantados em sua experiência de leitura, cujas marcas afloram no seu processo de textualização poética, a partir de seus grifos da memória. Encontram-se referências diretas ou indiretas dessas leituras em sua poética. Um dos mais notáveis exemplos, exatamente pela citação explícita de Carlos Drummond de Andrade, é o poema Com licença poética, na abertura de Bagagem: Quando nasci um anjo esbelto desses que tocam trombeta, anunciou: Vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher, Esta espécie ainda envergonhada. Aceito os subterfúgios que me cabem, Sem precisar mentir. Não sou tão feia que não possa casar, acho o Rio de Janeiro uma beleza e 230 L ÉGUA & MEIA: R EVISTA DE LITERATURA E DIVERSIDADE CULTURAL, ANO 3, Nº 2, 2004

ora sim, ora não, creio em parto sem dor. Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos dor não é amargura. Minha tristeza não tem pedigree, já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou. Está clara neste texto a referência ao Poema de sete faces de Drummond. Demonstrando aproximação e empatia para com o poeta itabirano, Adélia Prado constrói seu texto em paralelo, imprimindo a marca do feminino, sua especificidade, sobre as características originais do poema, quais sejam, a fragmentação e as diversas faces do eu lírico moderno. O Poema de sete faces define a posição do poeta como gauche, figurativamente o ser torto, fora de centro, excêntrico, em tensão com a realidade convencional. Segundo Affonso Romano de Sant Anna (1980, p. 24), a obra do gauche é uma maneira de interferir na realidade, erige-se ela própria como uma realidade autônoma. A obra poética do gauche é essa concreção saída da defasagem entre o Eu e o Mundo, e que se constitui numa extensão do autor em busca de um elemento reparador ou descritivo de seu conflito. Afirma o eu lírico gauche drummondiano (1987, p. 3): Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. No poema de Adélia, o verso paralelo à ordem do anjo é: vai carregar bandeira, o que sinaliza o lugar de representação de uma causa, a guarda de um significado coletivo, revelando a poeta como portadora de um discurso comprometido com uma marca particular que, no caso, é o feminino. É precisamente essa marca que opera a transfiguração de anjo esbelto em contraposição a anjo torto, afirmando uma consciência da diferença e da superioridade do discurso da mulher. A condição feminina se positiva no discurso ao se situar no pólo distinto torto/esbelto. Logo após esse verso, tem-se uma caracterização da mulher como espécie ainda envergonhada, demonstrando o rompimento gradual das amarras da antiga condição feminina, ainda ligada aos papéis L ÉGUA & MEIA: R EVISTA DE LITERATURA E DIVERSIDADE CULTURAL 231

estabelecidos pela sociedade como as atribuições de casar/gerar filhos. Note-se que a anunciação do anjo já amplia o sentido das atribuições estipuladas pelo senso comum. Para Adélia Prado, escrever se reveste de um caráter de missão, como um desígnio. Refaz-se, portanto, a marca da tradicional sina da mulher, pois o paradigma casar/ parir/cuidar do lar se amplia para comportar sobretudo o ato de escrever. A poeta então assume escrever o que sente, como um compromisso com o seu ser mulher, antes mesmo de cumprir as demais atribuições femininas. A condição de escritora lhe dá meios de inaugurar linhagens/ fundar reinos a partir das múltiplas faces e das travessias que a literatura faculta, no processo de criação. Em vista da fragmentação do texto original de Drummond, percebe-se no poema de Adélia a unidade como possível, uma vez que o eu lírico desdobrável rechaça a dor como amargura e sobrepõe a alegria à tristeza. Esta última seria uma característica transitória. Já a alegria como plenitude do ser é um amálgama da vocação da escrita. Diz a poeta: escrevo o que sinto/ já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. Com isso, tem-se a legitimação da escrita, da tendência inata para escrever o que sente, que se referenda no dia-a-dia da poeta, a ponto de ela fundir as suas leituras com a poetização do seu cotidiano. Nesse rastro, como assevera Nelly Novaes Coelho (1993, p. 29) Adélia Prado surge de maneira desafiante para instaurar uma nova relação Eu-Mundo na qual a mulher e a poeta se assumem com força explosiva ou mansa, mas indomável, identificadas (cada qual a seu modo) com a própria força da vida. Nos últimos versos, o poema se fecha com a referência ao gauche drummondiano, substituindo-o agora por coxo, como uma condição exclusivamente masculina. A poeta alega ser a mulher/ela desdobrável, acentuando a versatilidade e as muitas faces femininas, ou seja, os subterfúgios que lhe cabem. A Licença Poética, referida no título, é a razão do fazer poético, como uma investidura do poder feminino de nomear o mundo. Tudo é possível em nome da arte/poesia, uma vez que o discurso feminino, sendo desdobrável, exerce-se como um feixe de possibilidades, signo pleno de versatilidade, que molda o real em discurso, como representação do mundo, segundo a ótica da mulher. Através do jogo de paralelismo semântico, marcado por uma fina ironia, a poeta rejeita a condição do poeta homem gauche/torto/coxo e assume a posição de desdobrável, como um lugar de discurso mais confortável, na relação do feminino (Eu-mulher) com o Mundo. O verso final é lapidar, em que se concentra a ironia do poema: Mulher é desdobrável. Eu sou. 232 L ÉGUA & MEIA: R EVISTA DE LITERATURA E DIVERSIDADE CULTURAL, ANO 3, Nº 2, 2004

Noutro poema, intitulado Todos fazem um poema a Carlos Drummond de Andrade, Adélia reitera, no trecho final, a diferença de perspectiva que marca a posição do poeta e a sua própria: Diz ela: Carlos é gauche. A mim, várias vezes, disseram: / Não sabes ler a placa? É CONTRAMÃO. E mais adiante, finaliza: Eu sou poeta? Eu sou? / Qualquer resposta verdadeira / e poderei amá-lo. Esta postura reafirma o diálogo em tom de homenagem, de afetividade e de assimilação, reconhecendo entretanto a especificidade dos discursos e sua inserção social diferenciada, considerando-se o modo como entram na cultura literária a perspectiva feminina e a masculina. Nessa mesma perspectiva, segue o poema Agora, ó José em que Adélia estabelece um jogo dialógico com o poema José, de Drummond, como uma resposta às questões existenciais propostas pelo texto. O tom adeliano é o da reflexão que conforta e anima: Resiste, ó José. Deita, José, / dorme com tua mulher, / gira a aldraba de ferro pesadíssima./ O reino do céu é semelhante a um homem / como você, José. Outros poemas como Reza para as quatro almas de Fernando Pessoa, Solo de Clarineta, Bilhete em papel rosa (dedicado a seu amado secreto Castro Alves), A maçã no escuro, Desenredo são outros exemplos dessa marca da poesia de Adélia Prado. A partir da citação, se cria uma instância de diálogo, seja pela adoção de imagens que se desdobram e se recompõem com novos significados, ampliados ou apropriados pelo campo semântico feminino, seja pelo simples registro de leitura. Ambos os procedimentos configuram, nos termos de Antoine Compagnon, o trabalho da citação, como uma forma de processamento da intertextualidade. Uma das riquezas expressivas de Adélia Prado é, sem dúvida, a sua poesia em diálogo. BIBLIOGRAFIA ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. 19 livros de poesia. 2 v. 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987. COELHO, Nelly Novaes. A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo: Siciliano, 1993. COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Belo Horizonte; Editora da UFMG, 1996. PRADO, Adélia. Poesia reunida. 3.ed. São Paulo: Siciliano, 1991. SANT ANNA, Affonso Romano de. Carlos Drummond de Andrade: análise da obra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. L ÉGUA & MEIA: R EVISTA DE LITERATURA E DIVERSIDADE CULTURAL 233

SOARES, Angélica. A paixão emancipatória. Vozes femininas da liberação do erotismo na literatura brasileira. São Paulo: DIFEL, 1999. VALLADARES, Nelly Gonçalves. Erotismo e o sagrado em Adélia Prado. In: DUARTE, Constância Lima (Org.). Mulher & Literatura. V Seminário Nacional. Natal: 1 a 3 de setembro de 1993. Natal: UFRN/ Ed. Universitária, 1995, p. 287-294. PATRÍCIO, Rosana Ribeiro. Adélia Prado: a poesia em diálogo. Légua & meia: Revista de literatura e diversidade cultural. Feira de Santana: UEFS, v. 3, nº 2, 2004, p. 229-234. Rosana Ribeiro Patrício é Doutora em Letras (USP), professora titular de Literatura Brasileira na Universidade Estadual de Feira de Santana, autora do livro Imagens de mulher em Gabriela de Jorge Amado (Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1999). 234 L ÉGUA & MEIA: R EVISTA DE LITERATURA E DIVERSIDADE CULTURAL, ANO 3, Nº 2, 2004