Arritmias cardíacas principais apresentações. clínicas e mecanismos fisiopatológicos. Cardiac arrhythmias clinical presentation and



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Transcrição:

Seção Aprendendo Rev Med (São Paulo). 2008 jan.-mar.;87(1):16-22. Arritmias cardíacas principais apresentações clínicas e mecanismos fisiopatológicos Cardiac arrhythmias clinical presentation and physiopathologic mechanisms Antônio Eduardo Pesaro 1, Juliano de Lara Fernandes 2, Alexandre de Matos Soeiro 3, Carlos Vicente Serrano Jr. 4 Pesaro AE, Fernandes JL, Soeiro AM, Serrano Jr. CV. Arritmias cardíacas principais apresentações clínicas e mecanismos fi siopatológicos. Rev Med (São Paulo). 2008 jan.- mar.;87(1):16-22. RESUMO: Ultimamente o conhecimento sobre arritmias cardíacas tornou-se algo extremamente necessário a todo médico generalista. É relativamente comum encontrarmos, em todas as especialidades médicas, indivíduos com algum tipo de distúrbio do ritmo cardíaco. Sua alta incidência e potenciais riscos ao paciente fazem com que medidas diagnósticas e terapêuticas devam ser prontamente realizadas. Neste artigo, relatamos quatro casos clínicos envolvendo o diagnóstico e tratamento de arritmias cardíacas comumente observadas em pronto-socorros, discutindo alguns dos mecanismos fi siopatológicos responsáveis pela sua gênese. DESCRITORES: Arritmia/fi siopatologia. Arritmia/diagnóstico. Arritmia/terapia. Eletrocardiografia. 1 Médico, Pós-graduando em Cardiologia, InCor HCFMUSP. 2 Médico, Doutor em Cardiologia/Pesquisador, InCor - HCFMUSP. 3 Médico residente em Clínica Médica HCFMUSP. 4 Médico, Livre-docente em Cardiologia, InCor HCFMUSP. Médico Assistente da Unidade Clínica de Coronariopatias Agudas (UCCA), InCor HCFMUSP. Endereço para correspondência: Alexandre de Matos Soeiro. Instituto do Coração, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Avenida Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 - Prédio II - 2 o andar -Sala 12. São Paulo, SP. CEP: 05403-901. e-mail: alexandre.soeiro@bol.com.br 16

Rev Med (São Paulo). 2008 jan.-mar.;87(1):16-22. Caso 1 Mulher de 78 anos, vinda de casa de repouso, chega ao pronto-socorro com história de confusão mental há 2 dias. A acompanhante conta que ela havia apresentado previamente a esta alteração queixa de náuseas e vômitos. Um eletrocardiograma havia sido realizado em consulta de rotina há duas semanas (Figura 1), pois a paciente passou em consulta com cardiologista para acompanhamento de insuficiência cardíaca congestiva, na qual teve sua dose de digoxina aumentada de 0,125mg para 0,25mg ao dia. Ao exame a paciente encontra-se discretamente pálida, confusa e com desidratação leve. A freqüência cardíaca está regular em 36 bpm e a pressão arterial é de 90X50mmHg. A ausculta cardíaca revela bradicardia regular sem sopros e a ausculta pulmonar, estertores crepitantes em bases bilaterais com freqüência respiratória de 24 rpm. Novo eletrocardiograma foi realizado (Figura 2). Figura 1. Eletrocardiograma mostrando os efeitos do uso do digitálico com alteração do segmento ST em forma de colher. Figura 2. Eletrocardiograma de paciente com bloqueio atrioventricular de 3º grau ou BAV total. Observe a independência do ritmo da onda P e dos complexos QRS. 17

Pesaro AE et al.arritmias cardíacas principais apresentações clínicas e mecanismos fisiopatológicos. Intoxicação digitálica O quadro acima refl ete uma situação extremamente comum na prática clínica que é a intoxicação digitálica. Os digitais, como a digoxina, atuam inibindo a bomba de sódio-potássio adenosina trifosfatase (ATP-ase), aumentando a concentração intracelular de cálcio 4. No sistema de condução os efeitos do digitálico são diferentes dependendo do nível do sistema observado: eles provocam um aumento do automatismo de focos ectópicos atriais, juncionais e ventriculares ao mesmo em tempo que retardam a condução do nó sinoatrial e do nó AV 4. No ECG o digital provoca, inicialmente, alterações na onda T, redução do intervalo QT, depressão característica em colher do segmento ST e aparecimento de ondas U 2. Em termos de alterações do ritmo, os digitálicos podem provocar uma gama de alterações desde taquicardias (por aumento do automatismo com atividade deflagrada) até bloqueios na condução quando predominam os efeitos sobre o nó AV 4. Bloqueios átrio-ventriculares Os bloqueios átrio-ventriculares (BAVs) se referem ao atraso ou a completa interrupção da condução do impulso elétrico entre os átrios e os ventrículos 4. A classificação dos BAVs se dá pelo grau de atraso na condução do nó atrioventricular: - Bloqueio de 1º grau: aumento do intervalo PR acima do normal de 0,2 segundos. Toda onda P, entretanto, leva à condução de um QRS 2. - Bloqueio de 2º grau: divide-se em tipo I e II de Mobitz. No tipo I há um aumento progressivo do intervalo PR até que não ocorra condução de uma onda P, quando, então, o mecanismo é reiniciado. No tipo II ocorre uma condução do tipo tudo ou nada, isto é, a interrupção de condução no nó AV é brusca e é intercalada com conduções normais da onda P em número variável 2. - Bloqueio de 3º grau: também conhecido como BAV total, neste há uma interrupção completa da passagem do estímulo e ocorre uma dissociação entre a condução atrial e os ventrículos, que assumem ritmos independentes 2. Um dos mais importantes aspectos na análise dos bloqueios átrio-ventriculares é determinar qual é exatamente a altura do bloqueio. Para isto se faz necessário a utilização do mapeamento intracardíaco da condução no feixe de His. Esta condução pode ser dividida em intervalos AH e HV, representando a condução do átrio até o início do feixe de His e do feixe de His para o ventrículo 2. Em situações nas quais o bloqueio encontra-se na porção AH (geralmente o bloqueio de 1º grau e o Mobitz tipo I), a gravidade da doença é menor e pode ser tratada de forma mais conservadora. Nos casos onde o bloqueio é encontrado na porção HV, também chamado de bloqueio infra-his, há um maior risco para o paciente e o tratamento usualmente é mais agressivo com possível utilização de marcapassos, por exemplo 2. Conclusão do caso: a paciente teve seus níveis de digoxina e potássio sérico medidos em 5.0mg/ dl e 2.8mg/dL, respectivamente. Um marcapasso temporário foi implantado por via percutânea por um dia até a recuperação parcial da condução atrioventricular da paciente. A digoxina foi interrompida por alguns dias e o potássio reposto por via intravenosa. A paciente recebeu alta com uma dose de 0,125mg da droga. Caso 2 Paciente é trazido desacordado ao setor de emergência do pronto-socorro por ter perdido a consciência há poucos minutos enquanto aguardava atendimento na sala de espera. O senhor aparenta ter cerca de 50 anos de idade e não responde ao primeiro contato. As vias aéreas são abertas e verifi ca-se que ele não respira. Duas ventilações de resgate são feitas, não se reconhece pulso carotídeo e aplica-se monitorização cardíaca através das pás de um monitor/ desfi brilador da sala. O ritmo observado encontra-se na Figura 3. Durante o atendimento, a acompanhante do paciente relata que ele é tabagista de 2 maços por dia e acordou há 2 horas com queixa de dor de forte intensidade no peito irradiada para membro superior esquerdo. A dor não melhorou desde então e o paciente começou a fi car pálido e com sudorese fria, sendo trazido ao pronto socorro. Figura 3. Eletrocardiograma mostrando quadro de fi brilação ventricular com completa desorganização elétrica. 18

Rev Med (São Paulo). 2008 jan.-mar.;87(1):16-22. Fibrilação ventricular A fibrilação ventricular é caracterizada por uma completa desorganização do ritmo cardíaco com múltiplas áreas dentro dos ventrículos apresentando grandes variações na despolarização e repolarização, impedindo que eles se contraiam como uma unidade. Devido à ausência de contração organizada, não existe débito cardíaco 2. A causa mais comum de fibrilação ventricular é isquêmica. Durante o infarto agudo do miocárdio a rápida queda de tensão de oxigênio no músculo cardíaco provoca uma profunda alteração metabólica nos miócitos, o que gera um acúmulo intracelular de H +, Na + e Ca +2, metabólitos lipídicos e H + e K + extracelular, levando a um retardo da condução elétrica e contribuindo para o substrato de fenômenos de reentrada 4. O fenômeno de reentrada, neste caso, dá-se na interface entre o músculo não-isquêmico e a área lesada, que, com a heterogeneidade tecidual, leva à formação das características necessárias para as reentradas: condução lenta e bloqueio unidirecional. Outro mecanismo importante nas fi brilações ventriculares pode envolver também o aumento do automatismo de canais de Ca +2 no tecido lesado que fica parcialmente despolarizado 4. No músculo que já sofreu isquemia prévia e apresenta cicatrizes fi bróticas, o tempo de repolarização daquela área fi ca mais prolongado devido à mudança da característica tecidual local. Se isto por si só já leva a uma maior susceptibilidade à quadros arrítmicos, novos eventos isquêmicos agudos podem desencadear ainda mais facilmente eventos de taquicardia e fibrilação ventricular 4. Conclusão do caso: O paciente foi desfibrilado com 360 joules após o diagnóstico de fibrilação ventricular e retornou em ritmo sinusal com supradesnível do segmento ST na parede anterior do miocárdio. Foi feito o diagnóstico de infarto agudo do miocárdio com supradesnível de segmento ST e o paciente foi levado à sala de hemodinâmica para realização de angioplastia primária. Caso 3 Homem de 45 anos de idade procura o pronto socorro por queixa de palpitações. Refere que já teve o quadro diversas vezes e, mesmo quando o coração está normal, ele sente algumas vezes falhas no batimento cardíaco. Nega tontura, falta de ar, confusão mental ou dor no peito. Diz ter o coração aumentado e que toma remédio para doença de Chagas. Ao exame físico encontra-se em bom estado geral, com pulso de 160 batimentos por minuto, PA de 90X60mmHg, ausculta cardíaca com bulhas normais e sopro sistólico regurgitativo em foco mitral +3/6 irradiado para axila, com ausculta pulmonar normal. Mostrou uma fita de ECG prévio que trazia na carteira (Figura 4) e realizou ECG no pronto-socorro (Figura 5). Figura 4. Eletrocardiograma parcial mostrando a presença de extra-sistolias de origem ventricular monomórfi cas. Figura 5. Eletrocardiograma de paciente com quadro de taquicardia de QRS largo, sugerindo uma taquicardia de origem ventricular monomórfi ca. Pode-se observar neste ECG a presença da dissociação das ondas P e dos complexos QRS. 19

Pesaro AE et al.arritmias cardíacas principais apresentações clínicas e mecanismos fisiopatológicos. Extra-sistolia ventricular As extra-sístoles ventriculares (Figura 4) podem resultar do disparo de focos de automatismo ectópico ou de reentrada. São despolarizações que aparecem em um dos ventrículos antes do próximo impulso vindo nó SA 4. A condução, por se tratar de foco ectópico, é mais lenta, produzindo complexos QRS de formas alargadas e variadas e seguidas de pausas compensatórias até a próxima onda P. Podem ocorrer isoladamente, ter mais de uma forma (polimórfi cas), alternando-se com o ritmo normal (bigeminismo) ou de forma esporádica 2. Caso apareçam em número de 3 ou mais em sequência recebem o nome de taquicardia ventricular não sustentada (se durarem menos de 30 segundos) ou sustentada (caso durem mais de 30 segundos) 2. Taquicardias ventriculares São defi nidas por três ou mais batimentos de origem ventricular numa freqüência acima de 100 batimentos por minuto (Figura 5). Podem ser de foco único ou múltiplo levando a quadros bem tolerados até a comprometimento hemodinâmico grave 2. Embora mecanismos focais possam contribuir de alguma forma para o desenvolvimento das taquicardias ventriculares, duas situações distintas representam as principais formas de manifestação das taquicardias. Na primeira delas, geralmente ocorrendo em corações estruturalmente normais, as taquicardias denominadas de idiopáticas ocorrem em pacientes que apresentam um prolongamento do segmento QT (QT longo) ou padrões de condução alterados do QRS 4. Em casos de corações estruturalmente alterados, com infartos prévios ou no caso da doença de Chagas ou outras miocardiopatias, o principal fenômeno é o de reentrada, sobretudo a macro reentrada envolvendo circuitos anatômicos sempre definidos pelas três propriedades de bloqueio unidirecional, presença de vias com velocidade diferentes de propagação e velocidades diferentes de refratariedade. Também podem ocorrer situações de reentrada funcional, onde não existem barreiras anatômicas, mas uma série de fi bras contíguas com propriedades eletrofi siológicas diferentes 4. Conclusão do caso: O paciente foi tratado com amiodarona por via intravenosa e sua taquicardia foi revertida para ritmo sinusal. O paciente recebeu alta em uso da medicação por via oral e para subseqüente acompanhamento ambulatorial. Caso 4 Mulher de 28 anos apresenta-se ao ambulatório em consulta de rotina com queixa de piora há 5 dias de falta de ar. Refere que previamente apresentava-se com dispnéia aos esforços grandes apenas e agora se cansa e fi ca ofegante mesmo nas tarefas de rotina, como varrer a casa. Também notou que sente falhas nos batimentos cardíacos com sensação de que coração está batendo de forma irregular. Ao exame apresenta-se em bom estado geral, com pulsos irregulares e com amplitude variável, ausculta pulmonar com estertores crepitantes em bases bilaterais, ausculta cardíaca com sopro diastólico em rufl ar, ausência de reforço pré-sistólico e primeira bulha variável; edema + 2/4 em membros inferiores até tornozelos, bilateralmente. O ECG da paciente pode ser observado na Figura 6. Figura 6. Presença de fi brilação atrial no eletrocardiograma com resposta ventricular lenta. Note a ausência de onda P e a irregularidade discreta dos complexos QRS. 20

Rev Med (São Paulo). 2008 jan.-mar.;87(1):16-22. Fibrilação atrial A fi brilação atrial (FA) é uma manifestação de múltiplas ondas simultâneas de ativação de focos atriais 3. O padrão de atividade na FA é aparentemente caótico, com despolarizações na freqüência de 300 a 400 vezes por minuto. O resultado desta desorganização é a perda da contração atrial coordenada com possíveis conseqüências hemodinâmicas 1. As causas da fi brilação atrial são variadas, desde o aumento do tamanho atrial com desorganização de suas fi bras, como nas valvopatias mitrais como é o caso da paciente acima com estenose mitral a outros fatores associados, como hipertensão, diabetes ou doenças pulmonares 1. A FA pode existir também isoladamente recebendo o nome de lone fibrillation, uma condição possivelmente associada com estados infl amatórios crônicos 1. O mecanismo de formação e propagação da FA tem várias teorias, a mais recente delas estabelecendo que focos ectópicos atriais de origem nos óstios das veias coronárias possam estar envolvidos na fi siopatologia da doença 1. A presença de terminações do nervo vagal nestes óstios pode resultar numa lentifi cação do ritmo sinusal com aumento do tônus parassimpático atrial. A ablação do tecido próximo aos óstios das veias pulmonares pode ser realizado com possível melhora da fi brilação atrial 3. A manutenção da fi brilação atrial parece ser dada também pela teoria das múltiplas ondas em circuitos de reentrada de pequeno tamanho (Figura 7). O aumento da cavidade atrial gera circuitos de tamanhos cada vez menores com o aparecimento, então, de múltiplos focos ao mesmo tempo 3. Figura 7. Mecanismo de múltiplas ondas presentes na fi brilação atrial responsáveis pela manutenção do ritmo Flutter atrial O fl utter atrial, embora também se caracterize pelo fenômeno da reentrada, tem características distintas da fi brilação atrial. Em primeiro lugar, o ritmo do flutter atrial geralmente é regular, com freqüências atriais em torno de 250-350 batimentos por minuto 2. Um ECG típico de fl utter atrial está demonstrado na Figura 8. Na fi siopatologia do fl utter atrial os circuitos de reentrada geralmente são maiores e mais organizados que os da fibrilação atrial. O istmo cavotricuspídeo freqüentemente está envolvido neste circuito de macro-reentrada e é facilmente ablacionado quando participa na etiologia deste tipo de flutter atrial típico (Figura 9) 1. Figura 8. Eletrocardiograma de fl utter atrial típico mostrando a típica confi guração de serrilhado da linha de base e bloqueio atrioventricular 4:1, isto é, quatro ondas f para cada despolarização ventricular. 21

Pesaro AE et al.arritmias cardíacas principais apresentações clínicas e mecanismos fisiopatológicos. Figura 9. Mecanismo de macro-reentrada através do istmo cavo-tricuspídeo no fl utter atrial típico Conclusão do caso: A paciente recebeu tratamento com propranolol e foi anticoagulada com warfarina por 3 semanas, voltando ao ambulatório para cardioversão elétrica à ritmo sinusal com su- cesso, obtendo melhora dos sintomas. Permaneceu anticoagulada por mais quatro semanas após a cardioversão com controle clínico dos sintomas da estenose mitral. Pesaro AE, Fernandes JL, Soeiro AM, Serrano Jr. CV. Cardiac arrhythmias clinical presentation and physiopathologic mechanisms. Rev Med (São Paulo). 2008 jan.-mar.;87(1):16-22. ABSTRACT: The knowledge about cardiac arrhythmias has become something extremely necessary to all physicians. It is common found people with some kind of cardiac rhythm disturb in all medical specialties. Diagnostic and therapeutic decisions should be quickly done due to the high incidence and potential damage to the patient. In this article, we present four clinical cases about cardiac arrhythmias, showing something related to the diagnostic, treatment and physiopathologic mechanisms. KEY WORDS: Arrhythmia/physiopathology, Arrhythmia/diagnosis, Arrhythmia/therapy. Electrocardiography. REFERÊNCIAS 1. Delacrétaz E. Clinical practice. Supraventricular tachycardia. N Engl J Med. 2006; 354(10):1039-51. 2. Miller JM, Zipes DP. Diagnóstico das arritmias cardíacas. In: Zipes DP, Libby P, Bonow RO, Braunwald E, editores. Braunwald, tratado de doenças cardiovasculares. 7a ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2006. p. 697-712. 3. Page RL. Clinical practice. Newly diagnosed atrial fi brillation. N Engl J Med. 2004; 351(23):2408-16. 4. Rubart M, Zipes DP. Gênese das arritmias cardíacas: considerações eletrofi siológicas. In: Zipes DP, Libby P, Bonow RO, Braunwald E, editores. Braunwald, tratado de doenças cardiovasculares. 7a ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2006. p.653-88. 22