Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito da Vara Empresarial da Comarca da Capital O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, por intermédio do Promotor de Justiça que ao final subscreve, vem, respeitosamente perante Vossa Excelência, e com fulcro nas Leis 7.347/85 e 8.078/90, ajuizar a competente AÇÃO CIVIL PÚBLICA CONSUMERISTA com pedido de liminar em face da Sociedade Italiana de Beneficência e Mútuo Socorro, com sede na Avenida Presidente Antônio Carlos, 40, 8º andar, Castelo, Rio de Janeiro, pelas razões que passa a expor: I- Da legitimidade do Ministério Público O Ministério Público possui legitimidade para a propositura de ações em defesa dos direitos coletivos e individuais homogêneos, nos termos do art. 81, parágrafo único, II e III c/c art. 82, I, da Lei nº 8.078/90. Nesse sentido podem ser citados vários acórdãos do E. Superior Tribunal de Justiça, entre os quais:
RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTRATOS DE SEGURO-SAÚDE. PRÊMIO. REAJUSTAMENTO DE VALORES. ATO ADMINISTRATIVO. DESCONFORMIDADE COM AS REGRAS PERTINENTES. Segundo as áreas de especialização estabelecidas em razão da matéria no Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça compete à Segunda Seção processar e julgar feitos relativos a direito privado em geral. O debate sobre a legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública em favor dos consumidores do serviço de saúde prejudicados pela majoração ilegal dos prêmios de seguro-saúde situa-se no campo do Direito Privado. É cabível ação civil pública para requerer a suspensão de cobrança a maior de prêmios de seguro-saúde. Em tal caso, o interesse a ser defendido não é de natureza individual, mas de todos os consumidores lesados que pactuaram com as empresas de seguro-saúde. O Ministério Público Estadual tem legitimidade para propor a ação porquanto se refere à defesa de interesses coletivos ou individuais homogêneos, em que se configura interesse social relevante, relacionados com o acesso à saúde. (RESP 286732/RJ, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighii, DJ 12/11/2001, p. 152). II- DOS FATOS A ré afirma ser uma associação sem fins lucrativos, de utilidade pública, municipal, estadual e federal, além de filantrópica. Afirma, ainda, que não é uma operadora de plano de saúde, em relação aos seus associados, sendo mantida pela contribuição dos mesmos, que se destina a todas as atividades sociais e não apenas à assistência médica. Ocorre que a Agência Nacional de Saúde Suplementar considera que a demandada reveste-se de caráter de plano de saúde, estando sujeita, portanto, às normas da Lei nº 9.656/98. De acordo com o memorando nº 051/2008/NURAF-RJ/DIFIS/ANS (fls. 68/69), a Sociedade Italiana de Beneficência e Mútuo Socorro efetuou um
reajuste real, entre maio de 2004 e janeiro de 2005, na ordem de 13% e o índice de reajuste autorizados pela ANS é no patamar de 11,75%. O reajuste supra mencionado é ilegal, já que foi efetuado em patamar superior ao autorizado pela ANS. Não bastasse isso, a requerida não manifestou qualquer tipo de explicação ao consumidor que pudesse justificar o aumento, de modo que praticou majoração excessiva da mensalidade de forma arbitrária e unilateral. Decerto, a requerida pretende com tal aumento abusivo pressionar seus consumidores a migrarem para novos planos, estes sob a égide da Lei 9.656/98. O índice de reajuste aplicado está em desconforme com a Resolução da ANS, que estipulou índice máximo de 11,75% para o período de maio de 2004 a abril de 2005. Já que os contratos não indicam os índices a serem aplicados em caso de reajuste das contraprestações pecuniárias e são omissos quanto ao critério de apuração e demonstração das variações consideradas no cálculo do reajuste, deve ser adotado o percentual limitado ao reajuste estipulado pela Resolução da ANS. Importante ressaltar que não justifica o abusivo aumento do valor dos planos de saúde, tendo em vista a decisão do Egrégio Supremo Tribunal Federal, que suspendeu a vigência do art. 35-E, da Lei 9.656/98. Com tal suspensão, há quem alegue que os reajustes referentes aos contratos anteriores à nova lei não estariam sujeitos à fiscalização e normatização da ANS. Alegam, também, as empresas de plano de saúde, em geral, que as cláusulas de reajuste previstas no contrato estariam em vigor em razão da decisão do Egrégio Supremo Tribunal Federal, pretendendo fazer crer, muitas vezes, que tal exagerado reajuste se deve ao acréscimo dos custos médicohospitalares.
Contudo, nenhum desses argumentos encontra respaldo fático ou legal. Tal suspensão não afetou as disposições da Lei 9.961/2000 que, em atenção ao artigo 197 da CF, cria a ANS e o define como órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantem a assistência suplementar à saúde, tendo por finalidade institucional promover a defesa do interesse público, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores (art. 3º). Determina o art. 4º do referido Diploma Legal que cabe à ANS autorizar reajustes e revisões das contraprestações pecuniárias dos planos privados de assistência à saúde. Assim, não obstante a suspensão do art. 35-E da Lei 9.656/98, outra não pode ser a interpretação da decisão proferida pelo STF que não a de que os contratos anteriores a janeiro de 1999 estão excluídos da proteção do referido diploma, mas nunca que a atuação das operadoras estaria imune à fiscalização e normatização da ANS, sob pena de infringência à garantia dos direitos individuais e sociais prevista na Constituição Federal. Não se pode, sob a alegação da garantia da livre iniciativa, permitir que os reajustes seja excessivamente onerosos e abusivos. Torna-se necessária a intervenção do Poder Judiciário para anular os aumentos ilegais e abusivos, protegendo-se os consumidores que mantêm contrato de plano de saúde com a Sociedade Italiana de Beneficência e Mútuo Socorro. Ao aplicar reajuste acima do autorizado pela ANS, a operadora infringiu os artigos 25 da Lei nº 9.656/98, 4º, inciso XVII, da Lei nº 9.961/00 e 2º da RN 74/04, com penalidade prevista no artigo 5º, inciso VII, da RDC 24. III- DO DIREITO
Os contratos de plano de saúde geram uma situação de dependência com os consumidores, podendo ser denominados, segundo Cláudia Lima Marques, contratos cativos de longa duração. São contratos que mantêm o consumidor cativo, na expectativa de que, se necessário, lhe será disponibilizado o serviço médico-hospitalar devido e qualificado. Busca-se nesses contratos segurança e estabilidade, principalmente diante do estado em que se encontram os serviços de saúde pública no país. Marques: Sobre os contratos cativos de longa duração, afirma Cláudia Lima Trata-se de uma série de novos contratos ou relações contratuais que utilizam os métodos de contratação de massa (através de contratos de adesão ou de condições gerais dos contratos), para fornecer serviços especiais no mercado, criando relações jurídicas complexas de longa duração, envolvendo uma cadeia de fornecedores organizados entre si e com uma característica determinante: a posição de catividade ou dependência dos clientes, consumidores. (...) A catividade há de ser entendida no contexto do mundo atual, de indução ao consumo de bens materiais e imateriais, de publicidade massiva e métodos agressivos de marketing, de graves e renovados riscos na vida em sociedade, e de grande insegurança quanto ao futuro. (In Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, 4 a edição, 2002, p 79). A catividade deriva não só em virtude do hábito e da relação de confiança que surge da convivência contínua, mas também devido aos percalços pelos quais passa o consumidor ao trocar de plano de saúde, como a imposição de um, na maioria das vezes extenso, período de carência para que possa usufruir o serviço, ou até mesmo da impossibilidade de contratar com outra empresa, visto que muitas vezes a idade avançada é um obstáculo à
aceitação da pessoa idosa como contratante de um plano de saúde. Ademais, a catividade nos contratos de plano de saúde se faz presente também diante do pequeno número de fornecedores, o que faz com que o consumidor tenha maior interesse em manter a relação contratual. Os contratos cativos de longa duração merecem atenção especial do legislador e dos Tribunais, já que o poder de imposição do fornecedor é maior do que nos contratos comuns, devido à situação de dependência do consumidor. Em razão da catividade, e da conseqüente vulnerabilidade, o consumidor, com o fim de manter o vínculo contratual, pode ser compelido a aceitar as imposições e abusividades do fornecedor, que se traduzem em um desequilíbrio entre os direitos e deveres contratuais. Afirma, ainda, Cláudia Lima Marques: Para disciplinar tais relações contratuais complexas, cativas, de longa duração, passou-se, portanto, a uma visão dinâmica destes contratos massificados, de como sua especialidade e indiscutível importância social imprimem a necessidade de uma nova interpretação das obrigações assumidas, de uma visualização mais precisa da gama de deveres principais e secundários existentes nestas relações contratuais e de que, em virtude da confiança despertada, o paradigma máximo aqui há de ser o princípio da boa-fé objetiva. (In Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, 4 a edição, 2002, p 92). Temos, assim, que os contratos de planos de saúde devem sempre ser norteados pelo princípio da boa-fé objetiva, devendo o aplicador do direito cuidar para que a prevalência do fornecedor não se traduza, como no caso em tela, em imposições abusivas ao consumidor. Dessa forma, não pode o réu aplicar reajuste na mensalidade a seu bel prazer, em patamar superior ao autorizado pela Agência Nacional de
Saúde Suplementar, frustrando a legítima expectativa dos segurados na manutenção dos valores da mensalidade ou do reajuste efetuado em patamar fixado pela ANS. Por preceito constitucional, o consumidor tem o direito a receber especial proteção do Estado, havendo o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor erigido a direito básico do consumidor a proteção contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços. É que o direito positivo visa a contrabalançar a vulnerabilidade do consumidor, reconhecida pelo art. 4º, I, do CODECON, em relação ao fornecedor, visto que é este quem detém o poder exclusivo de formular o inteiro teor do contrato por adesão que obrigará as partes, sendo subtraído do hipossuficiente o poder de negociar a redação das respectivas cláusulas contratuais. Em razão da desvantagem desta posição contratual em que o consumidor se encontra, percebeu o legislador a necessidade de relativizar o poder vinculante da autonomia da vontade manifestada por ocasião da formalização do vínculo contratual, sobrepondo-lhe o interesse público quanto à higidez dos direitos e obrigações contratados pelas partes. Nesta esteira, o art. 51 do CDC, prevendo situações em que o vigoroso fornecedor se prevaleceria de sua posição de vantagem para agravar o desequilíbrio da relação contratual em detrimento do hipossuficiente, estipulou rol exemplificativo de cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que seriam abusivas, por ofenderem a ordem pública de defesa do consumidor (art. 1 o, CDC). Nelson Nery Júnior, autor do anteprojeto da Lei n. º 8.078/90 (CDC), discorre acerca da matéria com preciosa lucidez, verbis,
(...) A existência de cláusula abusiva no contato de consumo torna inválida a relação contratual pela quebra do equilíbrio entre as partes, pois normalmente se verifica nos contratos de adesão, nos quais o estipulante se outorga todas as vantagens em detrimento do aderente, de quem são retiradas as vantagens e a quem são carreados todos os ônus derivados do contrato. (In Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, Comentado pelos Autores do Anteprojeto, 7 a edição, p. 501, grifo nosso). Dentre as cláusulas abusivas previstas pelo art. 51 do CDC, destaca-se aquela a que se refere o inciso IV do mesmo dispositivo legal, verbis, Art. 51 São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) IV estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade; (...) X - permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral; dispõe: O 1º, do art. 51 do Código de Defesa do Consumidor ainda 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: I ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence; II restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual; III se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.
No caso em tela patente a ofensa à boa fé objetiva, com a imposição de vantagem exagerada ao consumidor. A exigência de vantagem manifestamente excessiva do consumidor e a elevação sem justa causa do preço de produtos e serviços são consideradas práticas abusivas, vedada pelo art. 39, incisos V e X, do Código de Defesa do Consumidor: Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: V exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva; (...) X - elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços. A requerida aumentou as mensalidades dos planos de saúde baseada em critérios ilegais e abusivos, já que os índices aplicados ultrapassaram os limites autorizados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar. Em tempos de estabilidade inflacionária, a iniciativa da ré de aumentar as mensalidades dos planos de saúde em 13%, acima, portanto, do aumento permitido pela ANS de 11,75%, torna-se manifestamente abusivo, à luz do Código do Consumidor. IV- DOS PEDIDOS Pelo exposto, requer finalmente o Ministério Público: a) a citação da ré para, querendo, contestar a presente, sob pena de revelia, sendo presumidos como verdadeiros os fatos ora deduzidos;
b) que seja designada audiência preliminar, a fim de ser feita derradeira tentativa de ajustamento de conduta com a ré; c) que sejam declarados ilegais e nulos os reajustes das mensalidades praticados pela ré desde o ano de 2004, diante de sua evidente abusividade e ilegalidade, já que foram efetuados com índices superiores ao autorizado pela ANS; d) que seja a ré condenada a uma obrigação de fazer, consistente em revisar os preços das mensalidades do plano de saúde, desde o ano de 2004, observando-se os índices autorizados pela ANS, bem como a expressa e literal anuência do consumidor para qualquer acréscimo; e) que, caso não seja celebrado o termo de ajustamento de conduta em audiência preliminar, sejam antecipados os efeitos da tutela quanto ao item c, diante da verossimilhança (evidente desrespeito ao índice autorizado pela ANS) e da urgência (caracterizada pela necessidade de proteção imediata dos segurados, diante da possibilidade de que não tenham recursos para pagar o seguro-saúde e, em caso de inadimplência, estejam desprotegidos e em risco iminente de lesão à sua saúde), determinando-se a revisão dos preços das mensalidades no prazo de 02 (dois) meses, sob pena de incidência de multa diária, no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais). f) que a ré seja condenada àdevolução em dobro, à luz do que dispõe o parágrafo único do artigo 42 do CDC, dos valores pagos indevidamente em razão dos reajustes ilegais e abusivos praticados desde 2004, incidindo-se juros e correção monetária, podendo tais diferenças serem abatidas das mensalidades vincendas.
g) que sejam publicados os editais a que se refere o art. 94 do CDC; h) que seja a ré condenada a pagar honorários ao CENTRO DE ESTUDOS JURÍDICOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, à base de 20% sobre o valor da causa, dado o valor inestimável da condenação. Protesta-se por todos os meios de prova em direito admitidos, em especial pela prova testemunhal, por depoimento pessoal do representante legal do réu, bem como pela prova documental superveniente, sem prejuízo da inversão do ônus da prova prevista no art. 6 o, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, atribuindo-se à causa, de valor inestimável, o valor de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais). A presente ação civil pública é ajuizada juntamente com o Inquérito Civil nº 383/04, cujos documentos fornecem suporte probatório pleno para a responsabilidade da ré. Rio de Janeiro, 30 de junho de 2009. PEDRO RUBIM BORGES FORTES Promotoria de Justiça de Defesa do Consumidor