Catalogação: Cleide de Albuquerque Moreira Bibliotecária/CRB 1100 Revisão: Lucimar Luisa Ferreira / Marinez Santina Nazzari Revisão Final: Elias Januário Consultor: Luís Donisete Benzi Grupioni Projeto Gráfico/Diagramação: Fernando Selleri / Silvair Frazão Fotos da capa: Acervo do PROESI Fotógrafos: Banavita, Elias Januário, Fernando Lopes, Joana Saira, Julio Cezar Paes Dados internacionais de catalogação Biblioteca Curt Nimuendajú CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA - PROESI. Organizadores Elias Januário, Fernando Selleri Silva e Taisir Mahmudo Karim. Barra do Bugres: UNEMAT, v. 5, n. 1, 2007. ISSN 1677-0277 1. Educação Escolar Indígena I. Universidade do Estado de Mato Grosso II. Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso III. Coordenação-Geral de Documentação / FUNAI. CDU 572.95 (81) : 37 UNEMAT - Universidade do Estado de Mato Grosso Campus Universitário Dep. Estadual Rene Barbour Educação Indígena - PROESI - Caixa Postal nº 92 78390-000 - Barra do Bugres/MT - Brasil Telefone: (65) 3361-1964 www.unemat.br/indigena - indigena@unemat.br SEDUC/MT - Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso Superintendência de Formação Profissional Travessa B, S/N - Centro Político Administrativo 78055-917 - Cuiabá/MT - Brasil Telefone: (65) 3613-1021 SECITEC/MT - Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia de Mato Grosso Rua 03, S/N, 3º piso - Centro Político e Administrativo 78050-970 - Cuiabá/MT - Brasil Telefone: (65) 3613-0100 FUNAI - Fundação Nacional do Índio CGE - Coordenação Geral de Educação SEPS Q. 702/902 - Ed. Lex - 3º Andar 70390-025 - Brasília/DF - Brasil Telefone: (61) 3313-3647
Corpo Humano e Saúde: uma Experiência na Formação de Professores Indígenas Larissa Maria Scalon Lemos* Hébia Tiago de Paula** Que significado e importância tem o corpo humano para seu povo? Essa é uma daquelas muitas questões que nos parecem tão óbvias, mas às quais encontramos dificuldades na formulação de uma resposta rápida e concisa. Foi com esta pergunta que iniciamos os trabalhos da IV Etapa de Estudos Presenciais do Terceiro Grau Indígena, em julho de 2006. Iríamos trabalhar com 100 acadêmicos indígenas, o conteúdo de Ciências: O Corpo Humano. Os livros didáticos atuais abordam o conteúdo no aspecto anatômico-fisiológico, obviamente, em nível de conhecimento correspondente com a série em que é trabalhado. Trazem ainda, uma abordagem voltada à saúde, aos possíveis distúrbios e problemas de cada um dos sistemas orgânicos, suas causas e modo de prevenção, subsidiando o trabalho de educação em saúde na formação dos alunos. E esse foi também o enfoque do nosso trabalho nesta etapa. O corpo é inerente à nossa existência, e a partir dele nos relacionamos com o mundo exterior. Ele tem sua importância biológica, * Especialista em Farmacologia, professora do Depto. de Enfermagem da UNEMAT - campus de Cáceres. Docente na área de Ciências Matemáticas e da Natureza no PROESI. ** Bióloga, Assessora Pedagógia da área de Ciências Matemáticas e da Natureza no PROESI. 119
Cadernos de Educação Escolar Indígena em termos de sobrevivência, mas possui também uma importância cultural incontestável, em todos os povos, em especial para os povos indígenas. A cultura dos povos indígenas se manifesta de formas diversas. O modo com que trabalham os materiais da natureza como: penas, sementes, madeiras, fibras, etc, na manufatura de adornos, utensílios, moradias, flechas e tantos outros, reflete os costumes de cada comunidade, de cada etnia. Mas o ápice da manifestação cultural indígena está, inegavelmente, relacionado ao corpo, que é escarificado, pintado, perfurado e marcado, sem contar a forte presença das danças e rituais onde o corpo é um dos elementos de linguagem. O antropólogo Darcy Ribeiro escreveu que o corpo humano é a tela onde os índios mais pintam e aquela que pintam com mais primor. Há registro na história de um diálogo real que teria acontecido no século XVIII: Por quê você pinta seu corpo? - perguntou um missionário europeu a um índio. E você? Por quê não se pinta? Quer se parecer com os bichos? - respondeu o índio. Seja para demarcar sua identidade na sociedade, demonstrar sentimentos de pesar ou alegria, combates e rituais, ou simplesmente para embelezar-se ou diferenciarse dos demais seres da natureza, o fato é que o corpo está intrinsecamente ligado à cultura indígena. Nessa perspectiva, esperávamos uma riqueza de diversidade nas respostas dos acadêmicos à nossa pergunta inicial: Que significado e importância tem o corpo humano para seu povo? Mas o que pudemos perceber é que a maioria expressiva destas respostas não abordava nem o aspecto cultural, nem o religioso da relação com o corpo. Talvez, inconscientemente influenciados pelo fato de estarem numa aula de Biologia, os acadêmicos abordaram quase exclusivamente os aspectos biológicos do corpo humano: os movimentos, a reprodução, a percepção, o raciocínio. O nosso corpo é muito importante para fazer o trabalho no dia-a-dia. Como por exemplo, os nossos braços servem para abraçar as pessoas, nossas mãos servem para mexer as coisas, nossas pernas servem para andar no trabalho ou para outro lugar no mundo, nossas línguas servem para falar e cantar, os nossos olhos servem para olhar as coisas, nossas cabeças servem para pensar e servem para fazer o 120
Corpo humano e saúde... plano de seu trabalho, o nariz serve para respirar e nosso coração serve para funcionar o nosso corpo em geral. Tudo isso faz parte do corpo que temos e é muito importante para nós. (João Wéréhité Rãirãté - Xavante) Um outro aspecto bastante presente nos textos foi a consciência de que o cuidado com o corpo na prevenção da saúde é fator primordial quando se fala de corpo humano, e algumas vezes vem acompanhado de uma crítica quanto a mudança dos costumes, principalmente em relação à alimentação, o que vem acarretando aumento na incidência de doenças entre os povos indígenas. Antes do contato com o homem branco, alimentávamos de alimentos naturais, não comíamos sal, óleo, açúcar, etc. Hoje em dia já consumimos comidas industrializadas da cidade e com isso passamos a ter problemas de saúde, tais como: obesidade, diabetes, perda precoce de dentes e outras doenças. Muitos povos adquiriram vícios que hoje prejudicam a saúde indígena, como o álcoolismo e o tabagismo. (Loike Kalapalo) O resultado dessa atividade, para nós inesperado, foi na verdade bastante positivo, considerando que o objetivo a que nos propúnhamos, era trabalhar os aspectos anatômico-fisiológicos e a educação em saúde, enfoque correspondente ao colocado por eles nos textos. Pudemos também perceber, com a atividade seguinte, desenhar a constituição interna do corpo humano com base apenas no seu conhecimento, sem nenhum tipo de consulta, que os acadêmicos possuíam boas noções do arranjo anatômico dos órgãos e do esqueleto humanos, bem como da sua fisiologia, o que facilitou sobremaneira os trabalhos. Não só em virtude das questões colocadas no seu projeto inicial, mas também pela necessidade evidenciada pelos acadêmicos, o 3º Grau Indígena sempre norteou os trabalhos dos docentes no sentido de incorporar nos cursos o conhecimento étnico, garantindo a vivência da interculturalidade, como também o enfoque na instrumentalização didática aos futuros professores, para que sejam capazes de executar seus trabalhos nas escolas indígenas, alicerçados na sua própria realidade, ampliando, assim, os horizontes do conhecimento dos seus alunos, mas, sobretudo, respeitando sua cultura. 121
Cadernos de Educação Escolar Indígena Com essas diretrizes, norteamos nosso trabalho. Apesar de toda a carga cultural presente na relação com o corpo humano, abordaríamos o aspecto biológico, mas sempre suscitando outras conotações a partir dos próprios acadêmicos. Tínhamos o objetivo de que eles conseguissem vincular o conteúdo discutido à sua realidade, forma pela qual acreditamos que o conhecimento é realmente construído. Sucederam-se momentos de exposição de conteúdo, atividades práticas, lúdicas, pesquisa bibliográfica e apresentação de aula simulada pelos alunos. O interesse dos acadêmicos pelo assunto corpo humano foi muito grande, como já fora observado em turmas anteriores, o que não foi diferente nessa atual. Mostraram-se participativos, com questionamentos e colocações constantes, o que gerou um trabalho interessante e enriquecedor, considerando a diversidade etnocultural presente. A pedagogia indígena deve ser resultado da vivência, da reflexão dos próprios professores, da troca de experiências, da construção coletiva, da presença de anciãos e das relações socioculturais presentes em cada etnia (JANUÁRIO, 2004). Trabalhando nessa perspectiva foi que alcançamos os objetivos propostos. Cabe aqui um destaque ao sistema reprodutor humano, fonte de dúvidas e perguntas intermináveis, não fosse o som da campainha sinalizando o final das atividades. Talvez por abranger a sexualidade, a geração de descendentes, as doenças sexualmente transmissíveis de incidência crescente entre as comunidades indígenas; o fato é que esse tema é, visivelmente, o ápice do interesse em se tratando de corpo humano. As dúvidas mais freqüentes são relacionadas à menstruação e gravidez múltipla. Surgiram também questões sobre clones e células tronco, temas em evidência na mídia na atualidade e ainda tão controversos no aspecto ético-científico para os não-índios. A sexualidade humana é uma construção cultural, ao contrário dos animais onde é determinada apenas pelo instinto. Os seres masculino e feminino diferem muito entre as diferentes culturas, podendo até mesmo se modificar ao longo do tempo dentro de uma mesma cultura. Apesar da idéia de que os povos indígenas são livres quanto a sua sexualidade, grande parte pela influência da forma como a história da colonização aborda, ou mesmo pelo fato de andarem nus 122
Corpo humano e saúde... ou seminus, o que se vê na realidade, é que cada cultura impõe regras rígidas ao aspecto sexual. Nessa perspectiva, gerou-se discussões bastante interessantes, principalmente quando o assunto abordado foi a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. As DSTs são um problema relativamente recente nas comunidades indígenas e que possuem métodos preventivos que muitas vezes vão de encontro aos costumes enraizados de uma cultura, gerando conflitos. Ao se referir à saúde das populações indígenas, Conklin (1994), diz: O grau de receptividade à medicina ocidental depende destes conceitos e das práticas estranhas não serem antagônicas às noções sobre o corpo humano, sobre causa e prevenção das doenças e às relações sociais que cercam a doença. O fornecimento de serviços médicos será insuficiente para garantir um sistema de saúde eficaz caso não sejam equacionados os conflitos e equívocos existentes entre os conceitos ocidentais e indígenas de saúde e doença. A troca de experiências entre os acadêmicos, nesse sentido, foi de grande riqueza, proporcionando momentos reflexivos quanto às mudanças dos costumes e suas implicações na saúde das comunidades indígenas. Todo trabalho onde a diversidade cultural se faz presente, traz resultados engrandecedores, desde que se deixem à margem os conflitos e o etnocentrismo, desde que haja uma abertura ao diferente, um respeito à crença alheia. Não importa se estamos ali como aluno ou como professor, o aprendizado é bilateral, como diz Bazin (2005). Ser professor é saber aprender descobrindo junto com os outros professores não é para trazer coisas de fora; é para ajudar a mergulhar, conscientemente, dentro da cultura da comunidade, registrá-la e reforçá-la. Apesar de tantas outras vezes ter trabalhado o tema corpo humano, essa IV Etapa do 3º Grau Indígena proporcionou um resultado marcante, pela interculturalidade, pelas riqueza das discussões que acabam por nos levar à reflexão das nossas próprias crenças, das nossas condutas e das implicações na vida da nossa sociedade. Só a leitura e correção dos textos elaborados pelos acadêmicos já nos permite mergulhar na riqueza cultural dos povos indígenas. 123
Cadernos de Educação Escolar Indígena O meu corpo é uma criação divina. Fui formado com muita atenção e dedicação. Cada membro com um trabalho a executar. Não fui formado por coincidência, mas com tal precisão, que o homem ainda não conseguiu imitar. Somente com corpo, sem auxílio do espírito, seria impossível alcançarmos a harmonia entre nós mesmos para com a natureza. Somos parte da natureza; nascemos, crescemos, vivemos e morremos. Nós vivemos para a natureza, a natureza vive pra nós. E assim, geração vem, geração vai, tudo volta ao começo. (Antonino Reginaldo Jorge Terena) Bibliografia BAZIN, M. Ensinar Matemática e Ciências Indígenas. Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Lingüística, Florianópolis, 2005. Disponível em: http://www.ipol.org.br/ler.php?cod=240. Acesso em 15/10/2006. Iandé Arte com História. Grafismos Indígenas. Disponível em: http:// www.iande.art.br. Acesso em 14/10/2006 INSTITUTO SÓCIO AMBIENTAL. Povos Indígenas no Brasil. Artes. Disponível em: http://socioambiental.org/pib/english/portugues/ comovivem/artes.shtm. Acesso em 14/10/2006. JANUÁRIO, E. R. S. A construção do currículo no 3º Grau Indígena: a etapa de estudo presencial. Cadernos de Educação Escolar Indígena 3º Grau Indígena. Barra do Bugres: Unemat, 2004. v. 3, n. 1. p 51. PAULA, E.D. A interculturalidade no cotidiano de uma escola indígena. Caderno CEDES, Campinas, v. 19, n. 49, 1999. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s0101-32621999000200007&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 16/10/2006. PY-DANIEL, V. & SOUZA, F. S. O Sistema Brasileiro de Atendimento à Saúde Indígena e algumas de suas Implicações na Cultura Yanomami. Disponível em: http:// nerua.inpa.gov.br/nerua/23.htm. Acesso em 15/10/2006. 124