Contextualizando a Economia Solidária 1



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Transcrição:

Contextualizando a Economia Solidária 1 O nascimento da Economia Solidária Caracterizado pela propriedade privada dos meios de produção e pela acumulação de riquezas por meio do lucro, que proporciona a apropriação de capital e poder nas mãos de poucos, assegurando por um lado a realização dos interesses implacáveis do mercado e por outro a marginalização das esferas mais vulneráveis da sociedade. O sistema capitalista contemporâneo é fortemente baseado na ideologia neoliberal, que apregoa a menor intervenção estatal possível na economia, sugerindo a privatização e a desregulamentação como iniciativas importantes para o livre-mercado. As correntes neoliberais se apresentam cada vez mais insustentáveis, causando aumento dos bolsões de pobreza e exclusão social, dentre tantos outros problemas. Assim, esse cenário desencorajador abriu espaço para o surgimento e avanço de outras formas de organização do trabalho, consequência, em grande parte, da necessidade dos trabalhadores encontrarem alternativas de geração de renda que venham suprir as lacunas deixadas pela exclusão da economia formal (DA CRUZ; DOS SANTOS, 2013). Em consequência dessa fragilidade do modelo tradicional de relação capitalista do trabalho, tem ocorrido no Brasil e em outras partes do mundo uma grande expansão de empreendimentos que partem da livre associação dos trabalhadores e têm como base, princípios de autogestão e cooperação. São experiências coletivas de trabalho e produção que vêm se disseminando nos espaços rurais e urbanos, por meio de cooperativas de produção, serviços e consumo, das associações de produtores, redes de produção, consumo, comercialização, instituições financeiras voltadas para empreendimentos populares solidários, empresas de autogestão, entre outras formas de organização (BRASIL, 2013). Discussões sobre estas outras maneiras do trabalhador se relacionar com seu trabalho e com os outros trabalhadores, considerando as formas predominantes, tomaram corpo no Brasil, dentro do movimento sindical da 1 Texto retirado da introdução do relatório final do projeto Desenvolvimento Territorial sustentável por meio de ações Multidisciplinares e Integradas de Estudos, Formação e Intervenção em Economia Solidária, desenvolvido pelo NuMI-EcoSol no período de 2012 à 2013, referente a chamada MCTI/SESIS/TEM/SENAES/CNPq nº 89/2013.

década de 70. Já na década de 80, estas discussões adentram as universidades e inicia-se a construção de uma proposta de economia diferente da capitalista predominante, a chamada Economia Solidária 2 (ES), tendo como expoente o então professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, Paul Singer (CORTEGOSO, CIA & LUCAS, 2008). Para Singer (2002) Economia Solidária, tal como ela ressurge do século XX, é uma resposta ao estrangulamento financeiro do desenvolvimento, à desregulação da economia e à liberação dos movimentos do capital, que acarretam, nos diversos países, desemprego em massa, fechamento de firmas e marginalização cada vez maior entre os desempregados. Assim, a Economia Solidária (ES) resgata as lutas históricas dos trabalhadores que tiveram origem no início do século XIX, sob a forma de cooperativismo, como uma das formas de resistência contra o avanço avassalador do capitalismo industrial. No Brasil, ela ressurge no final do Século XX, a partir de ações de diferentes atores sociais, particularmente organizações da sociedade civil (organizações não governamentais, movimentos sociais, igrejas, incubadoras de cooperativas populares, universidades, etc.), que apoiam iniciativas associativas comunitárias, constituição e articulação de cooperativas populares, redes de produção e comercialização e feiras de cooperativismo e Economia Solidária, entre outras, como resposta dos trabalhadores às novas formas de exclusão e exploração no mundo do trabalho. Os Princípios da Economia Solidária De modo geral, a Economia Solidária constitui uma outra economia frente à Economia Capitalista, principalmente como possibilidade de geração de trabalho e renda para os segmentos excluídos da população, e também um outro modo de produção e de organização social e cultural. 2 A história do termo economia solidária tem quase dois séculos e se inspira em diferentes correntes do socialismo em particular dos chamados utópicos (Fourier, Saint Simon, Robert Owen) numa época de intensas lutas sociais e acentuado declínio econômico nos principais países europeus (ARRUDA, 2003).

A Economia Solidária tem, como valores fundamentais, adesão voluntária e esclarecida dos membros, participação democrática em processos decisórios, autogestão, cooperação, intercooperação, promoção do desenvolvimento humano, preocupação com a natureza, preocupação com a comunidade, produção e consumo éticos, solidariedade. Em contraposição, a Economia Capitalista, forma dominante de organização da produção e do trabalho, tem como característica central a distinção entre quem é proprietário dos meios para a produção ou prestação de serviços (ou controla estes meios), ou seja, do capital, e quem trabalha produzindo ou prestando serviço. Os efeitos deste modo de produção e de organização para o trabalho são, em geral, desigualdade social e exclusão de amplos segmentos sociais não apenas do mercado de trabalho, mas de condições mínimas de vida e cidadania. A desigualdade e a competição generalizada não são naturais, elas resultam da forma como se organiza o modo de produção das atividades econômicas. Para que se tenha uma sociedade em que predomine a igualdade entre todos os seus membros, é preciso que a economia seja solidária em vez de competitiva. A Cooperação contrapõe a noção de competição. Ao cooperar um grupo de trabalhadores se associam em torno de objetivos comuns e deixam de competir entre si (SINGER, 2002). Cooperar consiste na constituição de um coletivo de pessoas e que, no entanto necessita de uma outra forma de gestão. Em uma empresa capitalista ocorre a heterogestão caracterizada pela separação da idealização de um determinado trabalho de sua execução. Quem idealiza ou projeta está em uma posição mais alta dentro da hierarquia em detrimento de quem executa. Como contraponto, em uma cooperativa tenta-se colocar em prática o conceito de autogestão. A noção de autogestão não é recente (JUVENAL, 2006), já havendo ocorrência na literatura sobre organização da produção e relações de trabalho desta forma desde o século XIX. Ela ressurge no início da década de 1990 quando ocorre grande número de falências e os trabalhadores sem perspectivas de outro emprego ou de recebimento dos direitos trabalhistas assumem a estrutura física da empresa, continuando a produção. Segundo Albuquerque (2002), autogestão é

[...] exercício de poder compartilhado, que qualifica as relações sociais de cooperação entre pessoas e/ou grupos, independente do tipo das estruturas organizativas ou das atividades, por expressarem intencionalmente relações sociais mais horizontais. (ALBUQUERQUE, 2002, página 20) Como se pode ver, assim como a Cooperação, a Autogestão acaba induzindo relações mais igualitárias entre trabalhadores que se associam. Porém, vale salientar que é necessária a mudança de comportamentos por parte do trabalhador que passa de empregado para cooperado, condição que exige novas formas de participação no empreendimento, entre elas um maior protagonismo do trabalhador. Mais do que a geração de trabalho e renda, a Economia Solidária implica em uma opção política, não se restringindo a envolver camadas excluídas da sociedade, e sim todos que buscam outra forma de relacionamento do ser humano com o trabalho, com outros seres humanos e com o ambiente. Considerando os impactos ambiental e social que a Economia Capitalista impõe à humanidade, que mais cedo ou mais tarde atingirão a todos, é possível considerar que a Economia Solidária diz respeito a todos que habitam o planeta. No Quadro 1 pode ser vista uma comparação entre características de empreendimentos de Economia Solidária e de empresas capitalistas, produzida cumulativamente no âmbito de atividades coletivas de estudo e discussão sobre Economia Solidária com alunos de graduação da UFSCar, em relação a certos aspectos definidores de organizações humanas de trabalho, e a partir tanto de literatura quanto das experiências concretas propiciadas pelo processo de incubação de empreendimentos solidários implementado por incubadoras universitárias deste tipo de empreendimento.

Quadro 1 - Quadro comparativo das Características da Economia Solidária e da Economia Capitalista. Aspecto considerado Economia Solidária Economia Capitalista Metas, resultados Bem-estar das pessoas Acúmulo de capital, lucro pretendidos Posse ou controle dos meios de produção Prática cultural predominante Quem se apropria dos resultados do trabalho (renda e sobra) Critério para a distribuição de ganhos Padrão de distribuição de renda pelos participantes Trabalhadores Cooperação Trabalhadores (cooperados) Volume de trabalho Igualitário, equilibrado Donos do capital ou seus representantes Competição Dono do capital Participação no capital Desigual, concentrado em parte dos participantes do processo de trabalho Forma de organização Coletiva, associativa Individualista Relação entre empreendimentos Intercooperação, redes Competição Organização para o Fragmentação, hierarquia, Rodízio, integração trabalho especialização Natureza da forma de Heterogestão (ou, no Autogestão gestão máximo co-gestão) Definido pela necessidade do empreendimento: Condições para o acesso ao empreendimento Livre, com adesão voluntária e esclarecida acesso facultado pelo dono, segundo os seus interesses e baseado na competência individual Natureza da capacitação Processo decisório Abrangência dos resultados sociais Relação com o status quo existente Relação entre valores de atividades no empreendimento Modo de lidar com a informação Abrangente, para todos Igualitário para todos Maior inclusão possível Ênfase na mudança social Valor equivalente entre atividades diversas Acesso a todos, transparência na divulgação de informações Restrita à função e individual Proporcional ao capital, com partes dos trabalhadores sendo excluídos dos processos decisórios Exclusão estrutural pela renda e condições dela recorrentes Ênfase na manutenção da situação social Distinção entre trabalho intelectual e manual, com supervalorização do intelectual Acesso restrito, seletivo, a critério dos donos do capital

Empreendimentos do campo da Economia Solidária A forma mais conhecida de empreendimentos solidários é a cooperativa. No entanto, nem toda cooperativa é, de fato, orientada por estes princípios. Algumas delas são apenas arranjos para se beneficiar de condições especiais (isenta o patrão de pagamento de encargos sociais, por exemplo), precarizando e explorando trabalhadores mais ainda do que no emprego formal; são usualmente conhecidas como falsas cooperativas, coopergatos ou cooperfraudes. Outras, por sua dimensão e forma de funcionamento interno, com alto grau de hierarquização e práticas como a contratação ampla de mão de obra mesmo para atividades-fim, ferindo princípios de equidade e participação democrática nos processos decisórios, são muito mais próximas de empresas capitalistas, e não são consideradas como empreendimentos de Economia Solidária, ficando esta condição reservada, então, aos empreendimentos que se inserem no que costuma ser denominado de cooperativismo popular, sendo importante traçar uma linha divisória entre o cooperativismo baseado na Economia Solidária e o cooperativismo tradicional das agroindústrias. Por outro lado, empreendimentos coletivos que, mesmo sem atender às exigências para formalização em vigor na legislação brasileira para constituição de cooperativas (por exemplo, mínimo de sete sócios), organizam-se de acordo com os princípios e características da Economia Solidária, são considerados como parte deste campo da atividade humana. São considerados, assim, como empreendimentos do campo da Economia Solidária: 1- As iniciativas associativas e de cooperação: São iniciativas dos diversos ramos e graus de organização; empresas autogestionárias (com a gestão assumida por trabalhadores após a falência de empresas privadas); associações comunitárias e de produção, redes de produção, comercialização e consumo; grupos informais comunitários ou de segmentos específicos (mulheres, jovens, etc); clubes de trocas e etc. No entanto, na maioria dos casos, essas organizações coletivas agregam um conjunto grande de atividades individuais e coletivas. O que caracteriza a cooperação, de imediato, é a existência de interesses e objetivos comuns, a união dos esforços e

capacidades, a propriedade coletiva de bens, a partilha dos resultados e a responsabilidade solidária sobre os possíveis ônus; 2- Empreendimentos econômicos: As iniciativas de Economia Solidária se organizam em torno da produção, beneficiamento, comercialização, distribuição e consumo de produtos e serviços, abrangendo toda a cadeia produtiva. O fator econômico permeia essas diversas iniciativas, sendo uma das bases de motivação de agregar esforços e recursos pessoais em um primeiro momento, expandindo para relações solidárias. Envolve o conjunto de elementos de viabilidade econômica, permeados por critérios de eficácia e efetividade das diversas iniciativas. Ao lado da viabilidade econômica, os aspectos culturais, ambientais e sociais têm igual importância na Economia Solidária; 3- Iniciativas solidárias: Em que o caráter de solidariedade nos empreendimentos é expresso em diferentes dimensões: (a) na partilha dos bens e recursos existente e, na distribuição justa e equitativa das obrigações e dos resultados alcançados; (b) na construção de oportunidades que levem ao desenvolvimento humano e das potencialidades, da melhoria das condições de vida de cada participante; (c) nas relações que se estabelecem com o meio ambiente, de gestão sustentável dos recursos naturais, expressando o compromisso com as gerações presentes e futuras ao acesso a um meio ambiente saudável; (d) nas relações que se estabelecem com a comunidade ou sociedade local, na participação ativa nos processos de desenvolvimento sustentável de base territorial, regional e nacional; (e) nas relações com os outros movimentos sociais e populares de caráter emancipatório, entre outros. Além disso, as iniciativas solidárias são também iniciativas cidadãs, pois procuram assegurar o bem-estar dos trabalhadores, consumidores e da comunidade, além de respeitar e ampliar os direitos dos trabalhadores como seres humanos. Economia Solidária e a Universidade A produção e a adaptação de tecnologia, seja ela relacionada à atividade produtiva realizada pelos empreendimentos, seja a denominada de tecnologia social, relacionada à autogestão, à administração, e à construção de relações humanas apropriadas para a proposta da Economia Solidária, constitui um dos

mais importantes desafios a serem enfrentados, cabendo particularmente à Universidade responder a este desafio, produzindo e tornando acessíveis ferramentas derivadas do conhecimento científico para garantir a sustentabilidade de empreendimentos solidários. Desde meados da década iniciada em 1990 vêm sendo criadas, em universidades brasileiras, particularmente públicas, unidades de estudo e fomento à Economia Solidária, que se denominam incubadoras de empreendimentos desta natureza. De um modo geral, propondo e praticando, a indissociabilidade entre pesquisa, ensino e extensão, estes coletivos de professores, alunos de graduação e pós-graduação e profissionais de diferentes níveis e formação, têm se dedicado a buscar respostas concretas na compreensão do papel e do potencial desta forma ainda pouco conhecida e disseminada de organização coletiva para o trabalho e para atender, com conhecimento novo e tecnologia, às necessidades desta forma de organização econômica e de prática social representada pela Economia Solidária. O cenário diante do qual as universidades criaram estas incubadoras apontava a necessidade urgente de desenvolver alternativas capazes de promover condições mínimas de cidadania a uma parcela muito significativa da população brasileira. Embora mudanças nestes cenários dependam de várias e diferentes condições, a produção específica de conhecimento e tecnologia capazes de oferecer maior compreensão e ferramentas para que os segmentos excluídos de cidadania pela lógica capitalista de mercado sejam sujeitos desta mudança é uma delas, e corresponde exatamente ao papel social da universidade. A criação das incubadoras de cooperativas populares surgiu como uma das possíveis respostas a esta necessidade, e como mecanismo de aproximação da população excluída, tanto em busca de melhor conhecer as necessidades e saberes desta população, quanto para transformar conhecimento produzido no âmbito da universidade em comportamentos humanos. Desde então, um dos desafios enfrentados por estes núcleos de ensino, pesquisa e extensão que se dedicam à Economia Solidária é desenvolver formas de ação capazes de viabilizar não apenas a existência de coletivos organizados para o trabalho, mas seu funcionamento como células efetivamente autogestionárias e comprometidas com os princípios orientadores

deste campo de atividade humana, bem como a inserção destas células em complexas redes de relações que envolvem outros empreendimentos solidários, outros atores sociais da Economia Solidária e mesmo no mercado capitalista, em geral pouco amistoso em relação a esta forma de organização do trabalho e gestão.