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Transcrição:

Imagem e memória: o morro do Castelo visto por um fotógrafo amador 1 Adriana Maria Martins Pereira Nesta apresentação iremos nos deter na análise do olhar do fotógrafo amador Alberto de Sampaio em duas séries realizadas no Morro do Castelo, no Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XX. A primeira tomada, em 1906-07, documenta vistas da paisagem, instantâneos e, principalmente, homens que tiveram atuação expressiva nas pesquisas científicas do Brasil do período. No segundo registro, de 1921, encontramos cenas do início da demolição do morro. Entendemos que a representação imagética resulta da mediação entre o indivíduo e o meio social. Portanto, por um lado sofre interferências dos diversos discursos que incidem sobre ela e, por outro, também influencia a novas formas de olhar. Por esses motivos, apontamos elementos ligados à biografia de Alberto de Sampaio, à prática amadorística e ao processo de transformação urbana ocorrido no Rio de Janeiro, a fim de compor a rede social em que os documentos visuais foram produzidos. E também analisamos as escolhas do fotógrafo: as opções técnicas e estéticas que constituem os mecanismos de organização da imagem fotográfica 2. 1. Alberto de Sampaio e a fotografia amadora O fotógrafo amador Alberto de Sampaio (1870-1931) registrou inúmeros aspectos de sua vida particular e do universo urbano de sua época na passagem do século XIX para o XX. Nasceu no Rio de Janeiro, tendo residido em Petrópolis, e tinha por profissão a advocacia. Está situado numa geração de fotógrafos amadores, em geral provenientes das elites urbanas, que documentavam a intimidade familiar utilizando os avanços técnicos surgidos a partir da década de 1870. Mas o que significava ser um fotógrafo amador neste período? Em primeiro lugar, grande parte daqueles que exerciam esta atividade dominavam todo o aparato funcional de produção das imagens. Por isso, não há diferenças extremamente precisas em relação à 1

qualidade técnica de suas fotografias quando comparadas com as produzidas por profissionais. Em geral, dispunham de laboratório próprio e de equipamentos extremamente modernos para época. Essa categoria acompanhava os avanços na área por meio de periódicos especializados que surgiram na Europa e EUA, principalmente, a partir da década de 1880 3. Nesse período, podemos diferenciar os fotógrafos amadores em duas categorias principais: o primeiro grupo dispunha de laboratórios e dominava o processo fotográfico, tanto técnico como químico; o outro grupo constituía-se por aqueles que apenas realizavam seus registros sem dispor de conhecimentos amplos sobre essa atividade, fato que só se tornou possível após o lançamento da máquina Kodak em 1888. Esta invenção colocou a fotografia amadora em outros patamares, pois permitia ao fotógrafo tirar até 100 imagens de uma só vez. A própria propaganda do equipamento já anunciava uma atividade que começou a se popularizar em fins do século XIX, com você aperta o botão e nós fazemos o resto 4. Mas Alberto de Sampaio não se rendeu a todas as facilidades apresentadas na sua época, pois preferia utilizar equipamentos que permitissem operar com todo o processo: da captura à revelação da imagem. Por isso, manteve seu laboratório em funcionamento ao longo de sua atividade. Não podemos deixar de destacar as possibilidades de acesso aos meios de produção da imagem técnica, elemento fundamental para o estabelecimento desta prática. Mas como se constituía esse circuito num período em que não havia periódicos nacionais especializados em tal temática, nem cursos de fotografia? Em primeiro lugar era comum que fotógrafos profissionais oferecerem aulas àqueles que fossem próximos e também interessados 5. A segunda forma de adquirir informações era através dos manuais de fotografia estrangeiros como almanaques, revistas e jornais específicos que já se dedicavam aos amateurs a partir da década de 1880 6. Certamente, o acesso aos profissionais de fotografia e revistas estrangeiras podia ser facilmente estabelecido dentro do circuito Petrópolis - Rio de Janeiro no final do século 2

XIX e nos primeiros anos do século XX. Lembramos que Petrópolis era uma extensão dos núcleos aristocráticos cariocas, cidade de veraneio das classes sociais mais privilegiadas que viviam na capital do país. 2. Ciência e mudanças urbanísticas: o morro do Castelo Na série realizada em 1906 o fotógrafo se deteve em cenas do Observatório Astronômico da Cidade construído sob as ruínas da igreja e colégio dos Jesuítas e de seu entorno. Foram retratados o astrônomo Luis Cruls (1848-1908) dentro da cúpula e a vista externa do domo da construção. Nesse conjunto temos a vista do morro do castelo com suas moradias simples (Foto 1;2). Em 1907, Alberto de Sampaio fotografou o eclipse annular do sol, numa série cujos negativos de vidro medem 10,5 x 8 cm. Do mesmo modo que no ano anterior há cenas do entorno do morro do Castelo; e outras, diferentemente, documentam em primeiro plano o eclipse parcial do sol. Temos imagens tiradas de dentro da cúpula do edifício astronômico cujo tema é o próprio eclipse 7. Tais fotografias em close criaram composições abstratas como nas duas imagens que nos mostram o detalhe da perna de um homem em cima do banco, ao lado do tambor do heliostato. Alberto de Sampaio tinha por objetivo, possivelmente, estabelecer a proporção do instrumento astronômico, local em que podia ser visto o eclipse. São as únicas imagens em close do acervo do Rio de Janeiro e o interior da cúpula, moderna no sentido da ciência, contrasta com o entorno do morro que fora o berço da ocupação urbana da cidade (Foto 3;4). No mesmo dia, o Castelo foi registrado de forma visivelmente descentrada, pois temos um corte abrupto das edificações que estariam no centro da foto. O Corcovado, apesar de estar situado no último plano da fotografia, é o único a figurar no centro. Contudo, o objeto central da imagem é a vista do morro na fase máxima do eclipse, conforme está escrito no caderno de anotações de Alberto de Sampaio: Vista tomada do observatório 3

(castello) (phase máxima). Aqui temos um detalhe expressivo da composição fotográfica: o desenho da cadeia de montanhas no maciço do Corcovado acompanha a silhueta formada pela arquitetura das residências do morro do Castelo (Foto 5). Além disso, temos uma vista tomada na entrada do Observatório com a ilha das Cobras ao fundo, numa paisagem quase bucólica a contrastar com a função do edifício e sua importância científica para o país. Já a vista do Pão de Açúcar é um registro do cenário da baía de Guanabara, privilegiando a composição do morro com o mar, uma imagem realizada de forma semelhante por outros fotógrafos profissionais (Foto 6;7). Desse modo, podemos dizer que as imagens relacionadas com a ciência estão sempre no sentido vertical. E as vistas da paisagem, que mantém elos com as representações já conhecidas na iconografia da cidade, como a vista de Marc Ferrez (Foto 8), estão no sentido horizontal. Em outra fotografia, vemos Henrique Morize 8 (1860-1930) num instantâneo. Esse cientista seria o próximo diretor do Observatório Astronômico, pois substituiu Luís Cruls em 1908, após seu falecimento (Foto 9). As fotografias de Alberto de Sampaio não inovam enquanto temática, mas, ao contrário, situam-se numa prática já difundida. Porém, essas imagens nos mostram como a própria escolha do assunto a ser retratado influenciou a modernização do olhar do fotógrafo. Desse modo, as fotografias estão relacionadas com a cultura visual do período e, mesmo assim, apontam particularidades. Depois dessas duas séries, teremos fotografias do morro do Castelo somente no início dos anos 1920. A passagem do tempo trazia algumas mudanças para a história política do país, mas também determinadas continuidades. A antiga idéia de arrasar o Castelo ganhava novos vigores com a presença de Carlos Sampaio na prefeitura. Na época, o prefeito tinha por objetivo liberar terrenos para abrigar a Exposição de 1922, comemorativa do Centenário da Independência do Brasil. O processo de demolição começou em 1921 por iniciativa da prefeitura. Esse início ocorreu em meio a diversos debates com a utilização de apenas uma máquina escavadora situada na rua México. Mas o começo, de fato, dessa 4

obra de grande impacto para o espaço urbano da cidade ocorreu sob comando da firma Soares & Cia, composta por Teixeira Soares e também os filhos de Alberto de Sampaio, tendo sido assinado contrato com a prefeitura em 2 de maio de 1921. Com a verba obtida por meio de um empréstimo realizado com um Banco Holandês foram adquiridos trilhos, novas escavadoras, locomotivas e vagões 9. Temos aqui a interseção da esfera pública, ou seja, a transformação urbana da cidade, com a vida privada deste fotógrafo amador, pois seus filhos e sogro estavam encarregados de realizar uma das mais radicais mudanças da fisionomia urbana do Rio de Janeiro daquela época. Porém, em outubro de 1921, Carlos Sampaio contratou serviços de outra firma, alegando atraso no andamento das obras. Foi assinado contrato entre a prefeitura, os banqueiros americanos Dillon & Read e a firma de engenharia Kennedy & Co. Nesse momento, a força hidráulica usada para o arrasamento do morro passou a ser empregada de forma mais intensiva. O processo de demolição acelerou-se, porém o orçamento ultrapassou as estimativas iniciais, levando Carlos Sampaio a se contradizer constantemente em relação aos valores empregados na obra 10. As fotografias de Alberto de Sampaio registram, com detalhes, os equipamentos e os trabalhadores que atuavam na primeira etapa da demolição do morro do Castelo. As imagens podem ser divididas em três tipos: quando apenas eram utilizadas carroças, no primeiro momento da demolição (Foto 10); imagens com vagões de trens e guindastes para a remoção da terra (Foto 11); e fotografias de mangueiras hidráulicas que utilizavam a força da água para a destruição do morro. Algumas fotografias estão datadas em 14 de setembro de 1921 e podem ter sido realizadas com o intuito de documentar as obras, no período em que Teixeira Soares estava tentando impedir, judicialmente, o fim do contrato (Foto 12). Pela primeira vez o registro foi feito em equipamento estereoscópico com negativos de vidro que mediam 12 x 6 cm; existem imagens no tamanho 6 x 6 cm, com duas fotografias idênticas no mesmo suporte (fotos estereoscópicas que foram cortadas); e outras que constituíam vistas panorâmicas ocupando toda a dimensão do negativo. Vale lembrar 5

que são as únicas fotografias desse formato em todo acervo do Rio de Janeiro de Alberto de Sampaio. Há registros de detalhes no início do desmonte, sem o formato estereoscópico. O fotógrafo também não deixou de realizar alguns instantâneos como das crianças brincando nos arredores da obra (Foto 13;14). Outras fotografias nos mostram parte do aterro que começava a ser realizado em frente à igreja de Santa Luzia e do Palácio Monroe (Foto 15;16). Contudo, nosso interesse é compreender quais as diferenças das imagens de Alberto de Sampaio quando registrava atividades relacionadas com o universo do trabalho de seus familiares. Podemos dizer que, pela primeira vez, ele se detém na fotografia da obra, no processo de demolição e aterro. A composição de algumas fotografias é extremamente elaborada com o objeto central deslocado para uma das extremidades do campo da imagem e o foco centrado nos equipamentos e trabalhadores. A organização interna das cenas denota que o circuito social dos registros não estaria circunscrito apenas aos álbuns familiares, o que modifica o olhar do fotógrafo sobre o espaço. Nesse caso, Alberto de Sampaio utilizava a atividade fotográfica para documentar a transformação da fisionomia da cidade, relacionada com os empreendimentos da firma composta por seus familiares, a Soares & Cia. 3. Apontamentos finais O registro da modernidade compreendida nos primeiros anos do século XX, circunscrito ao desenvolvimento científico e às mudanças urbanas, implica em novos modos de vida na cidade e atua como elemento central nesses dois momentos documentados por Alberto de Sampaio. Esse fotógrafo participa ativamente desse processo, inclusive, com familiares envolvidos ns primeira etapa da demolição do morro do Castelo. Por isso, ele atua como um mediador das referências familiares para a representação imagética do universo coletivo de 6

sua época e marca, antes de tudo, o perfil do segmento social no qual estava inserido. O espaço urbanizado era o espaço da modernidade, tanto em relação às mudanças urbanas quanto à ocupação geográfica da cidade por classes sociais. Assim, ele emblematiza, a todo momento, as transformações que presencia, utilizando a fotografia como índice dos acontecimentos vividos. Sendo um fotógrafo amador, autor e principal espectador de sua produção, Alberto de Sampaio dialoga com as categorias compreendidas na cultura visual de sua época e, do mesmo modo, também cria novos códigos ao utilizar as possibilidades oferecidas pelo dispositivo técnico de apreensão de imagens. Portanto, este pequeno conjunto de registros evidencia uma questão crucial que compreende, num sentido mais amplo, o acervo do Rio de Janeiro: tais documentos visuais apontam novos caminhos, se modernizam, educando o próprio olhar do fotógrafo. 1 Esse texto foi produzido a partir da dissertação de Mestrado - MARTINS PEREIRA, Adriana Maria. Lentes da Memória: a fotografia amadora e o Rio de Janeiro de Alberto de Sampaio (1888-1930). UNIRIO - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Mestrado em Memória Social e Documento, 2004. 2 MAUAD, Ana Maria. Sob o signo da imagem: A produção da fotografia e o controle dos códigos de representação social da classe dominante, no Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX. Tese de Doutorado, UFF, 1990. 3 SEIBERLING, Grace & BLOORE, Carolyn. Amateurs, photography and the mid-victorian imagination. Chicago: The University of Chicago Press, 1986. 4 Idem; KOSSOY, Boris. Origens e expansão da fotografia no Brasil- século XIX. Rio de Janeiro: Funarte, 1980. Todo o procedimento para a utilização da câmera Kodak era muito simples: depois de capturadas as cenas, a câmera era enviada por correio para o fabricante, sediado em Rochester, nos EUA. Mais tarde, o autor das fotos recebia as imagens reveladas em sua própria casa com uma nova câmera. Facilidades que tornaram o processo fotográfico acessível a outros âmbitos da sociedade. 5 MAUAD, Ana Maria. Op. Cit. 6 SEIBERLING, Grace & BLOORE, Carolyn. Op. Cit. 7 O eclipse parcial solar aconteceu em 10/07/1907 e pôde ser observado das 15:53 às 17:46, segundo o anuário do Observatório Astronômico. 7

8 Henrique Morize, físico e astrônomo francês, desenvolveu importantes pesquisas científicas, no Brasil, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Foi professor da Escola Politécnica e diretor do Observatório Nacional (antigo Observatório do Rio de Janeiro) de 1909 sucedendo Luis Cruls a 1929. Além disso, integrou a Comissão Exploradora do Planalto Central de 1892 a 1894. Também fez parte da Comissão Científica de Observação do Eclipse do Sol, quando foi comprovada a teoria da relatividade na visita de Einstein ao Brasil em 1919. Cf. Arquivo Henrique Morize: inventário sumário, Rio de Janeiro: MAST, 1995; Observatório Astronômico: um século de história (1827-1927), Rio de Janeiro: MAST, 1987. 9 KESSEL, Carlos. A vitrine e o espelho: O Rio de Janeiro de Carlos Sampaio. Rio de Janeiro: Secretaria das Culturas, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2001. 10 Idem, ibidem. 8