Palavras. Professora Universidade Federal de Rondônia, campus universitário de Vilhena. Mestre em Teoria da Literatura. E-mail: sandrafelf@hotmail.



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Transcrição:

183 Sandra Aparecida Fernandes Lopes Ferrari¹ Resumo: Há muitas maneiras de se falar sobre a produção do sentido poético e essa questão se intensifica nos tempos atuais. Vivemos num tempo em que os vários discursos correntes acabam, de certa forma, afastando a poesia do seu centro e provocando o deslocamento do sujeito para um novo espaço. Isso leva a uma fragmentação do sujeito em múltiplas identidades e abre caminho para uma maior reflexão sobre o sentido da identidade poética e da existência humana. Nessa direção, encontram-se os versos de Manoel de Barros. Palavras alavras-chave: deslocamento; identidade; sentido poético; Manoel de Barros. Abstract: There are many ways to talk about the production of poetic meaning and this issue is intensified in modern times. We live in a time when the various current speeches are over, somehow putting the poetry away from its center and causing the displacement of the subject for a new space. This leads to a fragmentation of the subject on multiple identities and opens the way for a greater reflection on the meaning of poetic identity and human existence. In this direction are Manoel de Barros s verses. Keywords: displacement; identity; poetic sense; Manoel de Barros. 1 Professora Universidade Federal de Rondônia, campus universitário de Vilhena. Mestre em Teoria da Literatura. E-mail: sandrafelf@hotmail.com

184 Bernardo é quase árvore. Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem. (Manoel de Barros) O universo crítico e teórico da produção literária contemporânea produz uma série de reflexões. O conceito de literatura, desvinculado de hierarquias, em que formas e elementos não canônicos antagonizam-se, acaba dando à teoria uma identidade fragmentária. Isso se dá a partir do enfraquecimento das identidades nacionais, causado pelo processo de globalização, que desestabiliza os códigos culturais e, com isso, a perda de identidade do próprio indivíduo. Muitas reflexões têm sido feitas a respeito do conceito de indivíduo pós-moderno. Grandes teóricos, principalmente os da sociologia, discutem a questão sob o argumento de que as velhas identidades estão em declínio. Entendemos por velhas identidades aquelas que se mostram estáveis e unificadas. Essa unificação do sujeito à sociedade, na segunda metade do séc. XX, passa por um processo de desagregação ou de deslocamento do seu centro e, nesse descentramento, o indivíduo encontra-se na chamada crise de identidade. Sabemos que o conceito de identidade no universo pós-moderno é algo discutível, isto é, segundo Hall, o próprio conceito com o qual estamos lidando identidade, é demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na ciência social contemporânea para ser definitivamente posto à prova (HALL, 2005, p.8). Tal pensamento impossibilita afirmações e conclusões a esse respeito, sendo-nos permitido apenas traçar algumas reflexões sobre a origem dessa questão. Para compreender as modificações pelas quais passou o sujeito, Hall refere-se a três concepções: o sujeito do Iluminismo, aquele que é racional, soberano, centrado em si; o sujeito sociológico, que realiza a interação do eu com a sociedade; e o sujeito pós-moderno, que se descentraliza dos ideais iluministas e sociais e se fragmenta em várias identidades, muitas vezes contraditórias consigo mesmas. O autor lembra que a identidade torna-se uma celebração móvel formulada e transformada continuamente

185 (HALL, 20005, p.13). Torna-se possível, portanto, uma identificação temporária, múltipla, que a qualquer momento é constantemente e rapidamente examinada e reformada. Hall continua dizendo que a identidade do sujeito pós-moderno surgiu das mudanças conceituais advindas do pensamento filosófico do final do séc. XIX e das primeiras décadas do séc. XX. As ideias marxistas, o pensamento freudiano, os conceitos de Saussure a respeito da instabilidade dos significados; o trabalho de Foucaut, que provoca a noção de sujeito individualizado, e, por fim, o surgimento dos grupos minoritários da sociedade, são fatos que contribuem para consolidar o descentramento do sujeito, negando toda a concepção cartesiana. Esse estado de coisas coloca em colapso todas as identidades culturais, provocando uma fragmentação de códigos culturais, multiplicidade de estilos, ênfase no efêmero, no flutuante, no impermanente e no pluralismo. As influências externas advindas da globalização quebram as noções de unidade cultural e enfraquecem o próprio conceito do indivíduo pós-moderno. O consumismo é um dos grandes responsáveis por essa dissolução da sociedade. A ideia de globalizar o mundo desaloja o indivíduo da sua identidade e coloca-o em situação de um profundo sentimento de perda subjetiva. A descentralização do sujeito de sua coletividade o torna um sujeito agônico, alienado, perdido nas multidões formadas por indivíduos individualizados, em busca de sua própria identidade. Desta forma, as estruturas que suportam a tradição são estilhaçadas pela sociedade pós-moderna. Estas não têm nenhum centro, não se mobilizam em favor de uma única causa ou lei. Por essas vias caminha o panorama da pósmodernidade. Sabemos que o fim de século deflagra um momento de trânsito, em que o espaço e o tempo se cruzam e produzem figuras complexas, como os paradoxos (interior e exterior, passado e presente). No entanto, tais paradoxos não se fazem de forma negativa, mas produzem, segundo Homi Bhabha, não uma negação, mas uma negociação das instâncias contraditórias e antagônicas que abrem lugares e objetivos híbridos de luta e destroem as polaridades negativas (BHABHA, 1998, p.51).

186 A concepção dialógica entre as fronteiras da arte acaba por produzir uma revisão da história, da teoria, da cultura, da crítica e da produção literária. Dado a esse fato, a arte poética se instaura no mundo das inscrições duplas; a poesia passa a dar voz a vários sujeitos que se entrecruzam no espaço da enunciação, no qual surge toda a problemática da sujeição e da identificação. Dentre essas várias inscrições da produção artística contemporânea estão os versos de Manoel de Barros. Amparados pela amplitude semântica da linguagem, sua poesia cria um mundo que leva a refletir sobre o sentido da identidade artística e da existência humana. Se fizermos a leitura de alguns de seus poemas voltando nossa direção para fora do texto e tentando associar nosso pensamento à realidade externa, teremos a impressão de que eles se caracterizam exclusivamente por instalarem-se num universo espacial da região pantaneira, afinal, esse é o habitat de Manoel de Barros. No entanto, esse fato biográfico nos leva a refletir sobre a natureza de sua poesia, vista pela crítica como obra de grande valor representativo da cultura e dos costumes do Pantanal. Ela é, assim, comumente associada, por alguns críticos, ao universo regionalista, dando ao poeta a definição de poeta das planícies, poeta do pantanal, entre outros. Entretanto, veremos que sua obra não se reduz ao pitoresco, ao referente, no caso, o Pantanal, mas vai além da relação associativa superficial do ecologista ingênuo (BARBOSA, 1990). O próprio Manoel de Barros não aceita a ideia de ser rotulado a qualquer tipo ou epíteto: eu criei um estilo próprio, já me chamaram de poeta da geração de 45, mas não aceito isso (BARROS, apud BRASIL; AZEVEDO, 1998). Embora suas obras se instalem num espaço regionalista pantaneiro, veremos que há uma desespacialização desse universo. Sua poesia pinça elementos regionais e os envolve na singularidade de um discurso provocativo que brinca com seu leitor. O leitor menos atento diria que sua obra é uma simples apologia ao Pantanal, pela forte presença, em seus textos, dos elementos da natureza. No entanto, veremos que a obra de Barros não tem como alvo enaltecer o espaço pantaneiro e nem pretende ser idílica. Ela alcança uma dimensão maior: procura construir uma visão de mundo que,

187 em vez de apenas individual, torna-se universalizada por meio da construção própria de sua linguagem. Diante de tais reflexões, pretendemos delinear neste artigo alguns sentidos apontados pela poesia de Manoel de Barros do ponto de vista da deslocalização do individuo e da busca de identidade. Veremos que a produção do sentido de lócus em Barros se faz de maneira muito singular. Inserida na visão de poesia na qual o fenômeno significativo, para lembrar o pensamento de Barthes, aparece suspenso, fugidio, a poesia de Barros vale-se de uma visão extrínseca do objeto, no caso, a realidade pantaneira, para buscar a significação poética, partindo da conotação dessa realidade que, ao representar-se, deixa de ser ela mesma, adquirindo duplicidade de sentidos. O sentido que Barthes chama de real é aquele que aparece nomeado. A poética de Barros busca transformar esse sentido para torná-lo referência ambígua, possibilitando o surgimento de uma realidade transfeita, que recupera sentidos perdidos da linguagem. Assim, o discurso de sua poesia instaura-se, conforme Barthes, por meio de uma técnica decepcionante do sentido: Isso quer dizer que o escritor se aplica em multiplicar significações, sem as preencher, nem fechar (BARTHES, 1999, p.173). No poema a seguir, percebemos que o poeta elabora seu discurso a partir de situações e fatos que, à primeira vista, podem ser observados como representação referencial de um simples motivo desencadeador de todo discurso: XIV De 1940 a 1946 vivi em lugares decadentes onde o mato e a fome tomavam conta das casas, dos seus loucos, de suas crianças e de seus bêbados. Ali me anonimei de árvore. Me agarrei por beiradas de muros cariados desde Puerto Suarez, Chiquitos e Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Depois em Barranco, Tango Maria (onde conheci o

188 Poeta César Valejo), Orellana, e Mocomonco no Peru. Achava que a partir de ser inseto o homem poderia entender melhor a metafísica. Eu precisava ficar pregado nas coisas vegetalmente e achar o que não procurava. Naqueles relentos de pedras e lagartos gostava de conversar com idiotas de estrada e maluquinhos de mosca. Caminhei sobre grotas e lajes de urubus. Vi outonos mantidos por cigarras. Vi lamas fascinando borboletas. E aquelas permanências nos relentos faziamme alcançar os deslimites do Ser. Meu verbo adquiriu espessura de gosma. Fui adotado em lodo. Já se viam vestígios de mim nos lagartos. Todas as minhas palavras já estavam consagradas de pedras. Dobravam-se lírios para os meus tropos. Penso que essa viagem me socorreu a pássaros. Não era a denúncia das palavras que me importava, mas a parte selvagem dela, os seus refolhos, as suas entraduras. Foi então que comecei a lecionar andorinhas. (BARROS, O livro das ignorãças) Notamos neste poema que o poeta estabelece relações de proximidade entre horizontes de um mundo real e a construção de um outro mundo: o do poema. Parece haver indicação de uma realidade aparentemente referencial, com tempo e espaço bem definidos, nos primeiros versos. Entretanto, a partir dessa realidade espacial, o poeta já vai engendrando o seu discurso. As datas expressas referencialmente no primeiro verso contrapõem-se à noção de espaço presente no segundo e terceiro versos. Os lugares decadentes expressam traços próprios de lugares onde vivem loucos e bêbados em estado de abandono, tomados pelo mato. Essa dimensão

189 temporal e espacial colabora para uma diluição gradativa da referência e faz com que a linguagem possa atingir um estado propício para o delírio do verbo, metaforizando, assim, marcas próprias de uma poesia que, por meio da desconstrução de traços da linguagem pré-estabelecida pela nomeação gasta, busca fixar-se num grau de cumplicidade com o universo vegetal: Ali me anonimei de árvore. Nesse ponto, o poeta, ao identificar-se com as coisas que nomeia, e anonimando-se assim à maneira da árvore, passa por uma espécie de perda da identidade humana, graças a uma linguagem que vai se deslocando de seus índices de referência. Podemos notar que no poema a cumplicidade entre o eu lírico e o espaço descrito acaba por tornar ambíguo o aparente aspecto referencial que expressa, utilizando esse referente como simulação de uma estrutura discursiva que se prende aos procedimentos artísticos: Me agarrei por beiradas de muros cariados desde / Puerto Suarez, Chiquitos e Santa Cruz / de La Sierra, na Bolívia. Esses versos não querem representar simplesmente elementos da vida inseridos numa realidade externa comum, nem tampouco abandonálos. Antes, procuram unificá-los num mesmo sentido, expressando uma realidade que vai aos poucos perdendo a capacidade de situar o sujeito lírico em um tempo e um espaço definidos. O espaço descrito acaba sendo um lugar próprio para a unificação do sujeito lírico com os objetos que descreve: Eu precisava ficar pregado nas coisas vegetalmente / e achar o que não procurava. Essa relação de cumplicidade entre o ser humano e os seres da natureza traz à tona o espaço natural, no qual os versos de Barros se instalam. A ideia de espaço expressa por essa relação pretende ser apenas uma simulação da visão contemplativa da natureza. O poeta não quer ressaltar a exuberância provinda de uma visão idealizada das coisas naturais, porque não adere, em seus versos, ingenuamente à ideia paradisíaca de uma natureza. Antes, os elementos mineral, vegetal e animal, ao apresentarem-se unificados, configuram a possibilidade de uma reflexão a respeito do sentido da existência humana: Achava que a partir de ser inseto o homem poderia/ entender melhor a metafísica. O poeta busca aproximar realidades aparentemente distintas

190 e, por meio dessa junção, vê a possibilidade de se chegar a uma reflexão sobre os limites humanos, transformando a natureza em ser primordial da existência. Nela, na natureza em harmonia com o homem, torna-se possível para o poeta achar o que não procurava, através das permanências nos relentos, que o levariam a alcançar os deslimites do Ser. Daí se pode pensar que o Ser só se faz por intermédio desse processo de aproximação entre os reinos da natureza. Notamos também que há uma unificação do humano com o vegetal, que se unifica com o ser da poesia: [...] Meu verbo adquiriu espessura de gosma. Fui adotado em lodo. Já se viam vestígios de mim nos lagartos. Todas as minhas palavras já estavam consagradas de pedras. Dobravam-se lírios para os meus tropos. Penso que essa viagem me socorreu a pássaros. Não era a denúncia das palavras que me importava, mas a parte selvagem dela, os seus refolhos, as suas entraduras. Foi então que comecei a lecionar andorinhas. O processo de desespacialização se unifica com o processo de construção poética, que nasce da unidade do poeta com a natureza: Já se viam vestígios de mim nos lagartos./ Todas as minhas palavras já estavam consagradas de / pedras.. Esse movimento relacional entre os reinos da natureza faz nascer também transformações semânticas, a partir dessas permanências das palavras nos relentos : Meu verbo adquiriu espessura de gosma. Nesse espaço seria possível surgir um novo ser adotado em lodo, o Ser, que se confunde com o ser da poesia. Ao representar um movimento de cumplicidade do homem com a natureza, o sujeito lírico constrói um discurso baseado em elementos da linguagem, esquecidos pelos usos corriqueiros. Assim, o discurso do poeta leva-nos a refletir sobre a noção representativa e apresentativa da realidade exterior das coisas. O poeta busca nas palavras a parte selvagem delas, para traçar sentidos

191 aos seus versos. Vemos que procura priorizar as reentrâncias da palavra, nas quais a realidade extrínseca provoca uma mudança de funções de sentidos, dissolvendo-se quase que totalmente em detrimento dos elementos intrínsecos do poema. Não era mais a denúncia das palavras que me / importava, mas a parte selvagem delas, os seus / refolhos, as suas entraduras.. Esses procedimentos que o poeta utiliza para dar sentidos ao discurso é que acabam dando ao poema um caráter ambíguo: ao desreferencializar as coisas, o sujeito lírico passa a ser as coisas que desreferencializar, assumindo uma outra identidade, na qual o ser dos entes intramundanos, para aprender a expressar suas vozes, sendo as coisas, dirá suas palavras. Ele está em completa e compromissada promiscuidade com os animais, com os vegetais e com os minerais, bem como com todos os processos de metamorfoses neles existentes (CASTRO, 1991, p.137). As transformações pelas quais passam as naturezas animal, vegetal, mineral e humana acontecem de maneira ordenada, de forma conjunta. Dizendo de outra forma, para a poesia de Barros, todas as coisas da natureza, cada reino, têm a sua especificidade, mas ordenam-se por meio de relações mútuas, cuja finalidade é a unificação de pontos aparentemente opostos que se harmonizam. Nesse sentido, o discurso de Barros leva a um processo simultâneo de desumanização e deslocalização, provocado pela tensão entre os diferentes universos naturais. Ao unificar os reinos da natureza, o homem se (des)humaniza, ao mesmo tempo que busca sua humanização plena, no deslocamento da dimensão extrínseca para a intrínseca. Isso só é possível de se atingir, segundo o poeta, por meio do processo de apropriação homem / mineral / vegetal / animal, em que no universo descrito, o sujeito e a própria linguagem ganham transcendência pelo processo de (des)localização de seu universo de origem: Já se viam vestígios de mim nos lagartos / todas as minhas palavras já estavam carregadas de / pedras.. Estamos diante de uma produção poética que absorve resíduos da realidade, deforma conteúdos, fazendo com que a ordem de espaço e tempo se desprenda da sua

192 realidade de origem. Isso provoca o que podemos chamar de deslocalização das coisas e dos elementos de sentidos extrínsecos do poema. O espaço pantaneiro se deslocaliza, subordinando-se à voz do sujeito lírico que dela se vale para construir a realidade da linguagem poética. Todo esse processo leva o discurso a uma aproximação com as várias significações das palavras que se cruzam e se (des)realizam na elaboração da linguagem: Eu precisava ficar pregado nas coisas vegetalmente / e achar o que não procurava.. O mesmo acontece com a realidade dos diferentes mundos da natureza, que deixam de ser opostos, mas conservam sua singularidade numa espécie de contínua transfusão de um ser para outro: do homem ao animal, ao vegetal, ao mineral, simultaneamente: Todas as minhas palavras já estavam consagradas de / pedras. / Dobravamse lírios para os meus tropos.. As palavras do poeta, consagradas de pedras, expressam a mobilidade de sua linguagem, representada pelos estados mineral pedras e vegetal lírios, que configuram um estado próprio para o surgimento do universo poético barreano. Essa mobilidade representa, também, o deslocamento do próprio sujeito lírico, numa viagem socorrida a pássaros. Desta forma, é concedido ao poeta o poder de não prender-se aos elementos extrínsecos e criar em sua obra uma terceira margem, que surge do mecanismo de união entre os seres da natureza. O poeta passa a (des)construir a significação e a ordenação das palavras sem seus versos, criando uma outra realidade, que possui os traços de sua própria existência: Foi então que eu comecei a lecionar andorinhas. A forma como a poesia de Barros se insere no universo fragmentário da pós-modernidade nos permite visualizar de maneira singular o deslocamento das estruturas nas quais o sujeito se dessubstancializa e vira pedra, bicho e planta ao mesmo tempo. Vemos, portanto, que a poesia de Manoel de Barros não se enquadra em nenhum rótulo regionalista ou outro qualquer que seja; não se mostra engajada na única função de representar o Pantanal por suas belezas naturais. Uma poesia que enaltece os bichos, as pedras e as plantas sem querer ter tal função e ao representar esses elementos, ela

193 os desreferencializa e os desloca. Uma poesia que desmente a simples praticidade dos outros discursos da contemporaneidade, que desvela e resgata os rumos da arte. Referências Bibliográficas BARBOSA, Frederico. Poeta elabora gramática das coisas inúteis. Folha de São Paulo, 01/12/90. BARBOSA, João Alexandre. A leitura do intervalo. São Paulo: Iluminuras: 1990.. A metáfora crítica. São Paulo: Perspectiva, 1974. BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 2000. BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Tradução de Leila Perrone Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1999. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMJ, 1998. BRASIL, Rodrigo; AZEVEDO, Reinaldo. O traidor da natureza. Revista Bavo!, Julho de 1998 Ano I. CASTRO, Afonso de. A poética de Manoel de Barros: a linguagem e a volta à infância. Campo Grande: Editora FUCMT- UCDB, 1992. CORTÁZAR, Julio. Para uma poética. In:. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva 1984. FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Tradução de R. Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. LIMA, Luis Costa. Mimesis e modernidade: formas e sombras. Rio de Janeiro: Graal, 1980. SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. SARTRE, J. Paul. Que é literatura? São Paulo: Ática, 1999. Aceito em: 03.06.2010

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