O CAMPO Lamparina Revista de Ensino de Teatro EBA/UFMG. Volume 01- Número 02/ 2011. 65
A construção das identificações de gênero: o fazer e o apreciar pelo ensino de teatro Guaraci da Silva Lopes Martins 1 Robson Rosseto 2 RESUMO Este estudo reflete sobre as identificações de gênero presentes no espaço formal da educação. O potencial do teatro é considerado como fonte de reflexão e desenvolvimento do pensamento crítico para a superação dos discursos excludentes ao modelo hegemônico estabelecido socialmente, pautados pela sociedade heteronormativa que tende ao estabelecimento das formas de viver, de ser e de sentir. A discussão está fundamentada em aportes teóricos advindos dos estudos sobre gênero e sexualidade numa articulação com teóricos da pedagogia do teatro. Constatou-se que o exercício do professor, ao mediar a cena teatral, é uma prática essencial para refletir junto aos alunos sobre conceitos e padrões de comportamento preestabelecidos. Palavras-chave: Gênero. Sexualidade. Pedagogia do Teatro. ABSTRACT This study reflects on the gender identifications present in the formal education. The potential of the theater is considered as a source of reflection and critical thinking to overcome the exclusionary discourses to the hegemonic model established socially, guided by the heteronormative society that tends to establish ways of living, being and feeling. The discussion is based on the oretical contributions arising from studies on gender and sexuality about the theater pedagogy theorists. It was found that the job of the teacher, to mediate the theater scene, is an essential practice with the students to reflect on concepts and pre-established patterns of behavior. Keywords: Gender. Sexuality. Pedagogy of Theater. 1 Doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia/UFBA, Mestre em Educação pela Universidade Tuiuti do Paraná e docente da Faculdade de Artes do Paraná/FAP. Integrante do Grupo de Pesquisa Arte, Educação e Formação Continuada/UNESPAR, do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Relações de Gênero e Tecnologia/GeTec e membro do GT Pedagogia do Teatro & Teatro e Educação da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas/ABRACE. 2 Mestre em Teatro pela Universidade Estadual de Santa Catarina/UDESC, docente da Faculdade de Artes do Paraná/FAP. Integrante do Grupo de Pesquisa Arte, Educação e Formação Continuada/UNESPAR e membro do GT Pedagogia do Teatro & Teatro e Educação da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas/ABRACE. 66
Este texto resulta da reflexão sobre as contribuições do ensino do teatro mediado pelas subjetividades de corpos, em geral marcados por discursos de exclusão pautados pela heteronormatividade. Acredita-se que as relações de poder que permeiam as relações de gênero são parte integrante da construção dos currículos escolares, salientando que o amplo campo teórico existente hoje em torno do sexo, do gênero e da sexualidade é um terreno pouco explorado no ambiente escolar. Diante de tal perspectiva, cabe a consideração da necessidade dos educadores examinarem como o próprio espaço escolar reproduz os aspectos sociais responsáveis pela produção e reprodução das injustiças de gênero, sexualidade, classe e etnia, dentre outras categorias que se relacionam entre si. A escola é um espaço profícuo para o exercício da democracia. Neste sentido, é fundamental o questionamento dos docentes sobre o currículo formal e o oculto da escola pública, para o reconhecimento de ideologias e práticas sociais que operam contra os imperativos democráticos. A naturalização da heteronormatividade na instituição escolar dos dias atuais permanece um desafio a ser enfrentado, entendendo-se o conhecimento sistematizado como o vetor deste empreendimento. As políticas curriculares, ou mesmo as práticas escolares, abordam as questões de sexo, gênero e sexualidade como temas que devem-se limitar a um campo disciplinar denominado educação ou orientação sexual. Neste campo de ação pedagógica, a escola busca a regulação e a orientação para crianças e adolescentes, a partir dos padrões considerados normais e naturais. Na quase totalidade dos discursos, das políticas curriculares e das práticas, é negada a possibilidade de que os sujeitos possam ter como objeto amoroso e de desejo alguém de seu próprio sexo (LOURO, 1999, p.135). Ainda segundo a autora, muitas propostas e projetos de ensino silenciam sobre a relação afetivo-homossexual, tendo como pressuposto a sua inexistência. É relevante pensar, nesse aspecto, o papel do teatro visto como um amplo campo de conhecimento capaz de desestabilizar conceitos compreendidos como inquestionáveis e que tendem a estabelecer papéis e situações sociais. Esta área da arte solicita a presença do sujeito em todas as suas capacidades expressivas, para que ele possa manifestar com eficiência os seus pensamentos, seus sentimentos e suas emoções. Esta linguagem artística na escola pode ser uma prática pedagógica eficiente para que os alunos vivenciem as diferentes formas de expressão vocal e corporal, experimentando também sentimentos e emoções, por vezes, jamais explorados. Cada papel a ser explorado é uma promessa do envolvimento em novas situações e contextos retirados do mundo real ou imaginário, podendo ser elaborados e reelaborados de acordo com o interesse e as necessidades das pessoas envolvidas. Uma proposta pedagógica que visa à transformação individual e social precisa viabilizar a relação dialógica ao longo de todo o percurso do ensino-aprendizagem. Cabe lembrar que o diálogo está presente em todas as propostas teatrais; ainda que o estudante se expresse por 67
meio de um monólogo, ele recorre ao diálogo interno. A relação dialógica indispensável para a troca de informações e de conhecimento entre as pessoas é uma característica do Teatro, capaz de estimular o aluno/ator/espectador a uma envolvente discussão sobre diferentes temas e questões humanas. [...] na atividade própria do espectador cooperam dois elementos: de um lado, a reflexão e, de outro, o contágio passional, o transe, a dança, tudo o que emana do corpo do ator e incute a emoção no corpo e no psiquismo do espectador, tudo o que induz, por meio de signos (sinais), o espectador da cerimônia teatral a experimentar emoções que, sem ser idênticas às emoções representadas, mantém com elas relações determinadas. (UBERSFELD, 2005, p.28) De acordo com Geraldo Salvador Araújo (2006, p. 6), na sala de aula deve haver um fazer e um refazer das condições necessárias para que aos educandos seja possível mostrar voz e presença ativas. O processo dialógico que visa o exercício da democracia requer o experimento da construção/desconstrução das relações sociais presentes na vida cotidiana e que se interpõem na prática da vida diária aos interesses individuais e coletivos. No espaço da cena, muitas vezes, conceitos e padrões de comportamento preestabelecidos são enfatizados no jogo e podem gerar profundas e enriquecedoras discussões entre todos os envolvidos: professores/professores, professores/alunos e alunos/alunos. É possível afirmar que a ação do fazer teatral é uma atitude de intervenção no cenário da ética, da política e da construção do saber. Quando as pessoas que se reconhecem no terreno de feminilidades e masculinidades de formas diversas das hegemônicas assumem esta condição, elas acabam por interromper a linha de continuidade e de coerência que se supõe natural entre corpo, sexualidade e gênero. Com efeito, uma ação política por excelência, mas, nas atuais condições, um ato que ainda pode cobrar o alto preço da estigmatização. (LOURO, 2001, p.31) Esta argumentação evidencia a necessidade de a instituição escolar investir em novas percepções das relações sociais, que promovam a pluralidade e o lugar para a diferença, em busca de novos paradigmas pautados por atos éticos de liberdade em um processo de ressocialização. Uma das consequências mais significativas da subversão dessa lógica dicotômica, esta que implica uma ideia singular de masculinidade e de feminilidade, encontra-se na possibilidade que se abre para a compreensão e inclusão das múltiplas formas de constituição dos sujeitos, nos variados espaços sociais, em especial na organização e no cotidiano escolar. Em toda a relação, lidamos com papéis, mas eles podem ser questionados. Por meio do espaço cênico, é possível abrir o acesso a novos conceitos que desafiam os fundamentos básicos da normatividade, em direção às novas perspectivas de inter-relação social. É oportuno lembrar que o teatro contribui para uma discussão efetiva entre os sujeitos 68
sobre as mais diversas questões e os mais diversos valores humanos encontrados no contexto sociocultural. Nesta perspectiva, o ensino desta linguagem artística precisa ser um espaço imaginativo e reflexivo em que se pensem e se inventem novas relações sociais, dentro e fora da escola (DESGRANGES, 2003, p.72) 3. Entende-se que no ensino do teatro com enfoque nos discursos binários que permeiam a temática do gênero e da sexualidade, é fundamental que o professor esteja preparado para fomentar as discussões sobre as propostas e os temas desenvolvidas/os no dia a dia da sala de aula. Para Viola Spolin, que estudou o jogo teatral, a recepção está vinculada com a avaliação pautada na interação e na discussão das ideias emanadas do fazer teatral. A platéia de jogadores não permanece sentada esperando pela sua vez, mas está aberta para a comunicação/experiência e torna-se responsável pela observação do jogo a partir desse ponto de vista. Aquilo que foi comunicado ou percebido pelos jogadores na platéia é discutido por todos. (SPOLIN, 2001, p. 32) Sendo assim, ao proporcionar para o aluno o papel de espectador, tanto em espetáculos teatrais quanto nas encenações realizadas pelos colegas de turma, o professor deve promover a reflexão dos diferentes olhares. Nesta proposta pedagógica, o receptor deixa de ser um mero espectador passivo para atuar como agente ativo da obra artística. Por outro lado, no espaço regular de educação, as implicações em torno da recepção frequentemente são negligenciadas no ensino e na aprendizagem mediada pelo teatro. O estudo sobre a recepção é de suma importância na formação docente, para o aprofundamento desta discussão reflexiva sobre o aluno/espectador em processo de ressignificação de conceitos. A escola é parte integrante da sociedade em que vivemos, muitas vezes reforçando e reproduzindo códigos de condutas circunscritas a modelos de vigilância e de controle, produzindo também o indivíduo da sociedade disciplinar. Contudo, sendo a instituição escolar um espaço direcionado à discussão dos conhecimentos historicamente acumulados, o trabalho sobre as relações de gênero, nesta instituição, precisa ter como ponto de partida o combate de relações autoritárias e o questionamento dos padrões de conduta estabelecidos para homens e mulheres. Como espaço dedicado a formas de fortalecimento pessoal e social, a escola deve oferecer aos estudantes a oportunidade para que desenvolvam capacidades de questionamento do sistema atual de dominação e submissão, preparando-os para a luta por esferas públicas democráticas. As diferenças existem e é a partir delas que somos posicionados e nos posicionamos; é a partir delas que os diferentes grupos se fazem perceber no mundo construído sócio-culturalmente. 3 Em suas pesquisas, Flávio Desgranges nos faz refletir sobre o espectador como protagonista de um teatro concebido como manifestação cultural em que a dimensão educativa é intrínseca. 69
Trazemos para esta reflexão o entendimento de Michel Foucault (2004) sobre o sistema de educação como espaço político, capaz de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que carregam consigo. Seria interessante que a pedagogia, em seu sentido mais crítico, colocasse em pauta a forma como o poder está imbricado nos vários processos pelos quais o conhecimento, a identidade e a autoridade são construídos no interior de conjuntos particulares de relações sociais. O ponto de partida está em considerar os estudantes como sujeitos coletivos em suas várias características, e lhes dar voz ativa em suas experiências de aprendizagem como pessoas sociais integradas em contextos distintos e diversos: É na minha disponibilidade permanente à vida a que me entrego de corpo inteiro, pensar crítico, emoção, curiosidade, desejo, que vou aprendendo a ser eu mesmo em minha relação com o contrário de mim. E quanto mais me dou à experiência de lidar sem medo, sem preconceito, com as diferenças, tanto melhor me conheço e construo meu perfil. (FREIRE, 2004, p.134) A discussão sobre a formação dos estudantes nos conduz necessariamente à reflexão sobre a formação inicial e continuada do professor: um ser do e no mundo e que expressa a sua interação e as suas influências adquiridas nas relações sociais. Ainda que as questões de gênero e de sexualidade representem um tabu no espaço escolar, e por esta razão se encontrem excluídas do currículo, é imprescindível que os cursos de formação forneçam os espaços necessários para que o docente partícipe da formação de indivíduos na escola possa problematizar, com responsabilidade e consciência, esta temática em sala de aula. Uma proposta pedagógica que vise a aprofundar a reflexão sobre questões sociais na perspectiva da cidadania e da democracia coloca em foco não apenas a formação dos educadores, mas a sua própria condição pessoal como sujeitos, em direção ao estabelecimento de propostas educacionais comprometidas com a discussão e a negociação entre as pessoas. Concordando com Paulo Freire (2004, p. 95), como professor, não me é possível ajudar o educando a superar sua ignorância se não supero permanentemente a minha. Não posso ensinar o que não sei. Somente quando ampliamos a nossa percepção sobre as próprias ações e sobre as razões que nos levam a agir de uma determinada maneira, nos tornamos capazes de mudar. Para tanto, é preciso a disponibilidade para a aceitação de novas proposições. Este é um processo de promoção da ingenuidade à crítica sem ocorrência automática, mas presente no desenvolvimento da curiosidade crítica, insatisfeita e indócil em um permanente movimento social de busca. Um dos primeiros passos para lidar com as questões de gênero, seja na escola, no teatro ou na sociedade, requer uma proposta que nos permita pensar em termos 70
de pluralidades e de diversidades. Ela precisa partir de uma epistemologia capaz de contribuir para a subversão de esquemas que impedem as pessoas de se expressarem ou vivenciarem suas relações, seja dentro ou fora dos padrões da heterossexualidade. Em seu dinamismo, o processo teatral oferece variadas possibilidades de encaminhamentos metodológicos para que as pessoas possam se manifestar por meio da cena, um terreno profícuo para a prática da liberdade. O teatro proporciona a utilização de variados recursos no desenvolvimento de uma proposta teatral. As pessoas envolvidas nesta ação pedagógica podem se utilizar de textos já elaborados, existentes ANNE UBERSFELD no imenso repertório de obras dramáticas nacionais ou estrangeiras. Acrescenta-se as contribuições daqueles textos baseados na criação coletiva, a partir dos mais diversos recursos jornais, contos, fragmentos de texto, histórias de vida, composição musical, provérbios, situações do cotidiano, dentre outros que são igualmente importantes para o desenvolvimento da imaginação criativa e para o pensamento crítico, reflexivo e construtivo dos estudantes envolvidos com o processo cênico. Nessa perspectiva, as estratégias cênico-pedagógicas mediadas pelo tema gênero e sexualidade, comprometidos com o viés da crítica, são sempre bem vindas em propostas que visem contribuir para o empoderamento de determinados sujeitos nos espaços formais de educação e fora deles. Uma compreensão abrangente sobre o teatro, certamente, possibilita aos professores o efetivo acesso ao dinamismo que esta área do conhecimento oferece. Ressalta-se o potencial do ensino do teatro para estimular a contestação de padrões de comportamentos tradicionalmente associados às subjetividades dos corpos desejantes. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Geraldo Salvador. A peça didática e o ensino do teatro. In: TAVARES, Renan (org.): Entre coxias e recreios: recortes da produção carioca sobre o ensino do teatro. Rio de Janeiro: Yendis, 2006. DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do espectador. São Paulo: Hucitec, 2003. FOUCAULT. Michel. Ética, sexualidade, política. Trad. Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado. Rio de Janeiro: Forense Universitária Ltda., 2004. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 30 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004. LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1999.. Teoria Queer uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas, v. 9, n.2 Florianópolis, 2001. SPOLIN, Viola. Jogos teatrais: o fichário de Viola Spolin. Trad. Ingrid Dormien Koudela. São Paulo: Perspectiva, 2001. UBERSFELD, Anne. Para Ler o Teatro. Trad. José Simões (coord.). São Paulo: Perspectiva, 2005. 71