Aplicações clínicas: Perspectiva desenvolvimental sobre as perturbações do choro da primeira infância (concepção e intervenção)



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Psicopatologia Cogntivo-Desenvolvimental 2004/05 Aplicações clínicas: Perspectiva desenvolvimental sobre as perturbações do choro da primeira infância (concepção e intervenção) Trabalho elaborado por: Ana Pinto Fidjy Rodrigues Joana Neto Joana Simões Marta Martins Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação Universidade de Coimbra

O choro excessivo O choro é a forma de comunicação mais importante do recém-nascido. Nenhum outro sinal tem junto dos pais um efeito tão poderoso (Brazelton, 2003). Sabe-se que todas as crianças choram e que os seus pais desesperam. Mas a partir de que ponto é que se pode dizer que o choro de um bebé é excessivo? O texto sugerido lança boas pistas para encontrar uma resposta para a nossa pergunta. Esta questão parece-nos fundamental quer enquanto profissionais quer como futuras mães. O problema da infância caracterizado por choro excessivo é denominado Síndrome da Cólica que é, em síntese, um choro persistente. Em termos taxonómicos ele insere-se no nível/categoria de ataque de choro (cry bout) que é caracterizado pela ocorrência de muitos eventos de choro (cry events) que podem durar largos minutos, existindo pausas de breves instantes entre esses eventos de choro. Ao choro excessivo, nos primeiros três meses de vida do bebé, chama-se cólica, sendo que esta se deverá a uma dor no abdómen que encontra a sua manifestação mais visível no choro choro como sintoma. Esta síndrome da cólica refere-se a um comportamento de choro distinto, quer as suas causas sejam orgânicas, processos patológicos ou doença. A síndrome da cólica tem características que dependem da idade exacta do bebé e apresenta padrões diversos. Caracteriza-se pela existência de ataques de choro que aumentam ao fim da tarde e início da noite. O choro aumenta às duas semanas, atinge um pico ao segundo mês e estabiliza ao quarto mês. Este tipo de choro resiste às tentativas por parte dos pais para acalmar o bebé e resiste mesmo após os momentos de alimentação. É acompanhado por feições e posturas específicas (arquear as costas, cerrar os punhos, por exemplo). Como refere Brazelton (2003), se o bebé não estiver satisfeito, irá demonstrá-lo com clareza. O corpo fica rígido, vira a cara e começa a chorar. Os bebés dão-nos pistas muito claras, só temos de estar atentos.

As características mais vincadas deste tipo de choro parecem ser a sua espontaneidade e imprevisibilidade. Tem início e fim súbitos, não estando relacionado com qualquer acontecimento do ambiente. Para Wessel (1954), a síndrome da cólica existe quando o bebé chora mais de três horas por dia, mais do que três dias por semana e mais de três semanas. O choro do bebé sofre alterações a partir do terceiro mês. Alterações estas que são devidas ao próprio desenvolvimento da criança. O nível do choro é reduzido e a sua forma e função também mudam. O choro torna-se sensível ao ambiente em que ocorrem (casa, rua, etc.). A criança começa a manifestar mais agitação quando está sozinha e o choro torna-se coordenado com estímulos visuais e gestuais. Clinicamente, relaciona-se o choro excessivo após o terceiro mês com a síndrome de angústia persistente mãe-bebé. Existe o temperamento difícil do bebé e a perturbação na sua regulação. A síndrome da angústia persistente mãe-bebé tem a ver com perturbações do choro ou da alimentação e com suaves atrasos desenvolvimentais. Em relação aos factores familiares que contribuem para este síndrome temos a angústia pré-natal, o elevado nível de psicopatologia maternal e conflitos parentais após o nascimento. Os pais destas crianças mostram-se menos capazes para interacções apropriadas, assim como as próprias crianças estão menos dispostas a interagir. Nalguns casos, esta síndrome pode ocorrer independentemente da síndrome da cólica precoce. Quanto ao temperamento difícil do bebé, este diz respeito às características individuais do comportamento que têm origem biológica, que surgem nos primeiros tempos de vida e que se tornam estáveis ao longo do tempo e das situações. Este temperamento difícil diz respeito a uma predisposição afectiva negativa, a uma fraca adaptabilidade, grande intensidade nas reacções aos estímulos e imprevisibilidade. Por isto, facilmente se compreende que o choro seja uma (natural) manifestação do temperamento difícil. Empiricamente, verificou-se que bebés com síndrome da cólica ou com síndrome de angústia persistente mãe-bebé têm temperamento difícil. A perturbação de regulação nas crianças é pautada pela agitação, irritabilidade, dificuldade em se acalmarem a si próprias, intolerância à mudança e dificuldades

manifestas no domínio da regulação dos afectos, alimentação, sono, actividade motora e atenção. A perturbação deste controlo regulatório, quer físico quer comportamental, é atípico e mal-adaptativo. Enquanto as dificuldades de temperamento nos bebés são uma variação normal de desenvolvimento, a perturbação da regulação é por sua vez uma classificação clínica. A síndrome da cólica, no que diz respeito à sua natureza etiológica, é multideterminada. Estão em jogo, não só factores do temperamento do bebé mas também existem causas ambientais às quais o bebé está sujeito nos primeiros meses de vida. Ao contrário do que se esperaria, as causas orgânicas deste problema são em número reduzido (apenas 5%). Esta causa está relacionada com manifestações de choro que atingem um pico elevado acompanhado de acentuadas manifestações comportamentais que se organizam através de uma série de sintomas e sinais. Depois do sexto mês a probabilidade desta causa orgânica aumenta. O choro tardio ao terceiro mês tem grandes probabilidades de se dever à intolerância às proteínas do leite de vaca, afinal é nesta altura que a criança deixa de ser amamentada. Contudo, antes do terceiro mês o choro excessivo pode indicar problemas nas condições desenvolvimentais a que o bebé está sujeito. Os estudos mostram uma fraca correlação entre a existência da síndrome da cólica e as características de personalidade da mãe, apesar de se acreditar que a mãe influencia alguns dos comportamentos de choro do bebé. A síndrome da cólica pode ocorrer independentemente de um bom cuidado materno, no entanto factores como a estimulação excessiva, uma vida stressante e grande emocionalidade, parecem ter algum peso no aparecimento do choro excessivo tardio. Se as características comportamentais da síndrome da cólica são semelhantes à do desenvolvimento normal, então esta síndrome é compreendida mais facilmente em termos de normalidade do que em termos de processos psicopatológicos de desenvolvimento. Nesta perspectiva desenvolvimental, é mais apropriado conceptualizar as crianças com cólica pelo que elas fazem do que pelo que, efectivamente, têm.

Bibliografia: - Achenbach, T. M. (2000). Assessment of Psychopathology. In A. Sameroff, M. Lewis & S. Miller. Handbook of developmental Psychopathology (pp. 327-345). New York: Kluwer Academic/Plenum Publishers. - Brazelton, T. B. & Sparrow J. D. (2003). O método Brazelton: A criança e o choro. Lisboa: Editorial Presença.