Estudo da morbimortalidade em pacientes com trauma hepático

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Transcrição:

ARtIgO ORIgINAL Estudo da morbimortalidade em pacientes com trauma hepático Olival Cirilo Lucena da Fonseca Neto, Rogério Ehrhardt e Antonio Lopes de Miranda RESUMO Introdução. O fígado é o órgão intra-abdominal mais comumente lesado em pacientes vítimas de trauma. A lesão ocorre mais frequentemente no trauma penetrante do que no trauma contuso. Objetivo. Avaliar a morbidade e a mortalidade por trauma hepático, seu manuseio e sua evolução em portadores dessa lesão. Método. Foram analisados os registros em prontuários de todos os pacientes que tiveram trauma hepático com indicação cirúrgica, admitidos no pronto-socorro do Hospital da Restauração, Recife- PE, no período de janeiro de 2003 a dezembro de 2007. Foram considerados os parâmetros epidemiológicos e anatômicos, a morbidade e a mortalidade. Resultados. Cento e trinta e sete pacientes participaram do estudo. Desses, 124 foram do sexo masculino (90,5%). A maioria (56,2%) encontrava-se na faixa etária de 20 a 29 anos. O trauma abdominal fechado foi o mais comum (67,9%). Dos traumas penetrantes, os originados por arma de fogo foram em maior número (24,8%). Cento e três pacientes apresentaram apenas um segmento lesado (75,2%) e 34 (24,8%) tiveram dois segmentos lesados. As lesões de grau II foram as mais comuns (66,4%). Dos 137 pacientes submetidos a laparotomia, em 89 a intervenção foi não terapêutica e, em 48, foram necessários reparos das lesões associadas. O baço e o diafragma foram as estruturas lesadas com maior frequência, 30% e 26% respectivamente. O índice de gravidade da lesão ou injury severity score variou de 8 a 72. Oito pacientes tiveram valores do índice superiores a 50 e, cinco deles, tiveram óbito. Fístula Olival Cirilo Lucena da Fonseca Neto médico, consultor em cirurgia de emergência e do trauma, Hospital da Restauração, Recife-PE, Brasil Rogério Ehrhardt médico-residente de cirurgia geral e do trauma, Hospital da Restauração, Recife-PE, Brasil Antonio Lopes de Miranda médico, chefe do Serviço de Cirurgia Geral, Hospital da Restauração, Recife-PE, Brasil Correspondência: Olival Cirilo Lucena Fonseca Neto. Rua Jacobina, n.º 45, ap. 1.002, Graças, CEP 52.011-180, Recife-PE. Telefone: 81 9989-0208. Internet: olivalneto@globo.com Recebido em 6-5-2012. Aceito em 20-6-2012. Os autores declaram não haver potencial conflito de interesses. biliar e abscesso hepático foram as principais complicações. Ocorreram sete óbitos no estudo. Conclusão. Os pacientes com trauma hepático e lesões orgânicas concomitantes e naqueles com índice de gravidade da lesão acima de 50 observou-se maior probabilidade de complicações e óbito. Palavras-chave. Fígado; trauma hepático; tratamento; complicações. Brasília Med 2012;49(2):87-92 87

Artigo original ABSTRACT Morbimortality in patients with hepatic trauma Introduction. The liver is the most commonly injured intra-abdominal organ in trauma patients. The injury is caused more frequently in penetrating trauma than in blunt trauma. Objective. To evaluate morbidity and mortality in hepatic trauma, its management and evolution in patients with this injury. Method. The medical records of all hepatic trauma patients with a recommendation for surgery admitted to the emergency unit of Hospital da Restauração, Recife, Brazil, from January 2003 to December 2007 were analyzed retrospectively. Epidemiological and anatomical parameters, morbidity and mortality were considered. Results. One hundred and thirty-seven patients were considered in the study. Of these, 124 were male (90.5%). The majority (56.2%) was in the age range of 20 to 29 years. Closed abdominal trauma was the most common condition (67.9%). Of the penetrating traumas, those caused by firearms were the greatest in number (24.8%). One hundred and three patients displayed only one impaired segment (75.2%) and 34 (24.8%) displayed two impaired segments. Grade II injuries were the most common (66.4%). Of the 137 patients that underwent laparotomy, 89 underwent a non-therapeutic intervention, whereas 48 patients required repair of associated injuries. The spleen and diaphragm were the structures most commonly injured, 30% and 26% respectively. The Injury Severity Score varied from 8 to 72. Eight patients had Injury Severity Score higher than 50, and five evolved to death. Biliary fistula and hepatic abscess were the main complications. Seven deaths occurred in the study. Conclusion. The greatest probability of complications and death were observed in patients with hepatic trauma and concomitant organ injuries and in those with Injury Severity Score higher than 50. Key words. Liver; hepatic trauma; treatment; complications INtRODUÇÃO O fígado é um dos órgãos intra-abdominais mais acometidos no trauma por seu tamanho e sua localização. Lesões nesse órgão ocorrem em 20% das vítimas de trauma contuso. 1-3 Nesses casos, elas podem ser decorrentes do impacto direto, da compressão entre o rebordo costal direito e a coluna vertebral e da força de desaceleração. A lesão isolada do fígado ocorre em somente 10% dos indivíduos que sofreram o trauma, ou seja, na maioria das situações há lesões de outros órgãos e outras vísceras. 4-6 Nas últimas décadas, houve relevante mudança na conduta correlata ao trauma hepático, principalmente quanto ao trauma contuso. 7 Isto se deve ao auxílio de exames de imagem e o surgimento do tratamento não operatório. 8 Atualmente, o tratamento conservador é utilizado em mais de 80% dos traumas hepáticos contusos, sendo considerado procedimento seguro e eficaz. 9 A falha nesse tipo de conduta costuma ser causada por lesões abdominais associadas. 10 O tratamento conservador do trauma hepático fechado oferece vantagens em relação ao operatório, como menos necessidade de transfusão sanguínea, de cuidados intensivos e menor ocorrência de sepse intra-abdominal e menor taxa de mortalidade. 11,12 Nos traumatismos penetrantes, também se tem verificado tendência à aplicação de técnicas mais conservadoras, fato este observado principalmente nos últimos trinta anos. 13 O resultado na melhora da avaliação da extensão das lesões no trauma hepático e o uso de melhores técnicas de tratamento cirúrgico, especialmente com os novos conceitos de controle de danos e evolução nos métodos intensivos de tratamento, possibilitou evidente progresso na sobrevida das vítimas de trauma hepático. 14,15 Apesar dos avanços conseguidos, a lesão complexa com lesões de vasos supra ou retro-hepáticos permanece um desafio terapêutico, com elevadas taxas de morbidade e mortalidade. 16,17 Hoje, as opções para o manejo dessas lesões incluem, a saber, a manobra de Pringle, a hepatotomia com sutura direta, 88 Brasília Med 2012;49(2):87-92

Olival Cirilo Lucena da Fonseca e cols. Trauma hepático a segmentectomia ou hepatectomia, a instalação de desvios átrio-cava ou femoroaxilar, a exclusão vascular do fígado e o transplante hepático. Todas essas modalidades de tratamento são associadas a taxas de mortalidade superiores a 90%. 18-20 As lesões hepáticas podem ser classificadas quanto à gravidade das lesões em dois grupos: pré-operatoriamente por métodos de imagem (tomografia computadorizada), ou operatoriamente por avaliação anatomopatológica, ambas sob os auspícios da American Association for the Surgery of Trauma (AAST), que elaborou de maneira organizada e racional com o intuito de uniformizar a comunicação entre os estudiosos de trauma e conseguir comparar os vários resultados de maneira homogênea. 21,22 Este estudo objetiva analisar o tratamento de pacientes vítimas de trauma hepático e suas complicações em um hospital público do Nordeste do Brasil. MÉtODO Foram analisados os registros em prontuários de todos os pacientes vítimas de traumatismo hepático com indicação cirúrgica admitidos na emergência do Hospital da Restauração SUS, Recife-PE, no período de janeiro de 2003 a dezembro de 2007. Consideraram-se dados de análise: sexo, faixa etária, índice anatômico (índice de gravidade da lesão ou injury severity score ISS), 1 tipo de trauma abdominal (aberto ou fechado), instrumento causador dos traumas abertos (por exemplo, arma branca ou de fogo), gravidade das lesões anatômicas hepáticas (Organ Injury Scaling, da Associação Americana de Cirurgia do Trauma), 2 segmentos hepáticos acometidos, lesões associadas, procedimento cirúrgico realizado (laparotomia não terapêutica e laparotomia terapêutica), reoperações, complicações, tempo de permanência hospitalar em dias e mortalidade. O índice de gravidade da lesão é um indicador anatômico que caracteriza a seriedade da lesão dentro de regiões anatômicas, individual ou coletivamente. Esse índice resume várias lesões em um único paciente. Os valores variam de 1 (lesão menor com maior probabilidade de sobrevida) até 75 (lesão maior com menor probabilidade de sobrevida). Esse índice é calculado pela soma dos quadrantes das três graduações mais elevadas (varia de 1 a 6) em diferentes regiões corporais. Por convenção, quando maior que 15 denota gravidade suficiente para indicar cuidados intensivos ao traumatizado. As variáveis contínuas foram descritas como média ± desvio-padrão e as variáveis categóricas, como número absoluto e percentual. Os cálculos foram efetuados por meio de programas estatísticos SPSS e Microsoft Office Excel. RESULtADOS Durante o período de janeiro de 2003 a dezembro de 2007, foram admitidos 3.476 pacientes vítimas de trauma no Hospital da Restauração. Desses, 137 foram vítimas de traumatismo hepático com indicação de laparotomia exploratória. A maioria dos portadores de trauma hepático foi do sexo masculino (124; 90,5%), em razão aproximada de dez homens para uma mulher. A média de idade foi 39 ± 11 anos e, os extremos, 15 e 55 anos. Prevaleceram adultos jovens de 20 a 49 anos, em plena idade produtiva, com média de idade 27,3 anos. Dezessete (12,4%) pacientes apresentaram idade inferior a 20 anos, 77 (56,2%) tinham idade que variou de 20 a 29 anos, 33 (24,1%), de 30 a 39 anos, 7 (5,1%), de 40 a 49 anos e 3 (2,2%) tinham idade superior a 50 anos. O índice de gravidade da lesão dos pacientes variou de 8 a 72, sendo a média e desvio-padrão 26 ± 8. Quanto ao tipo de trauma abdominal, 93 foram vítimas de trauma abdominal fechado (67,9%) e 44 de trauma abdominal aberto (32,1%). Desses últimos, dez foram vítimas de trauma abdominal provocado por arma branca (7,3%) e 34, por arma de fogo (24,8%). Cento e três pacientes sofreram lesão em apenas um segmento hepático (75,2%); 34 tiveram dois Brasília Med 2012;49(2):87-92 89

Artigo original segmentos lesados (24,8%). Um paciente teve o segmento hepático I envolvido na lesão (0,7%); 15, o segmento II (10,9%); 20, o segmento III (14,6%); 57, o segmento IV (41,6%); 35, o segmento V (25,5%); 17, o segmento VI (12,4%); 15, o segmento VII (10,9%) e 11, o segmento VIII (8%). Considerando-se o grau de lesão hepática, 90 pacientes apresentaram lesões de grau II (66,4%); 38, lesão de grau III (27,7%); sete com lesão de grau IV (5,1%), e apenas dois com lesão de grau V (1,5%). Quanto ao procedimento cirúrgico adotado, 89 doentes foram submetidos à laparotomia não terapêutica (65%) e 48, à laparotomia terapêutica (35%). Dentre os últimos, 22 foram submetidos a tamponamento hepático (45,8%), 23, a hepatorrafia (47,9%), dois, a hepatorrafia e tamponamento (4,2%) e um foi submetido à hepatectomia esquerda. Ainda em relação ao tratamento empregado, 29 pacientes necessitaram de tratamento cirúrgico complementar, em dois casos por falha da laparotomia não terapêutica (2,2%); todos os que foram tratados com tamponamento hepático por compressas foram submetidos à retirada cirúrgica posterior (22 casos); um foi submetido a reoperação para retirada de compressa depois de ter sido tratado por hepatorrafia associada a tamponamento e, quatro, necessitaram de reoperação depois de terem sido tratados inicialmente com hepatorrafia e corresponderam a 14,8% dos pacientes tratados com essa modalidade. Houve cinquenta e três pacientes com lesões associadas (38,7%), trinta e cinco tiveram apenas uma lesão associada (25,5%) e dezoito, duas lesões associadas (13,2%). As lesões comprometeram o diafragma (sete casos), o intestino delgado (seis casos), o cólon (cinco casos), o baço e o rim direito (quatro casos cada), o duodeno, mesentério e pâncreas (dois casos cada) e, em apenas um paciente, o estômago e o encéfalo. Quando se avaliaram os que tiveram lesões associadas em mais de dois órgãos, foram identificados os seguintes: baço (seis casos), mesentério (quatro casos), pâncreas (quatro casos), cólon, intestino delgado e rim direito (três casos cada), aorta, bexiga, veia cava inferior e arcos costais, em apenas um paciente cada. Dentre os pacientes que sofreram complicações, cinco haviam sido submetidos a laparotomia não terapêutica (5,6% do grupo da laparotomia não terapêutica). Desses, três pacientes cursaram com formação de abscesso hepático, um com fístula biliar e outro, pancreatite. Complicações pós-operatórias ocorreram em doze pacientes, ou seja, em 25% daqueles submetidos a laparotomia terapêutica. As complicações foram: fístula biliar (três casos), pancreatite (dois), abscesso hepático (dois), abscesso cavitário (dois); encarceramento pulmonar, distúrbio de coagulação e sepse (um caso cada). O período de permanência hospitalar necessário para os pacientes vitimados por trauma hepático oscilou de dois a 38 dias, com a média de 6,8 ± 5,5 dias. O óbito ocorreu em sete pacientes, todos foram submetidos a laparotomia terapêutica e corresponderam a 5,1% do total das vítimas com trauma hepático e a 14,6% do grupo da laparotomia terapêutica. Os enfermos que foram a óbito tinham índice de gravidade da lesão acima de 50. DISCUSSÃO O fígado, por ser o maior órgão parenquimatoso do abdome e estar protegido apenas pelo gradeado costal à direita, é suscetível aos traumas contusos e penetrantes da cavidade peritoneal. Com o desenvolvimento e o aperfeiçoamento dos exames de imagem existe a possibilidade de identificar lesões mínimas que, no passado, não eram percebidas. Com isso, o fígado é o órgão mais lesado nos pacientes traumatizados. Com base nos dados obtidos de registros de 137 pacientes vítimas de traumatismo hepático no presente estudo, observa-se maior frequência do trauma em adultos jovens do sexo masculino, como se verifica em outros estudos. 21 A maioria dos pacientes apresentou trauma hepático contuso, numa razão aproximada de 3:1 em 90 Brasília Med 2012;49(2):87-92

Olival Cirilo Lucena da Fonseca e cols. Trauma hepático relação aos traumatismos abdominais abertos, tanto por arma de fogo, quanto por arma branca. Como em outros estudos, o trauma abdominal contuso é o principal tipo de trauma nas grandes cidades, 5 e acidentes por veículos automotivos e motocicletas são os grandes responsáveis pelos atendimentos aos pacientes vítimas de trauma. 2 O índice de gravidade da lesão tem alta capacidade de prever sobrevida ou morte. 23 Dos oito pacientes com índice acima de 50, cinco tiveram óbito. Embora esse índice seja preditivo de mortalidade, ocorrem algumas restrições em sua interpretação como o fato de não levar em consideração a idade, o mecanismo da lesão, a multiplicidade de lesões locais e a importância da região do corpo em que ocorre a lesão. 24 No presente estudo, observou-se que 75,2% dos pacientes tiveram apenas um segmento hepático envolvido, sendo os segmentos IV e V os mais afetados. Isso era esperado, considerando-se a dimensão e a localização mais exposta desses segmentos. Outros estudos também trazem maior envolvimento desses segmentos no trauma hepático. 25,26 Houve vários pacientes com lesões associadas de outros órgãos (38,7%), sendo 25,5% com apenas um outro órgão lesado; 13,1% tiveram dois outros órgãos atingidos pelo trauma. A associação de outros órgãos lesados também foi observada por outros autores, 5 principalmente quando o trauma contuso é mais frequente. Diferente da literatura atual, os autores mostraram haver mais indicação de laparotomia nos pacientes vítimas de trauma abdominal. 27 Isso ocorre devido à ausência pronta e imediata da possibilidade de métodos complementares de imagem (ultrassonografia e tomografia computadorizada de abdome) que ajudariam a possível conduta conservadora (não cirúrgica) de muitos pacientes. Entretanto, ao observar os doentes submetidos a laparotomia não terapêutica, os autores não encontraram desfecho letal. Isso permite inferir que a laparotomia não terapêutica não causou aumento de mortalidade. As complicações mais encontradas no presente estudo foram, a saber, abscesso hepático, fístula biliar, abscesso cavitário e pancreatite. Elas foram mais frequentes nos pacientes com trauma abdominal submetidos a laparotomia terapêutica, em relação àqueles submetidos à laparotomia não terapêutica. Mesmo assim, a ocorrência de complicações foi aceitável (12,4%) e próxima aos resultados obtidos em séries de casos mais amplos que variou de 8% a 10%. 28,29 Observou-se taxa de mortalidade de 5,1%, e todos os óbitos ocorreram naqueles que tiveram tratamento cirúrgico (14,6%). Essa taxa foi comparável às obtidas em grandes centros de tratamento do trauma que oscilou de 5% a 9%. 10,12 Em conclusão, nos pacientes vítimas de trauma hepático com indicação cirúrgica, a morbimortalidade foi mais acentuada quando ocorreram intervenções reparadoras nos órgãos com lesões associadas e o índice de gravidade da lesão foi maior que cinquenta. REFERÊNCIAS 1. Petrowsky H, Raeder S, Zuercher L, Platz A, Simmen H, Puhan M et al. A quarter century experience in liver trauma: a plea for early computed tomography and conservative management for all hemodynamically stable patients. World J Surg. 2012;36(2):247-54. 2. Christmas AB, Wilson AK, Manning B, Franklin GA, Miller FB, Richardson JD et al. Selective management of blunt hepatic injuries including nonoperative management is a safe and effective strategy. Surgery. 2005;138(4):606-10. 3. Yang JC, Sharp SW, Ostlie DJ, Holcomb GW 3rd, St Peter SD. Natural history of nonoperative management for grade 4 and 5 liver and spleen injuries in children. J Pediatr Surg. 2008;43(12):2264-7. 4. Zantut LFC, Machado MAC, Volpe P, Lima MJR, Poggetti RS, Birolini D. Tratamento conservador de trauma hepático grave: relato de caso e revisão de métodos terapêuticos. Rev Hosp Clin Fac Med São Paulo 1993;48(5):235-41. 5. Chmatal P, Kupka P, Fuksa Z, Belina F, Hasek R, Voldrich M. Liver trauma usually means management of multiple injuries: analysis of 78 patients. Int Surg. 2008;93(2):72-7. 6. Tiberio GA, Portolani N, Coniglio A, Piardi T, Dester SE, Cerea K et al. Evaluation of the healing time of non-operatively managed liver injuries. Hepatogastroenterology. 2008;55(84):1010-2. 7. Silvio-Estaba L, Madrazo-González Z, Ramos-Rubio E. Current treatment of hepatic trauma. Cir Esp. 2008;83(5):227-34. 8. Carrafiello G, Lagana D, Dizonno M, Cotta E, Ianniello A, Fugazzola C. Emergency percutaneous treatment in iatrogenic hepatic arterial injuries. Emerg Radiol. 2008;15(4):249-54. 9. Létoublon C, Arvieux C. Nonoperative management of blunt hepatic trauma. Minerva Anestesiol. 2002;68(4)132-7. Brasília Med 2012;49(2):87-92 91

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