SURDOS VESTIBULANDOS: CONDIÇÕES DE ACESSO À UNIVERSIDADE Giselly dos Santos Peregrino (PUC-Rio, INES) gisellyperegrino@globo.com



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Transcrição:

SURDOS VESTIBULANDOS: CONDIÇÕES DE ACESSO À UNIVERSIDADE Giselly dos Santos Peregrino (PUC-Rio, INES) gisellyperegrino@globo.com O objetivo precípuo deste trabalho é compreender o acesso dos surdos ao Ensino Superior. Sabemos que poucos são os que concluem o Ensino Médio e menos ainda os que ingressam na universidade. Dos que realizam o vestibular, poucos efetivamente são aprovados. Quais as principais dificuldades desses sujeitos no percurso que deveria resultar no ingresso no Ensino Superior? Quais os possíveis obstáculos com que se deparariam em um pré-vestibular convencional? E quais os problemas enfrentados por eles em um prévestibular destinado a surdos? Nosso objetivo não é discutir se o vestibular é um acesso justo ou não ao Ensino Superior. Há grande concorrência, semestral ou anualmente, em torno dos cursos de graduação e, comumente, é a- provado aquele que se preparou bem para enfrentar essa disputa que reúne jovens e adultos na expectativa de ingressar na universidade. Inúmeros são os que ficam pelo caminho desistindo de tentar fazer parte dessa concorrência. Todavia, há quem desiste por ver nessa corrida feroz ao Ensino Superior a impossibilidade de ser aprovado por ter uma diferença que o marca enquanto sujeito. O professor do Departamento de Educação da PUC-Rio Marcelo Andrade reflete sobre essa diferença geradora de exclusão: Aqueles que são vistos como diferentes acabam excluídos porque possuem uma marca identitária considerada socialmente como algo inferior, seja esta marca o sexo, o gênero, a cor da pele, a etnia, a orientação sexual, a idade, as capacidades físicas e mentais. Essa marca identitária também é chamada de diferença, ou seja, é o que faz determinado indivíduo ou grupo diferir do padrão socialmente esperado. (ANDRADE, 2009, p. 24). É sabido que existem pessoas portadoras de necessidades e- ducacionais especiais, sejam elas deficientes físicas, mentais, visuais, entre outras. Todas elas carregam consigo a marca dessa diferença. Existe, entretanto, a surdez, marcada pela invisibilidade geralmente, por tratar-se de uma diferença linguística. Ela tem escapado do status

1639 de deficiência, fugindo do campo da Educação Especial e aproximando-se da área de Estudos Culturais e engendrando, inclusive, um novo campo de pesquisa: os Estudos Surdos em Educação (SKLIAR, 2010). Apesar desse avanço para a educação de surdos, ela vem caminhando a passos lentos, consequentemente gerando a exclusão de muitos surdos do processo educacional. Poucos são aqueles que concluem o Ensino Médio e raríssimos os que adentram o Ensino Superior. Sobre a permanência neste, pode-se dizer que ainda é insuficiente, pois dos poucos que chegam à universidade, menos ainda são os que obtêm êxito nela, devido aos inúmeros desafios lançados, cotidianamente, aos surdos, entre eles: a escassa presença de tradutores/intérpretes de língua de sinais (TILS), o que impossibilita ou dificulta bastante o acesso do surdo às informações veiculadas em sala de aula. Por conseguinte, também haverá dificuldade na construção do conhecimento, principalmente se levarmos em consideração a quantidade significativa de textos que os graduandos precisam ler semanalmente, textos esses disponibilizados, em sua maioria, em língua portuguesa segunda língua de grande parte dos surdos utentes de língua de sinais. As dificuldades desses sujeitos no percurso que deveria resultar no ingresso no Ensino Superior são inúmeras há muito tempo. A precária educação que, frequentemente, recebem/receberam gera mais obstáculos ainda, por não poderem competir em igualdade com os demais vestibulandos, o que é, sem dúvida, um fator de exclusão. Segundo Skliar: Foram mais de cem anos de práticas de tentativa de correção, normalização e de violência institucional; instituições especiais que foram reguladas tanto pela caridade e pela beneficência, quanto pela cultura social vigente que requeria uma capacidade para controlar, separar e negar a existência da comunidade surda, da língua de sinais, das identidades surdas e das experiências visuais, que determinam o conjunto de diferenças dos surdos em relação a qualquer outro grupo de sujeitos. (SKLIAR, 2010, p. 7) Por todo esse processo, não é difícil concluir que a educação formal de muitos surdos foi problemática por fatores que extrapolam a responsabilidade de cada um deles. É claro que existem surdos no

1640 Ensino Superior, no Mestrado e no Doutorado, inclusive existem os que já concluíram essas etapas; porém, infelizmente, são uma minoria que obteve êxito na escolarização. Uma minoria que lutou e venceu, apesar de todos os fatores desfavoráveis. Apesar disso, não se deve culpar os que ainda estão pelo caminho. É preciso questionar o porquê de permanecerem estáticos na caminhada, o porquê de terem desistido de ir em frente, o porquê de estarem perdendo forças nessa disputa. É possível prever algumas respostas, mormente no que tange ao motivo de terem desistido: muitos alegam que, dificilmente, conseguirão um emprego condizente com a formação superior; outros dizem que não conseguirão concorrer a vagas com não-surdos que, em número expressivo, frequentaram um pré-vestibular e boas escolas; outros ainda afirmam que, mesmo com vagas reservadas em algumas universidades, eles são minoria dentro do grupo dos ditos portadores de necessidades especiais. Não nos cabe julgar tais argumentos, mas refletir acerca do que conduz a eles. Em um pré-vestibular convencional, destinado a não surdos, os surdos deparam-se com alguns obstáculos como: o despreparo de professores que não tiveram uma formação que levasse em conta a pluralidade de culturas dentro de uma sala de aula, o que ocasiona, para os surdos, não só problemas comunicativos, mas culturais, já que fazem parte de uma comunidade que tem cultura própria; a escassez de TILS, o que dificulta, quiçá impeça, a compreensão das aulas ministradas, uma vez que pouca notícia se tem de prévestibulares os quais contem com TILS. Por outro lado, em um pré-vestibular destinado a eles, como é o caso do existente no Instituto Nacional de Educação de Surdos (I- NES), localizado em Laranjeiras, na cidade do Rio de Janeiro, os surdos não se deparam com tais problemas: a maioria de seus professores tem conhecimento a respeito da surdez e fluência na Língua brasileira de sinais (libras); o TILS faz-se presente constantemente; e os colegas de classe são todos surdos, com histórias de vida, dificuldades e aspirações semelhantes. Não obstante tais fatores favoráveis, os vestibulandos se deparam com alguns obstáculos, dentre eles, a língua portuguesa.

1641 No contexto do bilinguismo para surdos, a primeira língua desses sujeitos é a língua de sinais e a segunda língua, o português na modalidade escrita. Em consonância com Goldfeld: O bilinguismo tem como pressuposto básico que o surdo deve ser bilíngue, ou seja, deve adquirir como língua materna a língua de sinais, que é considerada a língua natural dos surdos e, como segunda língua, a língua oficial de seu país. (GOLDFELD, 2002, p. 42) A dificuldade com a língua portuguesa não se dá no ato de falar, pois, na verdade, poucos são os surdos oralizados, ou seja, que aprenderam, sistematicamente, a falar 1. A dificuldade está centrada na escrita e leitura, exatamente na modalidade em que deveriam obter êxito no contexto bilíngue. O centro da questão reside no fato de que foram excluídos, ao longo dos anos de escolarização, como já foi dito, do processo de ensino-aprendizagem em que tivessem contato eficiente com a experiência da leitura e escrita. A escola a que tiveram acesso, raramente, lhes propiciou um ensino de português com técnicas de ensino de segunda língua. Contudo, isso por si só não resolveria a problemática questão. No bilinguismo, a criança tem a língua de sinais como primeira língua, conforme foi explicado, e o português como segunda língua, porém, essa criança, comumente, é filha de pais não surdos que não sabem libras, não conhecem surdos, não sabem como comunicar-se com seu filho, entre outros problemas. De acordo com Quadros: Esse é um grande obstáculo para o desenvolvimento psicossocial da criança surda e para o ensino eficiente da língua portuguesa, pois a criança nem sequer nasce em um ambiente que favoreça o desenvolvimento de sua primeira língua, no caso do Brasil, a libras. (QUADROS, 1997, p. 29). Voltando ao caso do vestibular, existem problemas que precisam ser examinados: haverá TILS no momento de aplicação das provas? Haverá avaliadores que conheçam as particularidades da escrita de um surdo e que as levem em consideração no momento de avali- 1 Diz-se sistematicamente, porque a língua oral não é aprendida naturalmente pelo surdo. Por outro lado, a língua de sinais é natural, adquirida de forma espontânea pela pessoa surda em contato com outras que utilizam essa língua. A proposta bilíngue busca captar o direito do surdo de ser ensinado na língua de sinais.

1642 ar? É sabido que se trata de questões polêmicas e, apesar de serem exigências legais, pouco tem sido feito: Infelizmente, as Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes) não avançaram nas adaptações de seus vestibulares às necessidades do candidato surdo. Com exceção de algumas universidades federais que aceitaram o desafio da inclusão e o fizeram de forma gradativa, e de outras que foram obrigadas a adotar processos de vestibulares diferenciados por força judicial, poucas apresentam hoje um modelo adequado para aplicação e correção de provas discursivas e de língua portuguesa nesses casos específicos. (SOUSA & VIEIRA, 2010, s/p) No Jornal O Globo, de 26 de abril de 2010, Leonardo Cazes escreveu uma matéria intitulada Direito desrespeitado: estudantes surdos dizem que não foram auxiliados por intérpretes durante a prova do ENEM de 2009. Nela, há o relato de candidatos surdos alegando que o intérprete, no momento da prova, agiu tão-só como fiscal, não os auxiliando, mesmo a pedidos. No Jornal A Tarde on-line, de 09 de agosto de 2007, é dito que a Universidade Federal da Bahia (UFBA) implementaria correção diferenciada para candidatos surdos no vestibular por determinação judicial. Entre 2005 e 2007, cinco surdos inscreveram-se no concurso e nenhum foi aprovado. No vestibular, além da obrigatória presença do TILS, é indispensável que o examinador, mormente o que irá corrigir as redações, tenha consciência de que o texto escrito pelo surdo será diferente, de modo geral, do produzido pelo não surdo. Siqueira corrobora essa necessidade: [...] o professor/avaliador precisa ter a sensibilidade e o conhecimento de perceber se a informação contida no texto escrito pelo surdo está coerente e adequada ao tema, embora a estrutura frasal se afaste da norma padrão da Língua Portuguesa, utilizada pelo ouvinte. (SIQUEIRA, 2008, p. 32). Para isso, é necessário que haja capacitação dos que irão e- xaminar as provas dos vestibulandos de modo que estejam preparados para lidar com candidatos que não sejam usuários do português, mas da libras, que é reconhecida como meio legal de comunicação e expressão no Brasil, segundo a lei nº 10.436 de 24 de abril de 2002, regulamentada pelo decreto nº 5.626 de 22 de dezembro de 2005. Na

1643 mesma lei, é válido frisar, consta que a libras não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa. Ainda no que diz respeito à avaliação do surdo, Siqueira ratifica: [...] o sistema de avaliação do aluno surdo, desde a alfabetização até a faculdade, deve ser realizado de forma continuada em que o aluno possa expressar os seus conhecimentos a respeito de um estudo ou noção, observados pelo professor e mediadora a partir de atividades interativas, nas quais o conhecimento é construído na relação consigo, com os outros e com o objeto do conhecimento, através de formas diferenciadas de registros. (SIQUEIRA, 2006, p.32). É preciso evitar, todavia, que se acredite que o surdo jamais escreverá e lerá com proficiência. Com uma educação atenta às suas necessidades, um currículo pensado nas suas competências e habilidades, professores bilíngues (ou surdos) e a presença de TILS, desde a mais tenra idade, é possível vislumbrar alguma qualidade na sua formação escolar. Segundo Siqueira: [...] urge a adaptação curricular às necessidades desses alunos, quanto aos objetivos a serem atingidos, à metodologia, aos recursos de ensino, aos instrumentos de avaliação; enfim, a adequação da estrutura física e acadêmica que atenda àquelas necessidades específicas. (SIQUEIRA, 2008, p.33) Importante também é a presença de adultos surdos na escola, a fim de propiciar às crianças surdas o acesso à língua de sinais, promovendo, assim, o fundamento para um bilinguismo que dê certo. Não se trata, pois, de facilitar a vida do surdo, não lhe cobrando conhecimento, sobretudo de língua portuguesa. Stürmer questiona: [...] Como podemos pensar em uma educação de qualidade aos surdos se diminuímos e/ou facilitamos os conteúdos? Ao mesmo tempo em que cobramos do aluno surdo a competência na Língua Portuguesa e salientamos a sua importância, a prática docente não possibilita a efetivação da aprendizagem dessa língua. Além disso, se trabalharmos somente a partir do que os alunos conhecem, como possibilitar novas e significativas aprendizagens? (STÜRMER, 2009, p.92) Tais questionamentos revelam a necessidade de se pensar a educação dos surdos, não só quando estão prestes a concluir a Educação Básica, isto é, quando os poucos que chegam a essa etapa percebem obstáculos ao tentarem ingressar no Ensino Superior; é neces-

1644 sário refletir, desde a Educação Infantil passando pelos Ensinos Fundamental e Médio, sobre possibilidades de melhoria na qualidade da educação de forma a permitir-lhes o acesso à universidade sem que passem por tantas dificuldades. E, indubitavelmente, que cheguem a ela e dela saiam devidamente graduados.

1645 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, M. (Org.) A diferença que desafia a escola: a prática pedagógica e a perspectiva intercultural. Rio de Janeiro: Quartet, 2009. GOLDFELD, M. A criança surda: linguagem e cognição numa perspectiva sociointeracionista. 4. ed. São Paulo: Plexus, 2002. QUADROS, R. M. de. Educação de surdos: a aquisição da linguagem. Porto Alegre: Artmed, 1997. SANTANA, A. P. Surdez e linguagem: aspectos e implicações neurolinguísticas. São Paulo: Plexus, 2007. SIQUEIRA, J. R. V. Ensino Superior: acesso e permanência para os alunos surdos. In: Forum, vol. 17/18 (jan/dez). Rio de Janeiro: INES, 2008, pp.29-34.. Processo avaliativo do aluno surdo: avaliação educacional. Forum, v. 13 (jan/jun). Rio de Janeiro: INES, 2006, p.26-33. SKLIAR, C. (Org.). A Surdez: um olhar sobre as diferenças. 4. ed. Porto Alegre: Mediação, 2010. SOUSA, L. F.; VIEIRA, M. de L. O surdo e a educação superior: um breve manifesto. Boletim da UFMG, nº 1689, ano 36, 05 de abril de 2010. Disponível em: <http://www.ufmg.br/boletim/bol1689/2.shtml> Acesso em 19 jul 2010. STÜRMER, I. E. Avaliação na educação de surdos: o inquietante processo de ensino-aprendizagem do português como segunda língua. In: THOMA, A. da S.; KLEIN, M. (Orgs.) Currículo e Avaliação: a diferença surda na escola. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2009, p. 86-107.