14 Perspectivas Um cenário menos favorável Nelia Marquez, de Brasília Nos últimos oito anos, uma série de fatores internos e externos conspirou a favor da economia, permitindo que o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chegasse ao final de 2010 com crescimento econômico na faixa de 7% ao ano, percentual considerado extraordinário, com redução do nível de desemprego, ampliação das rendas do trabalho e domiciliar, e elevação do salário mínimo. Para os próximos quatro anos, porém, os elementos que jogaram a favor do governo Lula são apontados como limitadores para que a presidente Dilma Rousseff (PT) repita o mesmo desempenho, colocando em dúvida a capacidade de incrementar ou mesmo manter as conquistas sociais. A estimativa oficial do Ministério da Fazenda aponta para um avanço do Produto Interno Bruto (PIB), em 2011, entre 5% e 5,5%, expectativa que não é acompanhada por outros agentes. O Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (IBRE/FGV) estima que o crescimento não vá superar a média dos últimos anos entre 3,9% e 5,5%, com média ao redor de 4,3%. A consultoria Tendências trabalha com aumento de 3,9%. Já o economista Fernando Montero, da corretora Convenção, considera 4,3% um crescimento razoável. O Brasil precisa crescer menos para acomodar as pressões inflacionárias, afirma Montero. É saudável que tenhamos um PIB menor que o de 2010, afirma o consultor Felipe Ohana e economista pela Universidade de Brasília e Master of Philosophy pela George Washington University. Para ele, o país não comporta um aumento tão elevado quanto o do ano passado. O ideal, na opinião dele, seria que o governo mantivesse a meta em torno de 3% a 4% ao ano, o que permitiria uma elevação paulatina do nível de emprego e salário. A taxa de 7% é insustentável e gerou a desarrumação que vemos hoje, afirma, lembrando as pressões sobre a inflação.
Perspectivas 15 Efeito Foi o crescimento elevado que gerou aumento da renda e do emprego, aliado ao câmbio barato e abundante, carga tributária alta e safras agrícolas boas, que tornaram possível a comida barata e permitiram o salto espetacular dos gastos sociais nos oito anos do governo Lula. Um levantamento feito por Montero mostra que as despesas federais subiram R$ 284 bilhões, de 2003 a 2010, em relação ao governo anterior, já descontada a inflação. De acordo com o estudo, 78,4% desse salto ocorreu no segundo mandato. A puxada na carga tributária, combinada com o crescimento do PIB e a redução do superávit primário, deu à administração petista um poder enorme para gastar, observou. Agora, no entanto, a situação mudou. É difícil tudo dar certo de novo, aponta o economista Marcelo Neri, chefe do Centro de Políticas Sociais da FGV. A deterioração da inflação levou Dilma a determinar no início de fevereiro corte de R$ 50 bilhões na previsão de despesas do Orçamento da União neste ano. Se o governo não começasse a agir, a inflação poderia explodir, afirma Montero. A política econômica precisa desacelerar o ritmo da economia antes que a inflação o faça, completa Montero. Para ele, os gastos governamentais precisam ser contidos muito este ano, preferencialmente os de custeio da máquina pública. Até porque, em 2012, o reajuste real do salário mínimo provoca sozinho um aumento real de quase 2% no total das despesas federais, diz. Montero refere-se à política de reajuste do salário mínimo com base na variação da inflação do ano anterior, acrescida do aumento do PIB dos dois anos anteriores. Isso, em 2012, deverá representar uma correção de mais de 10%, considerando-se 7% de avanço da economia no ano passado. Outro fator desfavorável para que Dilma assegure as A política econômica precisa desacelerar o ritmo da economia antes que a inflação o faça. Fernando Montero conquistas sociais de seu antecessor e padrinho é a área de alimentação. Fernando Montero mostra que, mesmo com os ventos favoráveis à próxima safra brasileira, o processo de elevação dos preços das commodities iniciado em 2008 tornará a comida mais cara. Por sua vez, o câmbio no chão, que permitiu ao país ampliar as importações, começa a dar problemas por conta de um déficit externo elevado. Para completar o cenário mais restrito, a ampliação da carga tributária, que permitiu expandir os gastos sociais, parece PIB PIB per capita PIB por hora trabalhada Governo FHC e Lula Média das taxas de investimento trimestrais Horas trabalhadas totais Produtividade e total dos fatores Estoque de capital NUCI Estoque de capital em uso IPCA Carga tributária FHC 94-98 3,1 1,5 1,9 17,7 1,2 0,7 3,0 1,1 4,1 70,9 28,6 FHC 95-98 2,5 1,0 1,6 17,9 0,9 0,6 3,2 0,3 4,8 9,4 28,7 FHC 99-02 2,1 0,6-0,6 16,4 2,7-0,4 2,9-0,6 4,5 8,8 31,4 FHC 94-02 2,6 0,9 0,8 17,1 1,8 0,2 2,9 0,3 1,8 39,8 29,8 FHC 95-02 2,3 0,8 0,5 17,1 1,8 0,1 3,0-0,1 1,9 9,1 30,1 Lula 03-06 3,5 2,2 0,9 15,1 2,6 0,6 2,0 1,1 3,5 6,4 33,1 Lula 07-10 4,5 3,5 2,7 17,7 1,8 2,0 3,1 0,4 3,3 5,1 34,9 Lula 03-10 4,0 2,8 1,8 16,4 2,2 1,3 2,6 0,8 1,6 5,8 34,0 Fonte: Cálculos do IBRE/FGV baseados em dados do IBGE.
16 Perspectivas O governo terá que ter uma mira muito boa para fazer com que o dinheiro chegue ao pobre e transforme a vida dele. Marcelo Neri ter atingido o teto. No governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o Brasil registrou, em média anual, uma carga tributária de 28,6% do PIB. Já no governo Lula, essa média saltou para 34% ao ano. Pobreza Mesmo diante de um cenário não tão favorável como o observado nos últimos oito anos, as expectativas sobre a continuidade dos benefícios sociais praticados no governo Lula podem ser consideradas positivas. É um desafio grande, afirma Marcelo Neri. Embora acredite na manutenção das conquistas, admite dificuldades para novos passos: Ela [a presidente Dilma] sabe que os frutos mais baixos já foram colhidos. Vai manter os mesmos benefícios, mas terá que ser muito boa para conseguir avançar. Na opinião do economista da FGV, o governo terá que ter uma mira muito boa para fazer com que o dinheiro chegue ao pobre e transforme a vida dele. Um sinal citado por Marcelo Neri que demonstra a disposição da atual administração de caminhar para a busca da ampliação dos benefícios sociais está no primeiro pronunciamento da presidente da República, no dia 10 de fevereiro. A meta Brasil, país rico é país sem pobreza já foi oficializada como a logomarca da gestão Dilma. Um dos entraves para o atual governo repetir o nível de avanço está no fato de a base de comparação já ser elevada. O governo Lula avançou muito desde 2003, inclusive durante a crise mundial, ressaltou Marcelo Neri. E os ganhos ocorreram em duas dimensões: crescimento da renda do brasileiro, com geração de emprego; e redução da De onde vem o bem-estar? Salário mínimo e gastos sociais gastos federais (% do PIB) Despesa total (1) Gastos sociais (3) Custeio saúde e educação (5) Custeio restrito (7) INSS (2) Investimento (4) Pessoal (6) Outros (8) 1999 14,06 5,50 0,59 0,50 0,75 4,47 2,17 0,08 2000 14,44 5,58 0,58 0,66 0,90 4,57 2,07 0,08 2001 15,28 5,78 0,65 0,81 0,91 4,80 2,25 0,08 2002 15,75 5,96 0,78 0,92 0,90 4,81 2,30 0,08 2003 14,97 6,30 0,88 0,40 0,91 4,46 1,91 0,10 2004 15,33 6,48 1,11 0,37 1,06 4,31 1,88 0,11 2005 16,11 6,80 1,27 0,51 1,10 4,30 2,02 0,11 2006 16,78 6,99 1,42 0,74 1,13 4,45 1,95 0,10 2007 16,85 6,96 1,52 0,83 1,20 4,37 1,87 0,09 2008 16,51 6,64 1,57 0,94 1,25 4,35 1,65 0,12 2009 18,33 7,17 1,88 1,09 1,38 4,84 1,85 0,13 2010 18,33 6,86 1,89 1,24 1,41 4,71 2,07 0,14 Variação (2003-2010) 3,36 0,56 1,01 0,84 0,50 0,25 0,16 0,04 Participação 100,00 16,70 29,9 24,90 14,80 7,50 4,80 1,30 Variação (1999-2010) 4,30 1,40 1,30 0,70 0,70 0,20-0,10 0,10 Participação 100,00 32,00 30,4 17,30 15,60 5,60-2,20 1,50 Fonte: Cálculos do IBRE/FGV baseados em dados do IBGE.
Perspectivas 17 desigualdade. Foi uma herança maldita, afirma o economista, mencionando frase que disse ter ouvido da presidente Dilma. Dados do IBRE/FGV mostram que, de 1999 a 2010, os gastos federais com salário mínimo (que incluem aposentadorias e pensões pagas pela Previdência Social e as despesas com demais programas sociais) passaram de 14,06% para 18,33% do PIB. Só no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), por causa da política de valorização do salário mínimo, os desembolsos saíram de 5,5% (1999) para 6,86% do PIB. Nos oito anos do governo Lula, o salário mínimo alcançou taxa de crescimento real de 62,8%. Na comparação com China e Índia, países que também crescem a ritmo acelerado, Marcelo Neri destaca que o diferencial do Brasil é a diminuição da desigualdade social. O nosso crescimento é menor que o deles, mas o que impulsiona é a redução da desigualdade. Salário mínimo A ideia de que o governo conseguirá manter elevados os benefícios sociais, sem, no entanto, sustentar o ritmo dos últimos anos, é corroborada pelo economista Felipe Ohana. Dilma vai manter o patamar elevado, mas não na mesma magnitude do governo Lula. Terá maior dificuldade de ampliar ainda mais, até por causa da baixa base de comparação com o Lula, disse. Um exemplo dos desafios a ser superados é a negociação em torno do novo valor do salário mínimo. O governo já mostrou que não pode preservar os ganhos reais do salário mínimo, o que, para Felipe Ohana, é uma medida correta. Câmara e Senado já aprovaram R$ 545, o que corresponde à variação da inflação em 2010, acrescida de arredondamento. Não foi incorporado reajuste real no valor definido para 2011. Para Ohana, embora a conjuntura do governo Dilma se mostre mais restrita que no de Lula, o ajuste necessário hoje é bem menor que o exigido em 2003. Feito isso (o ajuste), se ela administrar com menos ideologia e mais teoria econômica, teremos um crescimento compatível com as restrições do país, afirma. O resultado, em sua opinião, seria uma mudança no enfoque da sucessão presidencial, que passaria a depender mais de um debate político que econômico. Ou seja, a discussão se concentraria mais na mudança do governante que na condução da política econômica. Uma grande tarefa da presidente é preservar a estabilidade. Como ela diz, estabilidade é um valor absoluto. Maílson da Nóbrega Sentimento de conforto O freio na economia no início do atual governo é visto como natural pelo cientista político Alberto Almeida, do Instituto Análise. O fundamental, para os governos, é ter um crescimento vigoroso nos 12 a 18 meses que antecedem a corrida presidencial, o que garantirá a reeleição ou a vitória de um candidato aliado ao governante de plantão. É natural que as pessoas votem no sentimento de conforto existente às vésperas das eleições, afirma. Isso ocorreu, na avaliação de Alberto Almeida, nas últimas cinco eleições. O primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso foi garantido pela queda da inflação, com o Plano Real. No segundo mandato, apesar da desvalorização do câmbio, a eleição já tinha sido garantida no período anterior, com o sentimento de conforto permitido pela derrubada dos preços, segundo o analista. No caso do governo Lula, Alberto Almeida destaca que 2003 foi um ano com crescimento baixo, por conta dos fortes ajustes na economia determinados pelo então ministro da Fazenda Antonio Palocci. A sensação de bem-estar, que reelegeu Lula e deu a ele a condição de fazer o sucessor, foi acentuada a partir do final do segundo mandato, quando o governo aprofundou os gastos
18 Perspectivas sociais. O governo Dilma começou de maneira correta, com medidas fortes no início, de forma a se preparar para garantir o bem-estar próximo à eleição, em 2014, ressalta. O grande risco para a interrupção das conquistas sociais do governo Lula chama-se, na opinião do economista Maílson da Nóbrega, da consultoria Tendências, inflação. Para ele, uma das grandes transformações da sociedade brasileira, iniciada em 1986, com o Plano Cruzado, foi a percepção de que a inflação não presta. Com o cruzado, que levou a inflação ao chão, lembra Maílson, a popularidade do então presidente da República, José Sarney, chegou a 80%. Agora, as pessoas já estão demonstrando certa preocupação, porque todos os índices apontam para uma taxa de 6%. Uma grande tarefa da presidente acho que ela vai cumprir é preservar a estabilidade. Como ela diz, estabilidade é um valor absoluto, enfatiza. Na sua avaliação, a desaceleração do PIB este ano é saudável e trará a economia próximo de seu potencial de crescimento, que é de 4% ao ano. Mesmo que neste ano a taxa fique em 3,9% conforme projeção da Tendências, o desemprego poderá ficar ainda menor ou igual ao de 2010. A oferta de empregos cresce a um ritmo maior que o da expansão da mão de obra economicamente ativa, da força de trabalho, explica. Risco O desafio da presidente Dilma, afirma ele, será resistir às pressões para que o país avance acima do patamar sustentável. Na hora que fizer isso [baixar os juros], destrói o governo, cria uma crise de desconfiança enorme no mercado, podendo provocar fuga de capitais, e isso teria um custo altíssimo. Será um desastre, comenta. Maílson acredita, porém, que Dilma tem a percepção do risco, e a probabilidade de ela sucumbir às pressões é muito baixa. Para que o Brasil, no entanto, consiga alcançar novo patamar para o crescimento do PIB, acima da faixa dos 4%, com melhoria da produtividade da economia e da competitividade dos produtos brasileiros, dois caminhos são apontados por Maílson: reformas estruturais da economia e melhoria da infraestrutura. O cenário traçado para os próximos quatro anos, porém, não inclui a aprovação de reformas estruturais. A reforma tributária exigiria entendimento e mobilização dos governadores para alterar o complexo sistema determinado pela Constituição de 1988, que permitiu a existência de 27 legislações diferentes (uma para cada um dos 26 estados e Distrito Federal). O que se verifica, porém, na opinião do economista, é uma tendência para a ampliação da guerra fiscal entre estados, com a utilização cada vez maior do mecanismo de substituição tributária, pelo qual o ICMS passou a ser cobrado pelo estado produtor, e não pelo consumidor. E esse tipo de tributação passou a ser concentrado em setores que não conseguem sonegar, como energia, telecomunicações e petróleo. Para o ex-ministro, também são poucas as chances de reformas trabalhista e previdenciária. A alternativa para ampliar o nível de produtividade da economia é aumentar investimentos em infraestrutura. O Brasil tem infraestrutura deteriorada, os portos estão congestionados, os aeroportos passam por frequentes momentos de caos, e as estradas estão uma buraqueira só, salvo São Paulo, afirma Maílson. A mudança no enfoque, para ele, seria fácil de fazer por três razões. A primeira é que não requer mudança constitucional. Além disso, não há escassez de dinheiro privado, externo e interno. Pelo contrário. Tem muito dinheiro, diz. Um terceiro fator que favoreceria a ênfase na infraestrutura é a percepção de que existe apetite do setor privado para operar a infraestrutura no Brasil. E a vantagem, para o atual governo, é que o investimento em infraestrutura, necessário também por conta dos eventos esportivos Copa do Mundo, em 2014, e Olimpíada, em 2016, produz resultados de curto prazo e ainda teria efeito no atual mandato. Se ela conseguir mudar de opinião e for agressiva nessa área, acho que o país cresce mais, define.