CIRCUITOS DE PROXIMIDADE E A CONSTRUÇÃO DE QUALIDADE: EXPERIÊNCIAS DA GRANDE FLORIANÓPOLIS, SC



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Transcrição:

CIRCUITOS DE PROXIMIDADE E A CONSTRUÇÃO DE QUALIDADE: EXPERIÊNCIAS DA GRANDE FLORIANÓPOLIS, SC DANIELE LIMA GELBCKE 1 MARIA DAS GRAÇAS S. L. BRIGHTWELL 2 Resumo: Termos como circuitos curtos ou de proximidade, cadeias agroalimentares curtas, redes alimentares alternativas (AlternativeFood Networks) têm em comum a proposição de uma maior aproximação - tanto relacional quanto geográfica - entre produtor e consumidor, priorizando principalmente a qualidade dos produtos, garantida por critérios de confiança e informação e contribuindo para (re) localização da alimentação. Esta comunicação visa contribuir com este debate, buscando confrontar os principais critérios utilizados na definição desses conceitos, com a realidade de algumas experiências da Grande Florianópolis. Palavras-chave: circuitos curtos; orgânicos; Grande Florianópolis Abstract: Circuitos curtos ou de proximidade, short food supply chains and Alternative Food Networks are terms used to proposea close proximity between producers and consumers- both in geographic and relational terms- prioritizing quality (guaranteed by trust and information) thus contributing to ( re) localize food production and consumption. This communication aims to contribute to this debate, seeking to confront the main criteria used in defining these concepts with the reality of some experiences of Florianópolis. Key-words: short food supply chain; organic; greater Florianópolis 1- Introdução O surgimento ou renovação de formas alternativas de produção, distribuição e consumo vem ganhando visibilidade em vários países e são orientadas por três estratégias que se destacam: a aproximação entre produção e consumo, podendo a mesma ser geográfica ou relacional, a produção de alimentos a partir de bases mais ecológicas e a qualidade dos alimentos em contraponto à padronização imposta pelas indústrias de produção em massa. A terminologia é ampla e tenta dar conta de experiências complexas e situadas em diversos contextos geográficos: circuitos 1 Doutoranda no programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail de contato: dani.gelbcke@gmail.com 2 Pós doutora no programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail de contato:gracabrightwell@hotmail.com 2956

curtos (AUBRI e CHIFFOLEAU, 2009; DAROLT et al., 2013) ou de proximidade (SILVA, 2009), cadeias agroalimentares curtas (FERRARI, 2011, MARSDEN et al., 2000) ou redes alimentares alternativas (Alternative Food Networks) (RENTING et al., 2003). Ainda que apresentem possibilidades e potencialidades para produtores e consumidores, autores como Ferrari(2011) e Darolt et al.(2013) tem apontado para a necessidade de se aprofundar conceitos, métodos e abordagens, capazes de traduzir a complexidade empírica destas experiências. A noção ainda está em construção no Brasil, os critérios adotados em outros países precisam ser validados, ou quem sabe, novos critérios criados para a nossa realidade. Buscando analisar de forma empírica o assunto, o presente artigo se baseia em duas experiências desenvolvidas na Grande Florianópolis, estado de Santa Catarina, ambas envolvendo a produção e comercialização de produtos orgânicos em circuitos regionais. 2- Abordagens teóricas sobre circuitos curtos O critério de proximidade geográfica é um dos atributos mais importantes para definir os circuitos curtos, regionais, diretos ou de proximidade. Malassis (apud SILVA, 2009) argumenta que estes são a manifestação de relações restritas aos mercados locais e regionais, que se caracterizam pela circulação de produtos frescos, elaborados artesanalmente e comercializados em pequenas quantidades, com relação ao conjunto do abastecimento alimentar. Maluf (2004) também enfatiza a proximidade física entre os agentes através do conceito de circuitos regionais. Estes seriam formados no interior do país ou no entorno dos núcleos urbanos de pequena e média dimensão e, através da inclusão da agricultura familiar, capazes de dinamizar as economias territoriais. Na argumentação pela relocalização dos sistemas agroalimentares, dois conceitos são comumente mobilizados: embeddedness (enraizamento) e sustentabilidade ecológica. O primeiro baseia-se no argumento de que as interações face-a-face ajudariam a fortalecer os valores comunitários, de justiça e segurança alimentar (MURDOCH et al., 2000). O segundo, aponta para a inviabilidade a longo 2957

prazo do sistema capitalista de produção e consumo de alimentos, que entres outras coisas, lança mão de extenso e excessivo uso de transporte a largas distancias, geralmente referido como foodmiles (distância percorrida pelo produto, ou pegada ecológica) (NORBERG-HODGEet al., 2002). Entretanto, o próprio Maluf (2004) ressalta que a aproximação geográfica, por si só, é insuficiente para gerar relações sistemáticas e sinérgicas entre os agentes econômicos instalados numa região. Para este, as relações devem ser construídas por processos que refletem as formas sociais de ocupação do território, as opções de estratégias dos agentes econômicos envolvidos e as ações públicas voltadas para promover as atividades econômicas locais e regionais. A defesa da escala de produção local, por sua vez, como sendo a mais ecológica, justa socialmente e economicamente, ou ainda, portadora da melhor qualidade muitas vezes esquece que o resultado produzido por um sistema alimentar é contextual, ou seja, ele depende de atores e agendas, empoderados por relações sociais particulares de um dado sistema alimentar", argumentam Born e Purcel (2009, p. 117). Um exemplo neste sentido é a adoção da compra direta do produtor por redes varejistas maiores, como os supermercados, que o fazem com o objetivo de reduzir custos e garantir a qualidade dos produtos, relacionada ao frescor dos mesmos. Esta relação direta não garante, entretanto, relações sociais e econômicas mais justas para os fornecedores. Outra abordagem usada entre os que discutem a aproximação entre produção e consumo é aquela focada no número de atores envolvidos. Para Matte et al. (2014), um dos aspectos centrais e decisivos na organização das cadeias curtas de suprimentos, refere-se à redefinição e mesmo a construção das relações com os mercados. Para os autores, não há cadeia curta sem que ocorra o encurtamento ou estreitamento das distâncias e do contato entre produtores e consumidores. Autores como Chiffoleau (2008), Humbert e Castel (2008), Montiel (2010) defendem que o encurtamento não se dá apenas pelas relações de confiança, mas pela diminuição do número de intermediários. Esta discussão inspirou a definição oficial de circuito curto na França, que o compreende como o modo de comercialização de produtos agrícolas que se exerce, seja através da venda direta do produtor ao consumidor, seja pela venda indireta, na condição que haja um único intermediário 2958

(http://agriculture.gouv.fr/circuits-courts). Esta definição engloba uma grande variedade de canais de comercialização de alimentos, tais como: feiras, venda na propriedade, venda pela internet, no domicílio, em pontos de entrega, todas essas consideradas vendas diretas. As vendas indiretas podem ocorrer via restaurantes, lojas especializadas, pequenos comércios, restaurantes coletivos (merenda escolar, empresas, hospitais, etc.) e mesmo médias e grandes redes de supermercados. Um terceiro critério de aproximação entre produção e consumo é o da informação. Marsden et al. (2000:426) deixam claro que não é o número de vezes que o produto é manuseado ou a distância pela qual é transportado que é necessariamente crítica, mas sim, o fato do produto alcançar o consumidor carregado de informações. Estas informações devem permitir ao consumidor estabelecer conexões com o lugar/espaço de produção, valores, pessoas envolvidas e métodos produtivos utilizados, como por exemplo, produtos com a certificação Fair Trade (Comércio Justo). Desde este ponto de vista, o termo cadeias curtas, utilizado pelo autor, não é compreendido como encurtamento geográfico, nem mesmo relacional, visto que a relação direta produtor consumidor não é necessariamente realizada. Renting et al. (2003) segue o mesmo princípio, ao compreender circuitos curtos como as inter-relações entre atores que estão diretamente implicados na produção, transformação, distribuição e consumo de novos alimentos. Esta relação pode dar-se a curta distância ou a longa distância, sendo que neste caso, o encurtamento não se produz em termos de distância física, mas organizativa e cultural através da informação, da confiança e dos valores compartilhados em torno da qualidade regional, ecológica ou natural. Todo este debate sobre cadeias ou circuitos curtos/de proximidade surge como contraponto aos circuitos longos e a alimentação altamente industrializada, sendo a qualidade dos alimentos uma questão central. Apesar do arcabouço de regras sanitárias e boas práticas de manipulação adotadas pela grande distribuição, eventos de contaminação e adulteração de alimentos nos processos produtivos e nas indústrias alimentares vem promovendo a demanda por produtos menos transformados (MALUF e WILKINSON, 1999). Alimentos naturais, produzidos com respeito ao meio ambiente e ao bem-estar animal, aspectos culturais e éticos se juntam ao rol de valores adotados pelos consumidores. Para Pimentel (2005) esta 2959

demanda por qualidade está diretamente relacionada ao surgimento da agricultura orgânica, um dos segmentos agroalimentares com maior expansão mundial, com taxas anuais de crescimento entre 15 e 20%, contra 4 e 5% de crescimento do setor industrial alimentar (NIEDERLE e ALMEIDA, 2013). Na verdade, como observam Niederle e Almeida (2013), o mercado de alimentos orgânicos se caracteriza por uma diversidade e segmentação de canais de comercialização, cada qual impondo um conjunto mais ou menos específico de exigências aos produtores, tais como, escala de produção, diversificação dos produtos, regularidade de entrega, padrões de qualidade etc. Se Goodman (2002), propõe que estas redes alimentares alternativas, podem criar novos espaços econômicos capazes de superar as forças globalizantes, mercados não controlados, divisão do trabalho e poder de grandes empresas, o que se observa na prática é a convivência em um mesmo espaço geográfico de formas convencionais de distribuição e formas alternativas, muitas vezes interseccionadas e sobrepostas (MIOR, 2010, SONNINO E MARSDEN, 2006). Berger (2008), por sua vez, aponta para uma tendência à apropriação da comercialização de produtos de qualidade diferenciada como os ecológicos, artesanais, territoriais por esquemas clássicos. Mas seria de fato possível estabelecer uma diferenciação nítida entre circuitos convencionais e alternativos? 3 - As experiências da Grande Florianópolis A produção orgânica é considerada uma experiência emergente da agricultura familiar catarinense e uma importante alternativa de renda para os pequenos produtores, que ocupam 87% dos estabelecimentos rurais do Estado de Santa Catarina e tem um papel importante na sua economia, gerando 64% do Valor Bruto da Produção Agropecuária (IBGE, 2006). Segundo a Zoldan e Mior (2012), algumas tendências contribuem para o desenvolvimento desta produção no Estado, como o crescimento e consolidação de diversos mercados regionais de alimentos em função do crescimento populacional, e da expectativa da melhoria de renda e da qualidade de vida da população. 2960

Em estudo realizado em 2012, a Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (EPAGRI) levantou a presença de 603 agricultores orgânicos em 138 municípios catarinenses, e um valor total da produção dos principais produtos comercializados no Estado de R$ 12,656 milhões. A região da Grande Florianópolis, área de interesse para este estudo, possuía naquele momento 52 produtores orgânicos, especializados principalmente em hortaliças (ZOLDAN e MIOR, 2012). Outro dado interessante apontado pelo estudo é que o próprio município é o principal destino da produção comercializada, caracterizando, portanto, um circuito curto. A venda direta ao consumidor em feiras ou na propriedade é o principal canal de comercialização para todos os agricultores entrevistados, e a comercialização em supermercados (olerícolas) e cooperativas (olerícolas e produtos de lavouras temporárias ou permanentes) é citada como importante para uma parcela significativa dos mesmos. O abastecimento alimentar através da produção regional de alimentos orgânicos e agroecológicos pode se dar através de estruturas de varejo, tanto públicas como privadas. No município de Florianópolis, destacam-se os Programas de Aquisição de Alimentos (PAA) e de Alimentação Escolar (PNAE) enquanto iniciativa pública e, o Box de produtos orgânicos localizado na estrutura da CEASA de São José; as feiras de produtores; os supermercados; as lojas especializadas e os sacolões como iniciativa privada, mesmo quando utilizam espaço público. Procurando responder sobre a possibilidade de diferenciações nítidas entre circuitos convencionais e alternativos buscaremos analisar duas experiências de comercialização de produtos orgânicos no mercado de Florianópolis. Os estudos de caso foram selecionados a partir de trabalho de campo realizado no âmbito da disciplina Circuitos Curtos: inclusões e exclusões no sistema agroalimentar 3, cujo objetivo principal foi confrontar a teoria sobre o assunto com experiências locais de circuitos curtos. As saídas de campo utilizaram como ferramentas para coleta de dados: entrevistas semi estruturadas, observações e registro fotográfico.partindo dos critérios de aproximação geográfica entre produção e consumo de alimentos orgânicos, o estudo adotou a presença de no máximo um intermediário para a 3 Tópico especial ministrado no PPGEO UFSC em 2014 pelos professores Clécio Azevedo da Silva e Maria das Graças S. L. Brightwell 2961

primeira seleção. Dentre os casos que atendiam a esses critérios, foram selecionadas duas experiências, uma de venda direta através de feira livre, e outra em rede de supermercados, partindo do pressuposto que apresentam relações comerciais diferenciadas. As informações descritas foram coletadas através de entrevistas com agricultores e varejo. A Experiência 1 se refere a um pequeno grupo de agricultores familiares do município de São Bonifácio (SC), localizado a 79 km de Florianópolis, principal mercado consumidor. Este grupo composto por seis famílias comercializa a maior parte da produção em uma feira semanal, realizada dento do campus da Universidade Federal de Santa Catarina. O restante da produção é entregue em um mercado especializado em produtos orgânicos (denominado Mercado M) que possui duas lojas e uma rede de restaurantes, em outros restaurantes da capital, e esporadicamente para uma empresa que abastece supermercados (Empresa C.V.). O volume médio comercializado é de 5.000 unidades (kg, maço) de hortaliças e frutas por semana. Para este grupo a comercialização dos produtos não é um problema, visto que a demanda é maior do que oferta. A dificuldade está no estabelecimento de novos parceiros para produção, falta de mão de obra especializada, infraestrutura precária para o escoamento e falta de apoio do poder público municipal. Dada a dificuldade de expandir a produção, a oferta da feira é complementada com produtos provenientes do Mercado M, que além de cliente, é também fornecedor de produtos orgânicos para os agricultores/feirantes. Esta parceria extrapola as relações comerciais segundo o agricultor entrevistado, visto que o Mercado M absorve toda a produção não comercializada na feira, independente de pedidos formalizados. Como contrapartida, os agricultores recolhem as sobras do Mercado M e sua rede, desonerando estevarejo de contratar uma empresa para fazer o descarte. A Experiência 2 é de agricultores do município de Antônio Carlos, distante 32 km de Florianópolis. Estes, incentivados por uma rede de supermercados, iniciaram a produção de hortaliças convencionais e a converteram em seguida para orgânica. Hoje com produção e mercado consolidados, comercializam através da empresa da família (Empresa A) a própria produção e de vários parceiros do município, do Estado de Santa Catarina, e esporadicamente do Rio Grande do Sul, Paraná e São 2962

Paulo.Como a produção de orgânicos não supre a necessidade dos supermercados, a empresa mantém o beneficiamento de alimentos convencionais adquiridos de outros agricultores, os quais denominam de produtos tradicionais. Na agroindústria, orgânicos e tradicionais são manipulados separadamente, processados e acondicionados em embalagens diferenciadas. Embora exista este mix de produtos, o marketing da empresa é feito em cima dos alimentos orgânicos, que apresentam um crescimento de 30 a 40% ao ano, contra 12 a 15% dos tradicionais. A parceria com fornecedores de outras localidades de SC e de fora do Estado se dá pela necessidade de atender o supermercado, que apresenta uma demanda de variedade de produtos e em um nível de escala, que não é possível produzir localmente. A figura 1 mostra os fluxogramas das duas experiências. 4 - Discussão e reflexões Conforme observado nos fluxogramas (figura 1), embora a comercialização entre o fornecedor principal e o varejo seja realizada através de uma relação direta, e grande parte dos produtos serem provenientes da região da Grande Florianópolis, em ambos os casos existe a necessidade de ampliação dos circuitos para atender a demanda do mercado consumidor, colocando em questão o critério aproximação geográfica. Da mesma forma, a presença de no máximo um intermediário também pode ser questionada, visto que em ambos os casos, parte dos produtos é adquirido de outros fornecedores. No caso da Empresa A, a mesma serve de entreposto dos supermercados, que por falta de estrutura logística para comprar direto dos agricultores, os encaminha para esta empresa, que realiza o beneficiamento e a comercialização dos produtos com sua marca. A vantagem para o supermercado, além da transação entre empresas (CNPJ), e a redução do número de fornecedores é a presença de uma marca reconhecida nas suas gôndolas. Com relação à qualidade dos produtos, nas duas experiências a mesma está atrelada principalmente ao rótulo de orgânico. Neste caso, a certificação é ferramenta obrigatória, mesmo para a feira onde a qualidade também é garantida por relações de confiança. Para a Empresa A, que estabelece relação com varejo de maior porte, a rastreabilidade é sugerida por este último. Vale destacar que as redes 2963

varejistas no Brasil são hoje estimuladas pela ANVISA (que desenvolve o PARA 4 ) a realizar um maior controle de qualidade e de rastreabilidade dos alimentos até o produtor. Figura 1. Fluxograma das relações comerciais (elaboração própria) No caso do supermercado analisado, a rastreabilidade foi também adotada para os alimentos orgânicos, como uma garantia a mais, um diferencial de venda segundo o gerente do supermercado. No entanto, este diferencial provocou a exclusão de um número significativo de fornecedores, que foi reduzido de 280 para 160 após a adoção da rastreabilidade, segundo o mesmo entrevistado. Os circuitos analisados se mostram imbricados em relações de solidariedade e conflito com os circuitos longos, perspectiva defendida por alguns autores como Sonnino e Marsden (2006) e Mior (2010). Sendo assim, a noção de localização alimentar, entendida como a capacidade de garantir a proximidade geográfica entre produtor e consumidor pode ser mobilizada tanto por grandes redes varejistas quanto por feirantes. Se em ambos os casos o fluxo material, que são os alimentos, é reduzido com a aproximação geográfica, esta proximidade não elimina regras, 4 OPrograma PARA é destinado aos produtos convencionais, com o intuito de controlar se o nível de resíduos de agrotóxicos está dentro dos Limites Máximos de Resíduos (LMR); conferir se os agrotóxicos utilizados estão devidamente registrados no país e se foram aplicados somente nas culturas para as quais estão autorizados; estimar a exposição da população a resíduos de agrotóxicos em alimentos de origem vegetal e, consequentemente, avaliar o risco à saúde dessa exposição (ANVISA, 2012). 2964

normas, sistemas de informação (fluxo imaterial) definidos para além da escala local, representando desafios para aquelas iniciativas que almejam escapar das regras das redes convencionais. Da mesma forma, a redefinição das relações entre produtores e consumidores, com sinais claros e transparentes da proveniência e das qualidades atribuídas aos produtos são estratégias utilizadas não só por estes circuitos alternativos, mas também por grandes redes varejistas através de sistemas de rastreabilidade. Em terceiro lugar, reconhecemos ainda que estudos sobre os circuitos de produção, distribuição e consumo não podem mais ignorar o consumo diante da crescente ansiedade e desconfiança dos consumidores com relação ao moderno sistema agroalimentar e do nível de exigência com a relação à diversidade e constante disponibilidade destes alimentos. Esta dificuldade em escapar das normas rígidas dos circuitos longos, não significa que outras perspectivas não sejam alcançadas através destas iniciativas. Seguindo alguns elementos elucidados por Chiffoleau (2008), podemos pressupor que elas: i) contribuem para uma relação comercial mais justa, visto que o número de intermediários é reduzido e existem relações de confiança e negociação entre produtores, intermediários e varejistas. Neste sentido, valem dois comentários, na feira, a relação direta possibilita maior transparência sobre como são definidos os preços, pois o produtor pode explicar ao consumidor problemas com sazonalidade, clima, processos produtivos, etc. Embora os preços do supermercado sejam superiores, as entrevistas também indicaram transparência na definição de preços entre fornecedores, intermediário e supermercado, apesar desta transparência não chegar ao consumidor final; ii) promovem a organização social dos agricultores, seja através de associação informal, como no caso do grupo de São Bonifácio, seja pela parceria comercial estabelecida pela Empresa A com seus fornecedores, reestabelecendo laços de solidariedade frequentemente perdidos nos circuitos longos; iii) fortalecem a agricultura familiar, com base em processos produtivos mais sustentáveis do ponto de vista ambiental, econômico e social, importantes para o desenvolvimento rural. Mesmo carecendo de maior aprofundamento, nos parece que mais do que a aproximação geográfica e/ou relacional entre produção e consumo, o que deve ser analisado é a forma como agricultores, distribuidores e consumidores 2965

vêm construindo os mercados, participando da definição dos atributos de qualidade, das regras de controle, e se apropriando da renda gerada. 5. Referências bibliográficas AUBRI, C. & CHIFFOLEAU, Y. 2009. Le développement des circuits courts et l'agriculture périurbaine: histoire, evolution en courts et questions actuelles. Innovations Agronomiques, 5, 53-97 BERGER, B. 2008. Nouveux circuits courts et nouveaux services. In: Les circuits courts alimetaires: bien manger dans lês territoires. Educagri éditions, 214p. BORN, B.; PURCELL, M., M.. Food Systems and the Local Trap. In: INGLIS, D. e GIMLIN, D. (Ed.). The globalization of food. Oxford: Berg, 2009. p.117-138. CHIFFOLEAU, Y. Les circuits courts de commercialisation em agriculture: diversité et enjeux pour le développement durable. In: Les circuits courts alimentaires: bienmangerdans lesterritoires. Educagriéditions, 2008. DAROLT, M. R., LAMINE, C. & BRANDEMBURG, A. 2013. A diversidade dos circuitos curtos de alimentos ecológicos: ensinamentos do caso brasileiro e francês. Revista Agriculturas: experiências em agroecologia, 10, 8-13. GOODMAN, D. 2002. RethinkingFoodProduction Consumption: Integrative Perspectives. Sociologia Ruralis, 42, 271-277. HUMBERT, M; CASTEL, O. 2008 Une optique internacionale: circuits courts, mondialisation et relocalisation de l économie. In: Les circuits courts alimentaires: bien manger dans les territoires. Educagri éditions, 214p. IBGE. 2006 Censo Agropecuário. http://biblioteca.ibge.gov.br MALUF, R.; WILKINSON, J. 1999. Reestruturação do Sistema Agroalimentar: Questões Metodológicas e de Pesquisa. Rio de Janeiro: Redcap. MARSDEN, T., BANKS, J. & BRISTOW, G. 2000. Food Supply Chain Approaches: Exploring their Role in Rural Development. Sociologia Ruralis, 4, 424 438. MIOR, L. C. 2010. Agricultura familiar, agroindústria e desenvolvimento territorial. In: VIEIRA, P. F., CAZELLA, A., CERDAN, C. & CARRIÈRE, J.-P. (eds.) Desenvolvimento Territorial Sustentável no Brasil: Subsídios para uma política de fomento. Florianópolis: Editora Secco/APED. 2966

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