Navegação a Vela como uma Ferramenta Educacional para o Curso de Engenharia Naval.



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Transcrição:

Navegação a Vela como uma Ferramenta Educacional para o Curso de Engenharia Naval. Fernando Antônio Sampaio de Amorim 1, Alexandre Teixeira de Pinho Alho 2, Paulo Roberto de Torres Frade 3, e Marcos Santoni Willians 3 Universidade Federal do Rio de Janeiro 1 Departamento de Engenharia Naval e Oceânica, Centro de Tecnologia, sala 203, Cidade Universitária, Ilha do Fundão, Rio de Janeiro, RJ, CEP 21945-970. fernando@peno.coppe.ufrj.br Universidade Federal do Rio de Janeiro 2 Departamento de Engenharia Naval e Oceânica, Centro de Tecnologia, sala 203, Cidade Universitária, Ilha do Fundão, Rio de Janeiro, RJ, CEP 21945-970. alho@peno.coppe.ufrj.br Universidade Federal do Rio de Janeiro 3 Departamento de Engenharia Naval e Oceânica, Centro de Tecnologia, sala 203, Cidade Universitária, Ilha do Fundão, Rio de Janeiro, RJ, CEP 21945-970. frade@peno.coppe.ufrj.br Resumo. O artigo relata dois anos de experiência com a disciplina Navegação à Vela I criada no curso de Engenharia Naval da UFRJ. É uma disciplina prática centrada no comportamento mecânico de embarcações com propulsão à vela com o objetivo de ensinar o manejo e a condução destas embarcações a partir do entendimento das relações entre os elementos do complexo sistema mecânico que constitui os veleiros, mesmo aqueles mais simples. O curso foi pensado, inicialmente, como uma atividade complementar com o objetivo de estimular a prática de esportes náuticos entre os alunos do curso de engenharia naval, que por sua vez era conseqüência do desdobramento de um projeto mais amplo em curso no Departamento de Engenharia Naval e Oceânica denominado de Pólo Náutico. Entretanto, a experiência logo demonstrou que o potencial era muito mais amplo do que fora imaginado inicialmente. As atividades do curso criavam condições para que o aluno entrasse em contato com fenômenos aos quais só era apresentado de forma teórica e extremamente abstrata tais como o equilíbrio de embarcações, o deslocamento da embarcação na superfície livre, a utilização de superfícies flexíveis como perfis aerodinâmicos e o manejo de sistemas mecânicos para a transmissão de força. Por outro lado, os resultados evidenciaram o potencial de um trabalho centrado num enfoque conceitual e qualitativo de base experimental, onde todos os aspectos poderiam ser constantemente verificados e testados. O manejo de um veleiro exige que se opere, num plano qualitativo, com os conceitos relativos ao equilíbrio de embarcações, a resistência hidrodinâmica, ao funcionamento da vela como uma superfície aerodinâmica, enfim a diversos fenômenos que são fundamentais na formação do engenheiro naval. Além disto, a busca de maior eficiência exigirá uma compreensão profunda da relação entre todos os fenômenos envolvidos e as características do barco. O artigo relata o esforço de construir uma metodologia de ensino e aprendizado que pudesse desenvolver simultaneamente as capacidades físicas relativas as habilidades motoras e as capacidades intelectuais referentes ao entendimento dos fenômenos envolvidos na operação de uma embarcação à vela. Palavras-chave: Novas Tecnologias e Metodologias no Ensino de Engenharia.

1. INTRODUÇÃO O relato que se segue é um registro provisório de um processo em curso. O projeto, a implantação e o contínuo aperfeiçoamento da metodologia e das atividades da disciplina de Navegação à Vela do Departamento de Engenharia Naval e Oceânica foram, e continuam sendo, trabalhos coletivos. Delas participaram diretamente os autores e os alunos e, indiretamente, outros professores com seu entusiasmo, contribuições e apoio, entre estes devemos um agradecimento especial a Átila Silva Freire, Maria Helena Silveira, José Cubero Allende e Protásio Dutra Martins Filho. A idéia da disciplina surgiu durante as discussões iniciais relacionadas com a implantação de um projeto em curso no Departamento de Engenharia Naval e Oceânica o Pólo Náutico, que tem como objetivo principal desenvolver a indústria náutica no Rio de Janeiro e no Brasil. É necessário reconhecer e ressaltar que muitos dos aspectos relatados no artigo só foram percebidos e desenvolvidos a partir da experiência com os primeiros cursos. A motivação inicial foi a de criar uma oportunidade para que os alunos do curso de engenharia naval aprendessem a velejar. A disciplina foi concebida como optativa de caráter prático com carga horária de 4 horas por semana. Embora não tenha sido formulado nenhum tipo de pré-requisito, o público alvo com o qual pretendíamos trabalhar era constituído pelos alunos dos quatro últimos períodos, para os quais foi feita uma divulgação mais intensa. No entanto, muitos alunos dos primeiros períodos se inscreveram na primeira experiência com a nova disciplina e logo nas primeiras aulas ficou evidente que não havia uma grande diferença no desempenho deles e dos veteranos. Estes últimos podiam até compreender o que estava ocorrendo com os pequenos veleiros da classe Dingue utilizados nas aulas e eventualmente até faziam diagnósticos corretos quando viravam ou o barco parava alinhado com o vento e não conseguiam sair desta situação. Porém, nenhum deles conseguia utilizar o que haviam aprendido em arquitetura naval e hidrodinâmica para resolver os problemas relativos ao equilíbrio da embarcação e ao aumento de desempenho. A disciplina, desde a sua primeira edição, promoveu um envolvimento muito intenso de todos os alunos. Tal envolvimento vem se desdobrando num compromisso mais efetivo com o curso e o departamento. Iniciativas espontâneas com a criação de um grêmio de vela para participar de regatas e a participação nas aulas iniciais dos cursos subseqüentes, quando sempre é necessário um grande número de instrutores, são alguns dos exemplos desta mudança de atitude. A partir dos resultados do primeiro curso resolvemos redirecionar o curso para os alunos dos primeiros períodos e formulamos novos objetivos pedagógicos relativos a compreensão dos fenômenos físicos envolvidos com a condução de embarcações à vela. Foram introduzidas algumas discussões introdutórias, de caráter conceitual, onde são utilizados modelos reduzidos e vídeos, para servir como referência para as atividades que serão realizadas no mar. Os resultados do curso continuam sendo considerados bons pelos alunos e professores. Alguns dos objetivos pedagógicos não são realizados plenamente por todos os alunos. No entanto, é indiscutível que todos os alunos passam a ter uma nova visão, mais ampla e profunda do comportamento mecânico das embarcações. Por outro lado, as dimensões relativas à socialização e ao desenvolvimento de habilidades físicas têm se apresentado como ganhos secundários extremamente importantes. Contribuem, sobretudo, para a redução da evasão. Criam novas e diversas possibilidades de ações entre os alunos. Sedimentam as relações com o curso de engenharia naval e com a UFRJ. 2. ALGUNS COMENTÁRIOS NECESSÁRIOS À RESPEITO DO PROCESSO DE APRENDIZAGEM E DA METODOLOGIA DESENVOLVIDA O primeiro problema que emergiu com força da edição inicial da disciplina de Navegação à Vela foi a grande dificuldade demonstrada pela quase totalidade dos alunos em operar num plano conceitual essencialmente qualitativo. Treinados, durante toda a experiência acadêmica anterior, para resolver problemas com forte grau de abstração, no quais deveriam aplicar os modelos e formulações que aprenderam nos livros e nas aulas, raramente são solicitados a enfrentar problemas cuja solução exige decisões suportadas por avaliações de natureza essencialmente qualitativas e análises conceituais, que não utilizam formulações baseadas em modelos matemáticos. Esta é, no entanto, a situação mais corriqueira na vida do engenheiro. Tal constatação nos levou a uma reflexão que nos conduziu a diversas questões relativas a uma aparente contradição entre o modelo tradicional de avaliação por provas e a necessidade de formar as habilidades intelectuais necessárias à superação dos desafios que os futuros engenheiros irão enfrentar. Formamos bons fazedores de provas. Os dados são inequívocos. Nossos alunos sempre se saem muito bem quando são submetidos a provas ou concursos. No entanto, quando se defrontam com os desafios do cotidiano nem sempre demonstram a mesma aptidão. Parece que vai ficando cada vez mais claro que precisamos prepará-los não apenas para fazer boas provas, mas, sobretudo, para superar os desafios que o futuro lhes reserva, em especial aqueles relativos à aquisição e produção de novos conhecimentos. Esta dificuldade tão grande em operar conceitualmente no mundo real com o que aprenderam na escola, ou deveriam ter aprendido, se apresentou muitas vezes com tal intensidade que se constituía como um bloqueio. A questão principal, no entanto, se refere às causas de tal dificuldade. Nossa reflexão inicial indicou que a causa principal se relaciona com a quebra da cultura didática construída desde o primeiro grau. Não se trata de aplicar um modelo matemático previamente estudado para calcular o valor de parâmetros que supostamente representam algum fenômeno físico ou o desempenho de algum sistema mecânico. A questão é usar o que aprenderam para operar num plano qualitativo e conceitual para resolver os problemas enfrentados com a condução da embarcação. Para fazer isto com sucesso, será preciso superar os limites formais de um modelo educacional que privilegia o estudo analítico e fragmentado de métodos voltados para o cálculo de parâmetros, cujo significado físico, freqüentemente, se perde no longo caminho que parte da observação do

fenômeno até chegar numa descrição matemática. Perde-se o significado físico porque quase sempre o método de ensino adotado parte da abstração e não da observação do fenômeno real. Raramente são discutidas, de forma efetiva e consistente, as hipóteses formuladas na construção dos recortes que suportam o modelo físico e a escolha dos parâmetros quantificáveis utilizados para descrever matematicamente o fenômeno. Finalmente, porque se privilegia o adestramento e não a capacidade crítica e o desenvolvimento de habilidades intelectuais. As dificuldades enfrentadas na disciplina de Navegação à Vela são da mesma natureza das enfrentadas em disciplinas de Projeto, quando o aspecto fundamental não é a capacidade de realizar os cálculos para medir o desempenho da embarcação ou simular o seu comportamento de um ponto de vista determinado, mas, de entender o que está ocorrendo com o barco, que forças estão atuando, como e onde atuam. Tal compreensão é fundamental para que os alunos possam tomar as decisões capazes aperfeiçoar os conceitos de projeto ou, quando estão na condução dos veleiros, de resolver os problemas relativos ao equilíbrio da embarcação e a obtenção de maiores velocidades. A dificuldade em operar num plano conceitual e qualitativo acabava colocando todos no mesmo plano, calouros e veteranos. No entanto, nossa experiência indica que tal dificuldade não se restringe à disciplina de navegação à vela, mas se manifesta toda vez que é exigido dos alunos um trabalho de síntese em atividades de pesquisa ou em trabalhos de projeto. Nos parece que expressa um problema de formação, relativo a uma deficiência de todo o sistema educacional, que se apresenta sempre que os alunos precisem tomar decisões que exigem uma avaliação que transcenda a comparação de resultados numéricos com um padrão pré-determinado. Sempre que o julgamento relativo à tomada de decisões exigir a construção de relações, nem sempre evidentes, entre as características do sistema real e os fenômenos que envolvem a compreensão do comportamento do referido sistema a dificuldade irá se manifestar, quase sempre na forma de uma grande insegurança em tomar as decisões. O sistema educacional não estimula os alunos a pensar e a operar conceitualmente com o que aprenderam. Muito freqüentemente são apresentados a fenômenos físicos extremamente complexos na sua forma mais abstrata - os modelos matemáticos. O entendimento do fenômeno real é essencial para a construção ou apropriação dos conceitos fundamentais sobre os quais o modelo é formulado. Por outro lado, correspondem a uma forma de apropriação determinada, que por sua vez corresponde a um recorte arbitrário, que incorpora reduções e simplificações, que muitas vezes são esquecidas ou negligenciadas nas discussões em sala de aula. Para desenvolver a habilidade em produzir sínteses e operar num plano conceitual e qualitativo será preciso partir do real, construindo os conceitos a partir da observação e da análise do fenômeno estudado. Outro aspecto, que nos parece muito importante, se refere ao caráter das operações intelectuais trabalhados no segundo grau e na universidade. Enquanto o manejo do barco e a participação em regatas exigem, sobretudo, operações de síntese e decisões rápidas, durante quase todos o tempo de sua formação os alunos são treinados a realizar operações de análise, onde raramente precisam tomar decisões e utilizam, quase sempre, esquemas rígidos e previamente conhecidos. Raramente são desafiados a construir seus próprios esquemas de análise, ou mesmo a desenvolver um modelo matemático a partir de outros conhecidos ou a selecionar e desenvolver os instrumentos de análise para resolver um problema. Tampouco são exigidos a ir além do cálculo de parâmetros de desempenho. Em geral, os professores das disciplinas que estudam estes modelos se restringem a analisar as características do modelo, seus limites, a precisão e o alcance dos resultados produzidos, mas, raramente conduzem uma reflexão sobre o significado físico dos resultados obtidos. No entanto, uma vez formados engenheiros será isto o que farão. Operar num plano qualitativo para produzir e avaliar conceitos de projeto ou soluções para os mais diversos problemas de engenharia. Analisar resultados de cálculos produzidos por equipes de especialistas, avaliar a qualidade e os significados destes resultados e tomar decisões. Esta reflexão indicou que a principal contribuição da disciplina de navegação à vela para a formação de engenheiros navais, ou mesmo de outras habilitações, seria a de desenvolver a capacidade de operar qualitativamente com os fenômenos físicos relativos ao manejo de embarcações à vela, capacitando-os a entender o processo de projeto das embarcações e a encontrar as formas mais adequadas para resolver os problemas relativos à melhora do desempenho. Neste sentido, o caminho mais indicado pareceu ser o de trabalhar primeiro num plano conceitual, qualitativo e, sobretudo, global, sem recortar os fenômenos. Procurar entender o sistema como um todo e entender as relações e conexões entre todas as suas partes. Esta passou a ser a referência fundamental para a construção da metodologia que será apresentada neste artigo. A disciplina de navegação à vela também ajudou a mostrar o que todos já sabiam, mas não se davam contas de suas conseqüências, ou sequer tomaram consciência, na sua plenitude, das repercussões a quase totalidade dos alunos de engenharia jamais tinha navegado em qualquer tipo de embarcação o tempo suficiente para ter qualquer informação mais relevante e consistente a respeito do comportamento mecânico destes sistemas extremamente complexos. Parece evidente ser esta uma das causas para a dificuldade demonstrada, por uma parcela considerável dos alunos em disciplinas como arquitetura naval, que estuda as condições de flutuação e equilíbrio das embarcações e hidrodinâmica. A partir destas constatações resolvemos mudar o público alvo e dirigir a disciplina para os alunos do primeiro período. Os veteranos não são proibidos, ao contrário, é boa a presença de um pequeno grupo porque estimula e aprofunda as discussões. No entanto, a metodologia é formulada com o objetivo de atender as necessidades de um aluno de primeiro período.

3. O MÉTODO. O primeiro movimento no processo de aprendizagem é o conhecimento do barco que é feito na primeira aula através de uma atividade onde os alunos aprendem a montar e a desmontar o barco. Entram em contato com a linguagem do meio e a nomenclatura dos componentes dos sistemas do DINGUE. O Objetivo da aula é o de identificar os sistemas e perceber como funcionam. Durante esta atividade começa também a discussão que terá seqüência na aula seguinte, no laboratório de hidrodinâmica, sobre o comportamento mecânico das embarcações à vela. O objetivo destas aulas (duas) é o de identificar as forças que atuam no sistema, como atuam e onde atuam. Num primeiro instante um modelo do barco é colocado no túnel de vento e os alunos terão que identificar as forças propulsivas e as respectivas reações. Também são trabalhadas as manobras que precisarão ser realizadas para aproveitar o vento e conduzir o barco no rumo desejado. Isto é, são estudadas as condições de contravento (vento entrando pela proa da embarcação), través (vento entrando pelos lados da embarcação) e de vento de popa. Concluída esta etapa será utilizado um vídeo para tornar a análise mais realista e introduzir os elementos que não podem ser tratados no túnel de vento. Desta forma, os alunos eles serão capazes de identificar todas as forças que atuam no sistema, onde atuam e como são geradas chegando ao esquema da figura 1. Todo este trabalho é desenvolvido numa base estritamente qualitativa e conceitual. Não existe a preocupação de modelar o fenômeno, nem de calcular nada. O objetivo é de observar os fenômenos e entender como as forças são geradas e o que pode ser feito para equilibrar a embarcação e obter o máximo desempenho possível. VB V AW V TW SF HK CPA R HK T SA D SA CPH L SF SA SA L HR D HR Figura 1: Esquema de forças simplificado que atua num veleiro com uma vela. Ao longo deste três anos foi sendo preparado um texto para servir de apoio. Ele vem crescendo e hoje está disponível na rede interna para todos os alunos do curso. Em breve estará disponível para a comunidade externa na página do Programa de Engenharia Oceânica e do Departamento de Engenharia Naval e Oceânica (http://www.peno.coppe.ufrj.br). Este texto tem contribuído bastante para superar algumas das maiores dificuldades no aprendizado da navegação à vela que são aqueles relativos ao domínio da linguagem e o entendimento do complexo sistema mecânico constituído pelos veleiros, mesmo os menores monotipos para regatas. As figura 2 e 3 apresentam alguns dos esquemas explicativos que têm contribuído no processo de fixação dos conceitos.

Sotavento Barlavento Figura 2: Esquemas explicativos da manobra de cambagem. P l R M ã M b d B F A ê di C P V Figura 3: Ilustrações relativas a nomenclatura Concluída a iniciação as primeiras práticas no mar são revisões do que foi feito no laboratório. Cada barco segue com um instrutor e dois alunos que irão se revezar na função de proeiro e timoneiro com o objetivo de mostrar como o barco funciona e como pode ser manejado. O proeiro é o responsável pelo equilíbrio do barco e maneja a escota que é o cabo que regula a posição da retranca. Elemento do sistema vélico que define a abertura da vela. A retranca é constituída por um perfil cilíndrico, semelhante ao mastro e que fica prezo no mastro. O proeiro maneja o leme e é responsável pela condução do barco. Sempre que possível o instrutor atua apenas como um mediador e um facilitador. Ele não faz as manobras, apenas as dirige. Isto dependerá das condições do tempo e da atitude dos alunos. Quando o vento estiver um pouco mais forte é conveniente que os primeiros movimentos sejam conduzidos pelo instrutor. Sempre que os alunos

demonstrem muita insegurança, também é melhor conduzir uma ambientação até que se sintam seguros para começar a prática. A questão da ambientação foi negligenciada inicialmente, mas é muito importante para o sucesso do curso. Todos os membros do grupo de docentes que formulou e implantou o projeto tem uma longa história de relação com o mar, como velejadores ou surfistas. Esta história acabou por levá-los a deixar de lado um elemento de grande importância que é a ambientação ao mar, um ambiente que têm, no imaginário popular, a identidade de ser muito hostil. Além disto, o fato da primeira experiência do curso ter sido realizada em São Pedro da Aldeia, na lagoa de Araruama, que oferece um ambiente muito favorável e acolhedor acabou por torna-la pouco visível no primeiro curso. No entanto, as aulas passaram a ser realizadas no campus da UFRJ que fica localizado na Ilha do Fundão na baía de Guanabara. Um ambiente efetivamente muito mais desafiador para quem não tem qualquer experiência com o mar. Além disto, surgiu com grande intensidade a questão da poluição de suas águas, que precisa ser discutida e trabalhada com os alunos. Aparentemente, até agora ninguém deixou de fazer as aulas com medo dos efeitos da poluição, muito embora as atividades sejam realizadas na enseada do Catalão que é uma das áreas menos degradadas da baía. Além disto, a região oferece condições excelentes para o aprendizado da navegação à vela porque é bem abrigada em relação às ondas, mas não para o vento que é limpo, sem interferências. A dificuldade de ambientação se expressa, principalmente, pela insegurança gerada pelo medo do barco virar. A discussão das normas de segurança que consta das aulas iniciais acaba por amplificar a sensação de insegurança, porque dá muita ênfase a obrigatoriedade do uso do colete salva-vidas e aos procedimentos para desvirar o barco. Neste particular há uma grande diferença entre os alunos que já têm uma ambientação com o mar e os que não têm. Os primeiros, entre os quais se destacam os surfistas, que além do convívio com o mar e as ondas, têm algum conhecimento empírico de ventos, marés e correntes, além de não ter medo de ficar por baixo do barco caso ele vire, acabam por se desenvolver muito mais rápido que o outro grupo, cuja ambientação requer muito mais tempo. Neste caso, o medo e a insegurança criam uma dificuldade para se concentrar no equilíbrio e na condução do barco, atrapalhando desta forma o processo de aprendizagem. Concluída a primeira fase do curso, quando os alunos aprendem as manobras e a condução do barco, sem se preocupar em realizar um curso predeterminado. Navegam livremente e a única preocupação é retornar ao ponto de partida. Esta fase é toda realizada com a assistência de instrutores a bordo. A segunda fase se inicia quando os alunos já estão ambientados e se sentem seguros para navegar sozinhos. Nesta etapa a orientação é feita pelos professores de barcos de apoio, ou de outros veleiros. O objetivo principal é realizar um curso determinado. Os exercícios são realizados com bóias. Nesta fase também são trabalhadas as diversas possibilidades de equilíbrio e regulagem dos sistemas do barco com o objetivo de melhorar o desempenho. Na terceira etapa do curso são realizadas pequenas regatas com o objetivo de estimular o aperfeiçoamento das habilidades dos alunos e o trabalho de equipe. Também são discutidos os diversos aspectos relacionados ao projeto do barco e realizados exercícios com o propósito de estimular uma compreensão mais profunda da relação entre os diversos sistemas do barco. Também são trabalhados os aspectos relativos a hidrodinâmica do casco e a aerodinâmica das velas. Todo este trabalho é realizado através de uma metodologia tutorial onde as discussões são propostas durante a aula quando surge algum problema relativo à condução ou a busca de mais eficiência e no final das práticas. As avaliações levam utilizam as regatas e o acompanhamento das atividades dos alunos como elementos fundamentais. Uma referência importante é a capacidade de conduzir o barco sozinho. Nem todos os alunos alcançam este ponto no tempo de um período, principalmente aqueles que tiveram muita dificuldade no período de ambientação. Estes alunos são estimulados a continuar praticando e a quase todos continuam e acabam desenvolvendo a habilidade para conduzir sozinhos, o que exige, simultaneamente, a preocupação com o equilíbrio, a regulagem das vela e o leme. 4. CONCLUSÕES. A experiência acumulada até agora mostra que todos os alunos, mesmo aqueles que tiveram as maiores dificuldades para se ambientar e aprender a velejar, passam a ter uma visão muito mais ampla do comportamento mecânico das embarcações. A prática também reafirmou que é muito mais fácil aprender quando se está motivado e se parte sempre do real. Também ficou claro que os resultados relativos à socialização dos alunos, principalmente no que se referem ao trabalho em grupo, à formação de vínculos mais profundos com a instituição e, no caso dos calouros, em promover uma transição mais fácil do segundo grau para a universidade, que simbolicamente, representa o ingresso na vida adulta. Os resultados do curso mostram que estes elementos têm sido negligenciados na formulação das grades curriculares dos cursos de engenharia. Também evidenciam que é preciso haver uma preocupação maior com a formação das habilidades intelectuais e não apenas com a transmissão, ou o treinamento, de um conjunto restrito de conhecimentos técnicos e científicos. Enfim, mais uma vez ficou evidente que é preciso formar o homem e o cidadão, para ter sucesso na formação do engenheiro. A maioria dos nossos alunos tem um contato muito reduzido com o mar, com navegação e embarcações. É muito mais fácil formar um engenheiro capaz de projetar e construir boas embarcações quando ele desenvolve um conhecimento mais profundo do mar e da navegação. Nos parece que a experiência com a disciplina de Navegação à Vela mostrou ser esta uma forma extremamente barata e eficiente de promover o aprendizado daqueles importantes elementos para a formação de engenheiros navais. Não estamos promovendo nenhuma revolução educacional. Tanto na Europa, como nos EUA, esta é uma prática corrente na maioria dos cursos de engenharia naval. Como atividade pedagógica pode ser

muito útil para outras habilitações, principalmente Civil e Mecânica, especialmente em regiões onde a indústria náutica possa ter um potencial para o mercado de trabalho em engenharia. Os resultados obtidos até agora nos estimularam a formular a proposta de uma continuação que ainda não foi implantada formalmente, embora como atividade extracurricular, através do Grêmio de Vela da UFRJ, já esteja em curso. O tempo de um período letivo realmente é pequeno para trabalhar tantos elementos novos. Isto é particularmente verdadeiro para aqueles alunos com maiores dificuldades com o mar.