Uma casa, quatro gerações: padrões de acumulação e estratégias para a manutenção da subsistência entre libertos em Campinas do século XIX.



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Transcrição:

Uma casa, quatro gerações: padrões de acumulação e estratégias para a manutenção da subsistência entre libertos em Campinas do século XIX. Laura C. Fraccaro 1 Esta apresentação analisa as diferentes configurações pelas quais quatro gerações de uma mesma família de libertos passaram na Vila de São Carlos, atual Campinas, em meados do século XIX. Busca também comparar quais as estratégias e decisões que esses indivíduos traçaram em diferentes momentos, considerando as possibilidades de ascensão ou manutenção do espólio entre os membros dessas gerações. Proponho como categoria de análise o conceito de domicílio e os diversos arranjos familiares que nele se constroem e se desfazem. Entendo o domicílio como um conjunto de relações pessoais, consanguíneas ou não, que podem variar com o tempo. Porém há uma preocupação da qual todos os indivíduos participam: a reprodução da vida. Seja no cuidado dos mais velhos e novos ou na busca por fontes variadas de renda, os indivíduos tentam se conjugar de maneira a buscarem a sobrevivência. É imprescindível dizer que o domicílio não é estático, havendo, portanto, uma constante alteração dos papéis e das funções que cada indivíduo ocupa e exerce no domicílio. Por incluir essas alterações, o conceito de domicílio considera qualquer faixa etária, gênero e profissão e consegue abarcar, principalmente, estratégias e reações a mudanças. 2 O domicílio, no entanto, é construído a partir de intensas negociações e expectativas. As relações entre mais velhos e os jovens são, geralmente conflituosas. Quando um chefe de família sustenta seus filhos durante a infância, espera que as crianças já em idade para o trabalho retribuam esse investimento, contribuindo com a renda. O chefe espera também que seus filhos lhe ofereçam cuidados na velhice. 3 Em uma vila que passava por um processo de intensa transformação como Campinas, a esperança do chefe de família em manter seus dependentes perto poderia ser em vão. O responsável pelo fogo teria, então, que construir estratégias para evitar ou 1 Doutoranda no Programa de Pós Graduação em História Social da Universidade Estadual de Campinas. 2 van der Linden, Marcel. Connecting Household History and Labour History, in: van der Linden (ed.), The End of Labour History? [Supplement 1 of International Review of Social History], Cambridge: University Press, 1993, 163-73, p.163. 3 BERKNER, Lutz The stem family and the development cycle of the peasant household: an eighteenthcentury Austrian example The American Historical Review, vol.77, n 2 (Apr., 1972). 1

adiar ao máximo a saída de seus dependentes. Estes últimos poderiam se manter junto à família, uma vez que vislumbravam um horizonte no qual havia a possibilidade de herdar ferramentas, animais, uma pequena casa ou móveis. Eram estratégias traçadas ao longo dos anos com o objetivo de assegurar a estabilidade no domicílio. A permanência de herdeiros, a vinda de agregados não consanguíneos, a compra ou venda de um escravo e a própria dissolução de um domicílio são elementos fundamentais para analisar como as mudanças locais e mundiais interferiam na vida dessas pessoas. Essas mudanças na composição do domicílio podem trazer indicações de como os indivíduos resistiam e formulavam estratégias para manter sua sobrevivência. Diferentemente dos estudos clássicos que priorizam a fontes seriais para a análise do domicílio, proponho como o método de pesquisa utilizar conjuntamente os métodos da micro-história e a ligação nominativa de fontes, que permitem reconstruir as biografias de indivíduos e grupos de parentesco, para buscar suas estratégias econômicas e sociais. Acompanhar as diferentes composições que um domicílio pode assumir ao longo dos anos pode enriquecer a análise sobre como os indivíduos ou grupos específicos agiam frente às mudanças que se apresentavam. À medida que o século XIX avançava a possibilidade de ascensão dos libertos e seus descendentes retraía, principalmente devido aos ciclos de inflação dos preços dos cativos. A relação entre possibilidades de ascensão dos libertos e aumento do preço dos cativos é comum em estudos sobre manutenção de espólios entre diferentes gerações. Zephyr Frank analisou em seu livro, Dutra s World, como as mudanças no preço dos cativos e também o crescimento da cidade do Rio de Janeiro alteraram diretamente a mobilidade social da família de um liberto chamado Dutra. 4 Este último conseguiu acumular, até o fim de sua vida, imóveis e escravos. O autor explica que esse acúmulo foi possível para um liberto, pois o momento em que comprou seus escravos era anterior aos intensos ciclos de inflação que surgiram após a proibição do tráfico em 1831. Aqueles que comparam os escravos na década de 1820 encontraram preços menores, que permitiram setores médios e baixos adquirirem seus primeiros escravos. Com os ciclos de inflação, esse espólio se valorizou, tornando suas fortunas mais valiosas, mas, por outro lado, impediu que outras pessoas comprassem seus cativos ou imóveis. Para 4 FRANK, Zephyr. Dutra's World: Wealth and Family in Nineteenth-Century Rio de Janeiro. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2004, p.10. 2

aqueles que já tinham adquirido seus cativos, os ciclos de inflação contribuíram para valorizar a propriedade escrava, enquanto aumentou a desigualdade social a partir da segunda metade do século XIX. 5 Os filhos de Dutra não conseguiram manter os bens do seu pai, pois o capital necessário para adentrar o setor médio da população na década de 1820 momento que Dutra iniciou sua acumulação era menor do que o encontrado na década de 1840 momento que seus filhos viveram. Seus filhos não encontraram as mesmas condições para acumular com as quais Dutra tinha se deparado décadas antes. Frank ainda afirma que à medida que a cidade do Rio de Janeiro se modernizava e enriquecia, a distância entre setores baixos e altos aumentava ainda mais. Para o autor, com o fim da escravidão se aproximando, os setores médios que tinham investido em escravos viram seus bens perderem valores, enquanto os setores mais altos não sofreram tanto com essa perda, uma vez que investiam em outros bens que não os cativos. 6 Maria Luiza Ferreira de Oliveira chega a uma conclusão similar à de Frank, porém utilizando outra metodologia. Analisou os inventários do Arquivo do Poder Judiciário para a cidade de São Paulo em dois períodos distintos: 1874-1882 e 1894-1900. A autora também percebeu que, no primeiro período, os escravos constituíam a maior parte dos bens inventariados enquanto para o segundo período, são os bens de raiz que assumem a maior parcela de valor. 7 A mudança no padrão de acumulação se deu anteriormente à abolição, quando os grupos mais ricos passaram também a investir em bens de raiz. Ainda com a presença marcante dos escravos na totalidade dos inventários do primeiro período, esse tipo de bem não era comum nos registros de grupos mais pobres. De 81 inventários analisados para os grupos de menor acumulação, apenas oito possuíam escravos. Essa ausência pode evidenciar que o argumento de Frank esteja correto e que sua abrangência seja maior do que a cidade do Rio de Janeiro. Depois de 1830, aqueles que não tivessem comprado seus cativos, encontrariam dificuldades maiores para a aquisição. Oliveira aponta ainda que os grupos mais ricos concentraram mais renda nesse período de 25 anos, enquanto a participação dos grupos mais pobres no número de 5 Idem, p.59 6 Idem, p.91. 7 OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém: relações sociais e experiência da urbanização,são Paulo 1850-1900. Ed. Alameda, 2005, p.80. 3

inventários diminuiu. O valor acumulado por esse último grupo também diminuiu entre esses dois períodos. 8 Ao analisar trajetória de ex- escravos, a autora conclui que, em sua maioria, foram marcadas por exclusão social. Apesar de terem conseguido comprar pequenos bens de raiz, estes se perdiam em dívidas ou acabavam sendo vendidos. 9 Campinas, por ter passado por um período de intenso crescimento econômico e populacional ao longo do XIX, fornece um cenário propício para esse estudo. Durante esse período, passou a ser uma importante produtora de açúcar e café. A expansão mercantil impulsionada pelo segundo escravismo fez com que a cidade despontasse primeiramente como uma importante produtora de açúcar no Brasil na primeira metade do século XIX e, em seguida, como produtora de café. A estrutura municipal também acompanhou a mudança econômica, promovendo um intenso aumento de impostos e novas exigências para se viver na cidade foram criadas através das Posturas Municipais. 10 Estas últimas se constituíam em artigos aprovados pela Câmara de Vereadores sobre diversos assuntos que passaram a regular a vivência, o comércio, o transporte e a criação de animais. Com abrangentes finalidades, regulavam desde construção de casas, calçadas e caminhos públicos até atividades comerciais e ofícios. Estabeleciam cobranças para exercer determinadas profissões e diversas multas, em dinheiro e/ou em tempo de prisão, àqueles que desrespeitassem as exigências. Essa intensa urbanização e a regulamentação da vida foram possíveis devido à mudança da posição da produção de açúcar da vila de São Carlos no mercado internacional. A produção desses gêneros e o número de escravos tornaram-se cada vez mais volumosos. Foi a partir da primeira metade do século XIX, com a proibição do tráfico de escravos, que houve o aumento do preço dos cativos. Esse aumento interferiu diretamente na busca por ascensão e transformou as possibilidades de manutenção de espólio nas décadas seguintes do século XIX. A concentração de renda e o aumento do preço dos cativos alterariam as estratégias que cada geração traçaria na tentativa de manter ou aumentar seu espólio. Para entender quais foram essas estratégias e as dificuldades pelas quais os libertos 8 Idem, p.90-92. 9 Idem, p.128. 10 LAPA, Amaral. Os Cantos e os antros: Campinas: 1850-1900. São Paulo: Editora da Usp; Campinas Editora da UNICAMP, 2008, p.124. 4

passaram, utilizo os registros deixados por Brígida Leite, moradora da Vila de São Carlos e seus descendentes. A família a ser analisada tem como seu primeiro registro a liberta Brígida Leite e foi possível encontrar seus descendentes por quatro gerações, totalizando 39 integrantes dessa família. 11 A análise centrou-se nas relações de parentesco que foram mantidas e construídas ao redor da casa de Brígida. Os membros da família, que, de formas diferentes, acabavam por retornar a esse domicílio ou dependiam dele para sobreviver, serão alvos dessa análise. A pesquisa aqui desenvolvida é feita a partir do método de ligação nominativa, no qual se seguem os nomes dos indivíduos em diversas documentações, acompanhando-os ao longo dos anos. Estendo essa pesquisa através das gerações familiares seguintes de Brígida a fim de comparar as estratégias que construíram. O inventário de Brígida foi feito no ano de 1835 quando encontramos suas filhas já adultas e o último documento utilizado aqui data de 1886. Brígida foi descrita, na Lista de Habitantes de 1829, como chefe de um domicílio na região central da cidade. Essa Lista de Habitantes, também chamada de Mapas ou Maços Populacionais, pode trazer uma série variada de informações ao pesquisador, mas algumas são mais constantes. O nome do casal chefe de domicílio, os filhos, agregados, número de escravos são bastante recorrentes. Por vezes, a cor, a idade e se é casado podem constar. Brígida foi listada como parda e solteira. A partir do cruzamento do nome de Brígida Leite com a base de dados do Tribunal de Justiça de Campinas, foi encontrado seu inventário do ano de 1835. No inventário, constavam os nomes de suas filhas e de seus respectivos cônjuges. Eram três: Thereza Maria, Gertrudes e Bernardina. Essa última, a filha mais nova de Brígida, ainda era escrava. 12 Por ter ainda uma filha cativa, certamente, Brígida era liberta, assim como suas outras duas filhas. Uma vez que Bernardina era a mais nova das irmãs, pode-se inferir que suas irmãs não nasceram de ventre livre. Ao retornar à Lista de Habitantes, pôde-se perceber que moravam muito perto: Quadro explicativo Lista de Habitantes de Campinas ano de 1829 : Fogo nº120 Fogo nº121 Fogo nº122 11 Cf: Anexo Família de Brígida Leite 12 CMU, TJC, Autora: Gertrudes Mello, Ré: Brígida Leite Almeida, Ação: Inventário, Ano: 1835, Of:1º P:1210. 5

Anacleto da Silva 39 C.P Tropeiro Gertrudes 33 Filhas: Antonia 11 Maria 3 Brígida Leite, 40.S.P, costureira Agregada: Maria 14 Francisco Soares 24. C.P Carpinteiro Thereza Maria de Jesus Essa proximidade parece ter sido crucial para a manutenção da renda familiar e da ajuda mútua. As irmãs moravam próximas à mãe. 13 Bernardina, no entanto, não consta na Lista, mas ao longo do inventário, parece ter se movimentado constantemente. Ora residia na casa de sua senhora, ora na morada de sua mãe e irmã. Gertrudes, seu marido e Brígida compartilhavam o mesmo terreno e as melhorias deste. Para esta última, qualquer ajuda poderia ser indispensável. Não possuía muitos móveis, além de um catre velho, uma mesa e um oratório. Suas roupas e joias não foram listadas, pois, certamente, não as possuía ou pouco tinham valor. Tinha um tear de seda, fios, ferros para engomar. Vivia de costuras, como indicado na Lista e verificado em seus bens. Ainda poderia vender tecidos, fazer ou lavar roupas para fora. Não conseguiu acumular muito além do pequeno terreno vizinho a sua filha. Apesar de ser em uma área boa para o comércio e para os serviços, na qual se concentravam muitos comerciantes, lavadeiras e botequins, esse terreno não valia muito mais que 55$000. Todos os trastes juntos não alcançavam a quantia de 25$000. As despesas com seu enterro e com o médico que lhe atendeu totalizaram 10$560 e foram pagas pela sua filha Gertrudes. Não tinha dinheiro a receber e tirando os gastos em seus últimos dias, não deixou dívidas. Para uma mulher como Brígida que quase não tinha como acumular bens e aumentar sua renda, ter suas filhas morando perto, juntamente com seus maridos foi de grande importância. Gertrudes ajudou na melhoria do terreno e arrumou a casinha em que Brígida morava, conseguiu pagar por cuidados médico para sua mãe e lhe deu um enterro que a renda desta última não poderia custear. Brígida e sua filha, provavelmente, viviam no mesmo terreno e compartilhavam planos do presente e para o futuro. Parte dessa propriedade pertencia à Brígida e outra ao marido de Gertrudes que já era falecido em 1835. Nenhuma casa foi listada nos bens de Brígida, mas esse pequeno terreno, algumas madeiras, telhas, janelas, uma porta e ferros foram inventariados. Apesar de oficialmente não possuir nenhuma casa no terreno, a inventariante, Gertrudes, declara na abertura do processo que que tendo 13 AEL, Lista de Habitantes de 1829, p. 261. 6

falecido sua mãe Brigida Leite de Almeida deixou um pequeno terreno nesta vila, assim como deixou uma morada de casas edificadas em terras da suplicante. 14 Brígida pode ter comprado em conjunto com sua filha Gertrudes materiais para arrumarem as casinhas que lá tinham sido construídas. Na divisão de bens, a filha que herdou esses itens de construção foi Gertrudes, que dividia o terreno com sua mãe. As constantes intervenções e planejamentos de pequenas reformas no terreno e na morada feitos em conjunto com Gertrudes fizeram com que Brígida também fosse considerada proprietária. O inventário de Anacleto, marido de Gertrudes e proprietário de parte do terreno no qual foram edificadas as moradas da família não foi encontrado. Porém uma cópia parcial deste documento foi feita no decorrer de um outro inventário de uma das netas de Brígida. 15 Anacleto deve ter falecido no intervalo entre os anos de 1829, em que consta na Lista de Habitantes e de 1835, ano que se procedeu o seu inventário e foi declaro falecido no inventário de Brígida, sua sogra. No inventário de Anacleto, constavam duas propriedades na mesma rua em que Brígida e Gertrudes moravam. A primeira tinha três janelas e uma porta, era coberta de telhas e possuía um quintal com árvores de guarantã, de valiosa madeira, como foi listada. A outra era bem menor, não tinha assoalho, era mais simples e ficava no mesmo terreno em que Gertrudes morou, já que tinha os mesmos vizinhos. Depois da morte da mãe, Gertrudes abrigou sua irmã Bernardina. Esta ainda buscava maneiras de alcançar sua liberdade. Poderia estar juntando pecúlio para tentar comprar sua alforria, pois, foi a primeira a negociar a parte no terreno de sua mãe. Um dos vizinhos, Claudino, se interessou pela compra da parte das herdeiras, pois, o pedaço que tinha sob sua posse era muito pequeno e gostaria de adquirir as partes de suas vizinhas em hasta pública. E, antes do terreno ir à leilão, Bernardina já tinha prometido a sua parte para Claudino, como ele mesmo declarou no inventário. Busquei em todos os inventários de Teodora e registros de cartas de alforria, mas Bernardina não foi localizada. Nem mesmo no inventário de sua irmã é citada. Não há processos, inventário em seu nome, obrigando essa pesquisa a seguir os rastros deixados por Gertrudes. 14 Centro de Memória da Unicamp, Tribunal de Justiça de Campinas, Ação: Inventário, Autora: Gertrudes Mello, Ré: Brígida Leite Almeida, Ano:1835, Of: 3 P:06671, p.02. 15 CMU, TJC, Autora: Eufrosina Maria das Dores, Réu: Mariano Oliveira Bueno, Ação: Inventário, Ano: 1861, Of:3º P:6939. 7

De qualquer maneira, Gertrudes teve um destino diferente de sua mãe. Um pouco mais de meio século após a morte de Brígida, Gertrudes ainda se mantinha no mesmo terreno que um dia compartilhara com sua mãe. 16 Essa afirmação foi possível, pois além de ter se mantido na mesma rua Matriz Nova que depois passou a ser chamada Regente Feijó, manteve também a mesma divisa. Em 1835, sua mãe tinha divisas com o falecido vigário Joaquim José Gomes. Em 1886, o terreno de Gertrudes divisava com os herdeiros da falecida Dona Eufrosina. Esta última herdou o terreno de seu irmão vigário. 17 Gertrudes conseguiu, apesar das mudanças na cidade, manter-se em sua propriedade. Como não há informações sobre a ocupação de Gertrudes, só nos resta especular. Seu marido que era tropeiro pode ter contribuído muito para sua permanência na região central da cidade. Um homem da mesma profissão, branco, poderia ganhar anualmente de 50 a 100$000. 18 Entretanto, seria improvável que vivesse quase sessenta anos depois da morte de seu marido sem exercer qualquer atividade. O comércio pode ter sido uma alternativa para a sua sobrevivência. Sua irmã e vizinha, Thereza Maria registrou sua venda seca por alguns anos. 19 Para Gertrudes, abrir uma pequena venda poderia ser ainda mais fácil e lucrativo, já que seu marido poderia trazer produtos dos destinos que frequentava. Compraria a preços mais baixos do que outras comerciantes da cidade. Antes mesmo de tornar-se viúva, Gertrudes poderia ter se estabelecido como uma pequena comerciante. Seu inventário não avalia bens, exceto sua propriedade, deixando muitas dúvidas sobre o que acumulou durante sua vida. Porém, possuía alguma estabilidade que lhe permitiu pagar as dívidas do enterro, do médico de sua mãe e ainda abrigar sua irmã cativa. O fato de Bernardina vender tão prontamente sua parte no terreno de sua mãe pode evidenciar sua urgência em comprar sua alforria. Se assim o fosse, sua mãe também poderia destinar parte de seus proventos como costureira para essa aquisição. Brígida, portanto, cuja renda já era pequena, poderia ainda mais ficar dependente de Gertrudes, ao ajudar sua filha cativa. Bernardina vivia entre ir e voltar de Capivary, onde sua senhora morava, talvez para manter assim os laços com suas irmãs e mãe. 16 CMU, TJC, Autor: José Henrique Dias, Ré: Gertrudes Mello, Ação: Testamentaria, Ano: 1886, Of:1º P:12766. 17 CMU, TJC, Autora: Ana Eufrosina Gomes, Réu: Joaquim José Gomes, Ação: Inventário, Ano:1831, Of: 1º, P:1396. 18 LHC 1836, p.53 e p.111. Cf: Renda. 19 ACMC, Livro de Licença para Comerciantes, Ano de 1830, p.95v. 8

Essas constantes visitas e hospedagens de Bernardina podem demonstrar que, de alguma forma, precisava de sua família e contava com a ajuda deles. Para Brígida, os gastos com a liberdade de Bernardina podem ter impedido uma acumulação de bens ou a construção de sua casa própria. Entretanto, pôde confiar na ajuda de Gertrudes e de seu genro. Se Brígida não tinha condições de contribuir com a compra da alforria de sua filha ou mesmo com a sua subsistência, Gertrudes se mostrou fonte de ajuda e de abrigo. Permanecer ao lado de sua filha foi fundamental para uma velhice confortável. Brígida, ao se tornar livre, não encontrou as mesmas possibilidades que suas filhas encontraram na Vila de São Carlos. Adoeceu e morreu quando a cidade começava a crescer e se tornar um espaço favorável aos prestadores de serviços. Thereza Maria de Jesus, sua outra filha, também moradora na vizinhança se arriscava em ter uma venda de produtos secos. Para além, era casada com um carpinteiro e Gertrudes com um tropeiro. Ambas filhas de Brígida tinham por volta de 30 anos, no ano de 1829, e encontraram uma cidade favorável aos pequenos comerciantes e aos prestadores de serviço, como Anacleto e Francisco, seus esposos. Para as mulheres egressas da escravidão ou para aquelas recém-chegadas na Vila, o casamento, seja oficial, ou apenas morar junto, poderia ter uma importância fundamental. Casar não era apenas uma união de rendas, mas também de redes de solidariedades. A união poderia agregar um maior número de pessoas dispostas a se ajudarem mutuamente. Assim foi o que aconteceu com Gertrudes, que ao casar com Anacleto, trouxe-o para sua família. Brígida, por outro lado, teve de sustentar suas filhas sozinhas, o que deve ter pesado em seu orçamento, fazendo com que seu acúmulo fosse menor do que se pudesse contar com a ajuda de um parceiro. Em nenhum dos registros de batismo de suas netas em Campinas, iniciados em 1819, foi encontrado um cônjuge para Brígida. Suas filhas, no entanto, ao se casarem encontraram a possibilidade de dividir os problemas familiares e também as despesas. Algumas outras mulheres, quando não eram casadas, ou já eram viúvas, encontravam em suas amigas e familiares a chance de dividir as despesas, o trabalho diário e também seus problemas. Joana Justina, uma comerciante parda que se estabeleceu no bairro da Santa Cruz na década de 20, encontrou em sua vizinha Luíza 9

uma importante parceira. 20 Joana morava ao lado de Bahia, senhor de Luíza. 21 Com o passar dos anos, a comerciante conseguiu ascender e construir a sua casa e mudar-se do quartinho em que morou para um lado mais distante do bairro. No entanto, Luíza, apesar de não ser mais vizinha de sua colega, parece ter sido uma figura constante na vida de Joana, pois esta deixou para sua amiga o mesmo quartinho. Deixou também uma quantia em dinheiro. Tanto compartilhavam suas dificuldades e os problemas de suas vidas que, no momento no qual podiam, ajudavam suas colegas. Não seria diferente com Gertrudes e seus familiares. Já velha e viúva, deixou em seu testamento as suas terras e casas para suas duas netas Maria e Ana Francisca. Apesar de o inventariante não conseguir cumprir esse pedido de Gertrudes, uma maior parte é destinada às netas. Qual seria o motivo que levaria a avó a deixar o bem mais valioso exclusivamente para essas duas netas, ignorando os demais? O testamento de Gertrudes é bem sucinto devido, muito possivelmente, à urgência que sua avançada idade, mais de 90 anos, exigiu naqueles dias anteriores ao seu falecimento. Essa fonte, portanto, não forneceu uma explicação direta, mas a relação de herdeiros no inventário forneceu pistas. Gertrudes teve quatro filhos e apenas dois estavam vivos durante o inventário, Joaquim e Maria Thereza. Dos quatro netos por parte da filha falecida Antônia, apenas um morava na cidade de Campinas. Já Ana e Maria, filhas da falecida Eufrosina, moravam na mesma casa que sua avó. Quando a mãe Eufrosina estava viva, também moravam juntas, todas elas. No inventário de Mariano, marido de Eufrosina, o bem de raiz avaliado é uma parte das duas casas de Gertrudes. 22 Não há citações de aluguéis a serem pagos ou que morassem em outra casa. Há, porém, um requerimento de Eufrosina pedindo para por em arrematação todos os bens a fim de conseguir dinheiro para pagar pela casa de Gertrudes e desta maneira, elas e suas filhas não terem necessidade de morar na rua. Mesmo quando o marido de Eufrosina estava vivo, as três compartilhavam a mesma casa com a avó. Mariano de Oliveira Bueno, pai das meninas, era tropeiro e vivia sem uma casa fixa. Seus cavalos eram divididos entre os outros tropeiros que 20 CMU, TJC, Autor: Antônio Jose Silva Martelinho, Ré: Joana Justina da Santa Cruz, Ação: Inventário, Ano: 1865, Of : 3º, P: 7020. 21 AEL, Lista de Habitantes de 1829, fogo 74 e 75, p. 256. 22 CMU, TJC, Autora: Eufrosina Maria das Dores, Réu: Mariano Oliveira Bueno, Ação: Inventário, Ano: 1861, Of:3º P:6939. 10

trabalhavam com ele, inclusive um irmão cujo nome não foi possível descobrir. Os animais não ficavam na casa de Gertrudes, porque, provavelmente, o terreno não era tão grande para abriga-los. Eufrosina e Mariano devem ter pensado em construir uma casa. Tinham renda para tal, pois quando Mariano faleceu, algumas de suas contas a pagar eram de roupas e artigos de casa que havia feito em dois armazéns da cidade. Essas contas totalizavam um pouco mais de um conto de réis, valor maior do que a casa que Gertrudes morava. Gastavam em roupas, bonecas, enfeites, fazendas, sapatos, mas não compraram uma moradia. Acredito o casal preferiu investir em conforto, roupas que poderiam trazer um status diferente paras as meninas, cortes e linhas usados na costura para venda, como também em animais que facilitariam a vida de Mariano, ao invés de comprar uma morada. Escolheram se manter junto à sogra como uma maneira de se manter na rede de solidariedade. Se o casal decidisse por fazer uma posse ou comprar um terreno deveria ser nas regiões mais marginais da cidade, aonde o preço poderia ser mais baixo. O mesmo fez Joana Justina, amiga de Luíza. Morou de aluguel durante um tempo na região central do bairro da Santa Cruz. Seus vizinhos eram botequins, lavadeiras e cortiços. No entanto, comprou um imóvel na saída para Limeira. Ainda era no mesmo bairro, mas era no início da estrada, mais longe do que tinha acostumado a viver e a fazer comércio, porém, mais barato. Portanto, se Eufrosina e Mariano comprassem alguma propriedade teria de ser longe da sogra. Vale lembrar que Gertrudes morava em uma região muito habitada, na Rua da Matriz Nova e de alta concentração populacional. Conseguir uma casa nessa área poderia ser um pouco mais caro e mais difícil. Por outro lado, comprar uma casa mais longe não seria bom para Eufrosina, pois esta perderia a ajuda da mãe e da tia Thereza, que poderiam auxiliar nos cuidados com as crianças. E parece ter sido essa última a decisão que Eufrosina e seu marido tomaram. Para Eufrosina, morar com a mãe e manter esse laço mais estável tornariam possível a sua subsistência depois da morte de seu marido. Boa parte da renda vinha do trabalho de seu marido como tropeiro e, a partir de sua morte, com o acúmulo de dívidas feitas, a ajuda vinda de sua mãe tornou-se ainda mais preciosa. Não há registros de Eufrosina no comércio em nenhum ano e não constou, em seu inventário, nada a receber. 11

Permanecer perto de sua mãe, tias e irmãs pode ter sido elemento fundamental na trajetória de Eufrosina. Sua irmã também morava perto e a convivência era diária a ponto de seus respectivos maridos conseguirem um dia brigarem e se ameaçarem. Se a filha de Gertrudes tivesse se estabelecido em uma área mais afastada, provavelmente, perto de uma estrada para facilitar o cotidiano de seu marido, teria ficado isolada após a morte desse. Com as dívidas e mais duas meninas para serem criadas, Eufrosina poderia ter caído em uma pobreza da qual não seria fácil a recuperação e, ainda ter perdido a tutela de suas filhas. Entretanto, ao se estabelecer na casa de sua mãe, ajudar esta última na velhice e ser ajudada nos cuidados de suas filhas, Eufrosina construiu e manteve uma rede de solidariedade que a colocou em um patamar econômico melhor do que se estivesse sozinha. Apesar de não ter construído sua própria casa, terminou sua vida morando com sua mãe e com suas filhas donas parciais da casa da avó. Para Gertrudes, hospedar a família de sua filha não deveria ser um problema e poderia significar uma fonte extra de renda no domicílio. Mariano possuía ferros de carpinteiro, mas não exercia tal função. Contratava um escravo para trabalhar na casa de sua sogra. O terreno de Gertrudes tinha uma porção de árvores, não se sabe quantas ao certo, de alta qualidade para fazer estruturas de casa, telhados, pontes. Essas árvores, guarantãs, certamente eram arrancadas e vendidas para aumentar a renda do domicílio. Esse era um costume que parece ter sido comum entre aqueles que sabiam cortar árvores ou podiam pagar por alguém para fazê-lo. O marido de Mariana dos Prazeres, Antônio da Conceição, além de ter uma pequena venda que também era botequim, cortava e rolava madeira. 23 Se disponível a madeira, corta-la poderia ser uma fonte de renda. Mariano aproveitou a madeira disponível no terreno e resolveu investir no trabalho de um escravo para fazê-lo. Dificilmente, o escravo estava sendo usado em algum tipo de construção no terreno de Gertrudes, pois, não há alteração nos imóveis listados no inventário entre os anos de 1835 e 1886. Entretanto, o escravo estava trabalhando por seis meses, quase todos os dias, no terreno de Gertrudes, até a morte de Mariano. Se alguma construção tivesse sido feita durante tamanho período, a propriedade de Gertrudes contaria com 23 CMU, TJC, Autor: Antônio José Conceição, Réu: Lourenço Bento Lima, Ação: Sumaria, Ano: 1808, Of:1º P:00106. 12

mais algum imóvel, fosse esse um quarto, uma casa. No entanto, não haver mudança alguma na configuração espacial pode evidenciar que Mariano e Eufrosina encontraram, de fato, uma fonte extra de renda no terreno de Gertrudes que poderia ajudar na manutenção da família. Aqui, percebe-se que as gerações tem uma relação de interdependência muito intensa. De Brígida a Eufrosina, até Maria e Ana Francisca são quatro gerações de mulheres que ocuparam o mesmo terreno, a mesma casa e que dependiam uma das outras, se estivessem na velhice ou, mesmo, quando moça. Fundamental para que nenhuma geração caísse na pobreza foram as relações de ajuda e solidariedade ao redor da casa que Gertrudes construiu com seu marido e que pode abrigar a todas. A proximidade parece ter sido imprescindível para a formação das redes de solidariedade. Em meio à cobrança de impostos, autuações dos fiscais e, principalmente, ao aumento do preço dos escravos, os libertos e seus descendentes traçaram estratégias importantes para subsistir. Manter-se próximo à família parece ter sido muito importante para a manutenção da subsistência e, principalmente, na economia na compra de um imóvel. Para as gerações que não conseguiram comprar seu cativo, a cidade de Campinas não fornecia condições favoráveis para uma subsistência segura e estável. As fiscalizações e novas posturas oneraram cada vez mais a vida na cidade. A família de Brígida não pode investir em escravos, pois quando o preço dos cativos era acessível, a família ainda contava com um de seus integrantes na escravidão. Em 1836 quando Bernardina consegue um montante de dinheiro, ainda pouco significativo para comprar sua alforria, o preço de escravos começava a crescer intensamente. É significativo que, diferente de suas irmãs, Bernardina deixe de aparecer nos registros dos membros da família. Talvez nunca tenha conseguido se alforriar e tenha sido vendida para algum lugar mais distante que Capivary. As relações que Gertrudes construiu ao redor de sua casa foram essenciais para que boa parte da família conseguisse sobreviver e se ajudar. Sua mãe, irmãs, filhas e netas e seus maridos conjugaram suas rendas, cuidados e trabalho para minimizar as dificuldades de se viver naquele período. A constância dos laços que se formaram ao redor de Gertrudes e de sua casa não se deve exclusivamente ao fato de sua vida ter sido tão longa, quase 90 anos. Acredito que o momento no qual esses indivíduos viviam 13

tornou os laços mais fortes com objetivo de construir um espaço e uma rede segura que proporcionassem, minimamente, uma vida digna. Anexo: Família de Brígida Leite: 14

BIBLIOGRAFIA BERKNER, Lutz The stem family and the development cycle of the peasant household: an eighteenth-century Austrian example The American Historical Review, vol.77, n 2 (Apr., 1972). FRANK, Zephyr. Dutra's World: Wealth and Family in Nineteenth-Century Rio de Janeiro. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2004. LAPA, Amaral. Os Cantos e os antros: Campinas: 1850-1900. São Paulo: Editora da Usp; Campinas Editora da UNICAMP, 2008. MARTINS, Valter. História de Compra e Venda:Mercados e abastecimento urbano em Campinas, 1859-1908.(tese de doutorado, FFLCH, USP, 2001). OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém: relações sociais e experiência da urbanização,são Paulo 1850-1900. Ed. Alameda, 2005. Van der LINDEN, Marcel. Connecting Household History and Labour History, in: van der Linden (ed.), The End of Labour History? [Supplement 1 of International Review of Social History], Cambridge: University Press, 1993, 163-73, p.163. 15