Torre de Babel: quando a novela legitima a violência



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Transcrição:

Torre de Babel: quando a novela legitima a violência Eloá Muniz Resumo Através do projeto de pesquisa sobre recepção da telenovela Torre de Babel, pretendemos analisar a influência da novela no comportamento do telespetador, considerando o caráter ativo do receptor. Como objeto de estudo escolhemos o capítulo da novela Torre de Babel que foi exibido no dia 21 de setembro de 1998, às 21h20min, pela Rede Globo de Televisão. Especificamente a cena escolhida foi a do conflito estabelecido entre os personagens Sandrinha (Adriana Esteves) e Alexandre (Marcos Palmeira). A televisão é considerada hoje o meio de comunicação de massa mais poderoso e mágico. A condição que a televisão tem de comunicar pela imagem e de conviver com as pessoas na intimidade de suas casas, torna-a um veículo com força de comunicação muito mais através do emocional e do afetivo do que pelo racional. Assim, estudamos os efeitos que esta cena de violência produziu nas relações familiares e nas pessoas em geral. A metodologia utilizada foi através de bibliografia, clipagem em mídia impressa para a contextualização do tema. O que se constatou foi surpreendente sob o ponto de vista das relações femininas, pois a maioria das mulheres considerou que a personagem Sandrinha deveria mesmo ter sido agredida. Isto constata o caráter machista da sociedade e o reforço desta característica pela novela Torre de Babel. Palavras chaves: comunicação, televisão, telenovela, sentido. Rede Globo de Televisão transmitiu no dia 21 de setembro último, às 21h30min, o capítulo da telenovela Torre de Babel, com cenas do conflito estabelecidas entre os personagens Sandrinha (Adriana Esteves) e Alexandre (Marcos Palmeira). A cena exibia com forte apelo emocional o espancamento, característica da violência doméstica, evidenciando o descontrole vivenciado pela personagem Alexandre. Primeira seqüência: A cena desenrola-se a partir da realização de uma festa black-tie para apresentação da personagem Bina à sociedade paulista. Os personagens movimentam-se com esmero e requinte. Sandrinha e Alexandre encontram-se na festa. O personagem Lucas entra em cena criando o triângulo amoroso. Sandrinha se insinua a Alexandre e é rejeitada. Ela se afasta e vai ao encontro de Lucas.

Segunda seqüência: Alexandre aparece sempre muito triste (close), ao mesmo tempo em que Sandrinha é assediada por Lucas. Sandrinha convida Lucas para irem ao escritório da casa, onde acontece a festa. Ela tenta explicar-lhe que não quer nada com ele, e que o convidou somente para fazer ciúme ao marido. Terceira seqüência: No momento que Lucas tenta beijar Sandrinha, Alexandre entra na sala. Sandrinha: Oi! Xandi! Alexandre: Quem é esse cara? Lucas: Você que é o marido dela? Legal... Sabe quem sou eu? Eu sou o cara que consolou a tua mulher, lá no Rio. Lembra? Você deixou para vir aqui para São Paulo. Eu sou o cara que fez a lua de mel no teu lugar e eu acho que ela gostou. Ela me chamou aqui de novo. Ela me convidou. Sandrinha: Mentira! Que é isso? Alexandre: Cala a Boca. Lucas: Ela disse a hora para eu vir aqui e tudo. Agora você me diz uma coisa. Ela está a fim de mim ou não está? Alexandre começa a agredi-lo, esmurrá-lo e, batendo, vai tirandoo do escritório. Lucas rola pelo chão e é retirado da festa. Alexandre volta-se à Sandrinha: Alexandre: Você o que me diz? Sandrinha: Que você é um canalha! Ele então a espanca publicamente na festa. Depois sai da casa indignado. Sandrinha, chorando, humilhada sobe para o quarto da amiga (Bina) na casa. Termina o bloco. Entra a vinheta e o comercial.

Neste episódio, dois aspectos causaram estranheza aos telespectadores mais críticos das telenovelas. O primeiro aspecto foi a maneira pouco racional de resolver os problemas afetivos demonstrados por Alexandre, pois um homem que sempre foi bom filho, bom irmão, bom amigo, excelente profissional (advogado), de repente, não consegue resolver um problema afetivo familiar sem o uso da violência. O segundo aspecto foi a reação do público feminino em relação ao fato. A maioria das mulheres considerou o espancamento de Sandrinha como merecido, que ele tinha razão para agredi-la. Isso constata o caráter machista da sociedade, legitimado e reforçado pelo forte apelo ideológico da novela Torre de Babel. Para entendermos o que acontece com o telespectador é necessário considerarmos algumas características básicas das telenovelas, o gênero de programação televisiva que mais fascina o público brasileiro. Segundo os parâmetros da Rede Globo, a telenovela é feita para um telespectador definido como: mulher, casada, pouco mais de 30 anos, católica. Vai uma vez por mês ao cabeleireiro, faz as unhas em casa e acompanha o marido ao cinema nas noites de sábado... é compreensiva, do filho espera que se forme; da filha, que se torne aliada. Entretanto, as pesquisas do IBOPE demonstram uma variação neste perfil, onde os telespectadores também são do sexo masculino e pode ou não pertencer a uma classe social culturalmente privilegiada para a qual existem outras formas de lazer. A televisão trabalha, com dois sistemas básicos de comunicação que passam para sua linguagem os fatos da realidade que pretende transmitir. São os signos e os clichês. Os signos atuam em dois lados: na mente do telespectador e no produto (telenovela) de comunicação que o telespectador vê, pois a telenovela é realizada por pessoas que também elaboram os pensamentos como signos. A produção sígnica só tem efeito se realiza essa dualidade de forma plena. O clichê é o segundo mecanismo básico da linguagem da televisão. Contrariamente ao signo, em que o telespectador não sente a violência das mensagens televisivas porque mantém um escudo contra elas, aqui, ele se entrega à estória, sente emoção, se entristece, chora, sente saudade, vive com a personagem. Ou seja, se na linguagem dos signos ele se separa da emoção, na linguagem dos clichês ele se funde com ela, se entrega a ela. O que distingue essa fusão dos sentimentos reais, das emoções verdadeiras é seu caráter de clichês, que significa que as tristezas, as dores, as lágrimas relembram inconscientemente ao telespectador momentos emocionalmente fortes de sua vida. Desta maneira, a verossimilhança do enredo da telenovela se insere na vida quotidiana do espectador como seu espelho. A telenovela cria uma ritualidade de comportamento, legitimando certos valores metafísicos, éticos ou estéticos, ao mesmo tempo em que normatiza e impõe naturalmente a ordem das coisas. A televisão é ritual porque é ligada sempre à mesma hora, para se assistir os mesmos gêneros de programas. A TV coloca ordem na vida das pessoas. Uma ordem verticalizada que passa a sincronizar o tempo do telespectador e sua vida passa a ser ordenada simbolicamente pelo veículo. A novela faz parte deste processo de ordenação, quando se apresenta ao público de forma seriada criando um espetáculo polissêmico a cada dia e a cada capítulo. Portanto, o campo de ação simbólica da televisão está no vídeo. E neste campo se dá a apropriação simbólica da mente do telespectador. Na medida em que a novela é seriada e está lá esperando pelo telespectador, no mesmo lugar e no mesmo horário diariamente, ela proporciona a tranqüilidade e a

segurança da rotina, ao mesmo tempo em que ela se revela fascinante pela novidade de cada capítulo. Assim, a cena de traição e das pequenas maldades da personagem vão se construindo capítulo a capítulo, num sentido único, qual seja, a unanimidade de que a Sandrinha mereceu ser espancada. Não há dúvidas, pois a televisão mostrou ao longo dos capítulos as imagens e elas não deixaram dúvidas quanto à significação das ações. Os argumentos são concludentes, a novela é o espelho do real. Está, portanto, legitimada a violência: apanhou porque mereceu. A televisão fascina as pessoas muito mais que as outras formas de comunicação. Ela introduz uma nova linguagem, que inicialmente seduz o telespectador e depois é incorporada por ele. Desta maneira ela influencia e agrega novos hábitos de recepção e percepção da sociedade e da cultura. Mostra o digno e o indigno de imitação, tudo mesclado, de forma esboçada e ambígua, porém sinalizando sempre a significação. Não dizem o que devem ou não fazer, porém, reproduzem o feito e o pensado, e só a repetição sugere tratar-se de algo que é correto fazer. O mito, para explicar o presente partindo de um passado, tem acontecido sempre e em todas as épocas, conecta com as experiências primárias sobre o acima e abaixo, dentro e fora, claro e escuro, e opera com ele, como algo viável e estabilizado. A telenovela possui um discurso narrativo verossímil, não tem compromisso com a verdade, mas, com o fingir perfeito. O espelho da realidade, a história contada através dos personagens filtrados pela imagem icônica. A televisão através da novela impõe uma autoridade narrativa, onde seus personagens, pela dramatização, tornam-se instrumentos da classe dominante para divulgar sua ideologia e estabelecer a identificação com o público. Esta identificação se dá a partir dos vários personagens e seus contextos, pois cada núcleo representa um segmento da sociedade com suas características, o que, grosso modo, poderíamos estabelecer uma analogia com a estratificação social e seus interesses ideológicos. Ela interfere na sociedade através da cultura popular acionando o comportamento dos personagens e influenciando diretamente na segunda realidade do telespectador, uma vez que ele está vinculado afetivamente ao veículo. A cena novela que foi ao ar na segunda-feira, 21 de setembro, mexeu com o país. Embora a quase unanimidade que concordou com a agressão, também concorde que foi exagero, não precisava tanto. Entretanto, a Sandrinha já tinha aprontado tantas que a agressão se justificou, principalmente por que a personagem de Alexandre é o galã e a Sandrinha é a vilã. Novamente o contraste: o bom e o mau, o príncipe e bruxa ricos e o pobre, o chique e o brega... O ato de ver televisão é um ritual já tão assimilado culturalmente pela família moderna brasileira, que um novo padrão de comportamento foi criado e desenvolvido a partir do hábito cotidiano de reunirem-se para assistir televisão. Este novo comportamento da família que se emociona diante da telinha, abrange todas as classes sociais, pois é um fenômeno que atinge pela emoção, pela vivência dos dramas, mobilizando os membros da família pela identificação da realidade que cada um deles tem escondida intimamente com a realidade mostrada na televisão. Dessa maneira, no intervalo, quando a cena de violência e espancamento termina e entra o comercial, a família reunida começa a discutir o tema pautado pela televisão. Entretanto, a construção da narrativa é de tal maneira engendrada que somente um viés do fato é discutido, qual seja: a Sandrinha mereceu apanhar! O que resta então para discutir é o quanto: se muito ou pouco. O público feminino timidamente conclui que não precisava tanto... A discussão é interrompida porque logo volta à seqüência da telenovela e não se pode perdê-la. As cenas veiculadas em capítulos, com uma visão orientada a um sentido específico, reforça e legitima uma ação ideologicamente machista que transcende a vontade masculina. Mesmo que os homens não quisessem ser violentos, eles acabariam se tornando por pressão da ideologia social, como forma de provarem sua masculinidade. No entanto, o mais polêmico é o fato de que a televisão banaliza a violência de tal maneira que o telespectador acaba por considerar normais estas cenas, não se sensibilizando mais, pois, se está na televisão é verdadeiro e normal: pertence ao cotidiano.

A ação espetacular das cenas de televisão hoje traz algumas situações confusas para o telespectador quando ele não define mais se a informação veiculou no Jornal Nacional, na novela Torre de Babel ou no Programa do Ratinho, posto que a corrida pelo IBOPE, diminuiu muito a fronteira entre o real e a fantasia; o espetacular e o grotesco; a vida e a banalização da vivência. Assim, a televisão fascina cada vez mais as pessoas e as torna sempre mais solitárias, pois a cada dia preocupam-se menos com seus vizinhos e seus amigos, para preocuparem-se com os problemas dos personagens da televisão. A relação com a televisão é mais fácil, pois os telespectadores possuem o controle da ação ao alcance da mão, se estiver incomodando é só desligar. Com a relação humana é diferente, ela é real. Não se pode desligar a vida real. O mundo moderno impôs às pessoas uma solidão distinta - a solidão existencial. E a televisão é o produto que vem ao encontro da satisfação desta necessidade, através da entrega diária de uma mensagem já elaborada pronta a ser consumida; não precisa pensar, basta descansar sua mente em frente à televisão e este ficar silencioso à frente da telinha o fascina, porque assiste e participa dos diálogos sem precisar responder, nem comprometer-se. É uma rotina tranqüilizadora, acessível como lazer e que traz segurança e relaxamento. A família reunida, o serão sem ter que contar histórias, porque a televisão faz isso através da novela, e muito melhor do que qualquer ser humano poderia fazer. A televisão se relaciona com o telespectador através da sua multiplicidade de gêneros. Atua, ora para definir e reforçar os valores defendidos pela classe dominante, ora para comunicar ao espectador posições dos vários segmentos da sociedade, tanto em valores éticos e estéticos, como dos interesses dos grupos sociais, ou ainda, em termos de mostrar os problemas universais que envolvem e afligem o ser humano. A telenovela funciona como uma catarse social que substitui a contestação e a reflexão pela anestesia e fascínio que a televisão provoca através da sedução pela imagem esteticamente composta e ritualizada. Assim, a novela elabora uma nova ordem simbólica e apropria-se do tempo e do espaço do telespectador, criando em sua vida quotidiana um vínculo e uma relação comunicacional com o veículo televisão que possibilita o reforço e a legitimação das ideologias de interesse das classes sociais. Bibliografia FISCHER, Rosa M. Bueno. O mito na sala de jantar. Porto Alegre: Movimento, 1984. LEAL, Ondina F. Leitura social da novela das oito. Petrópolis: Vozes, 1986. SOUSA, Mauro Wilton de (org.). A deflagração do sentido. Estratégias de produção e de captura da recepção". In Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense, 1995. MARCONDES FILHO, Ciro. Televisão: a vida pelo vídeo. São Paulo: Moderna. 1988. OROZ, Silvia. Melodrama: o cinema de lágrimas da América Latina. Rio de Janeiro: Rio Fundo Ed., 1992. PROSS, Harry. La violencia de los símbolos sociales. Barcelona: Anthspos, 1989.. Estructura simbólica del poder. Barcelona: Gustavo Gili, 1980.