SERVIÇO SOCIAL, QUESTÃO SOCIAL E GÊNERO: ALGUMAS REFLEXÕES A PARTIR DA FORMAÇÃO E INTERVENÇÃO PROFISSIONAL



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Transcrição:

DOI: 10.4025/4cih.pphuem.729 SERVIÇO SOCIAL, QUESTÃO SOCIAL E GÊNERO: ALGUMAS REFLEXÕES A PARTIR DA FORMAÇÃO E INTERVENÇÃO PROFISSIONAL Vanda Micheli Burginski Universidade Federal do Tocantins UFT A questão social é a referência para a ação profissional do assistente social, uma vez que as expressões geradas e engendradas por ela se constituem enquanto objeto dessa ação. A questão social enquanto objeto do Serviço Social, traz à baila à reflexão de como a sociedade capitalista organiza a produção da vida material/social assentada na divisão social do trabalho, cuja apropriação da riqueza socialmente produzida é injusta. Nesse sentido, abordar a questão social, sobretudo, implica suscitar a contradição entre capital e trabalho, posicionando-se criticamente a esse modo de produção, desvelando a raiz das desigualdades sociais, que se encontra na apropriação da riqueza pela burguesia, cuja acumulação de capital atinge escalas cada vez maiores na contemporaneidade, moldando um cenário de expansão de pobreza e miséria, acirrando cada vez mais o antagonismo entre a classe trabalhadora e a classe detentora do poder econômico. O Serviço Social se consolida enquanto profissão na década de 30 no Brasil em virtude da organização da classe operária, diante do desenvolvimento econômico brasileiro pela via da industrialização, o que configurou nas condições concretas para o surgimento dos antagonismos entre capital e trabalho. Compartilhando dessa análise exógena a respeito da origem do Serviço Social é preciso enfatizar que se trata de uma profissão socialmente necessária, ou seja, a princípio surge atrelada ao poderio do Estado, onde os assistentes sociais tinham como norte uma formação profissional que buscava a capacitação de assistentes sociais dotados de saberes técnicos com o objetivo de intervir na realidade vivenciada pela classe trabalhadora, através das políticas criadas tanto pelo Estado como pela iniciativa privada com viés da neutralidade e valores cristãos baseados na prática social da igreja católica. Nas duas últimas décadas do século XX, o Serviço Social Brasileiro tem se fortalecido a partir de um acúmulo teórico-metodológico, potencializado pela produção acadêmico-científica, possibilitando a mobilização e a formação profissional em torno de um projeto ético-político profissional, que tem em seu núcleo o reconhecimento da liberdade como valor central. Essa liberdade é concebida historicamente, como possibilidade de escolha

5090 entre alternativas concretas, daí um compromisso com a autonomia, a emancipação e a plena expansão dos indivíduos sociais (NETTO, 2006). É notório o comprometimento desse projeto profissional com um projeto societário que visa à construção de uma nova ordem societária sem dominação e exploração de classe, etnia e gênero. Nessa direção, tal projeto compactua com a defesa intransigente dos direitos humanos, na recusa do autoritarismo, do arbítrio e dos preconceitos. Nesse sentido, a ruptura com o Serviço Social conservador no âmbito acadêmico trouxe à dimensão da formação profissional a hegemonia da teoria crítica de bases marxista e marxiana, exigindo do profissional uma leitura crítica da sociedade capitalista no contexto atual. No cenário contemporâneo a organização da vida econômica tem profundos impactos na subjetividade, conformando uma cultura política que tende a reforçar os interesses do capital a partir do conservadorismo que reforça preconceitos e julgamentos ancorados em estereótipos que se expressam na vida cotidiana em condições concretas de exploração e subordinação: como a violência de gênero, a violência institucional, trabalho precarizado feminino, a violência sexual, todas elas perpassadas pela dimensão de classe. As configurações históricas que vão se delineando a partir da contradição fundamental capital e trabalho mostram-se dialeticamente numa arena de disputa política, de distintos interesses de classes perpassada pelas dimensões culturais, de gênero e etnia. É a partir da leitura da realidade que tem como parâmetro a Questão Social que as relações de gênero engendradas no âmbito da cultura e reproduzidas/socializadas/continuadas pelas formas de convivência no capitalismo, transformando diferenças étnicas e sexuais em desigualdades sociais. A dimensão de gênero/etnia que se manifesta na cultura, se mostra presente nas expressões da questão social contemporânea e tem se apresentado de forma bastante complexa, requisitando do/da profissional, segundo IAMAMOTO (2005) um banho de realidade brasileira, munindo-se de dados, informações e indicadores que possibilitem identificar as expressões particulares da questão social, assim como os processos sociais que as reproduzem. No caso da realidade brasileira é preciso levar em conta que as condições históricas para a acumulação da riqueza nacional se deram a partir da escravização dos negros em geral e das mulheres negras em particular. Abordo as mulheres negras em particular, pelo fato de que não houve só uma apropriação da força de trabalho dessas mulheres, houve também historicamente uma apropriação sexual e, portanto, subordinação de gênero aliada à sua condição étnica.

5091 Na contemporaneidade brasileira, essa herança cultural se manifesta a partir de uma dimensão simbólica que influencia na restrição das ofertas de emprego às mulheres negras. Segundo pesquisas realizadas por Diva Moreira (apud CARNEIRO, 2002) mostra que a dimensão simbólica, processada no âmbito da cultura se manifesta em desigualdades, em que as mulheres negras se casam mais tardiamente, têm mais dificuldades em contrair núpcias caso o parceiro morra ou as abandone e encontram mais dificuldades de acesso ao que os demógrafos chamam de mercado afetivo. As relações de gênero perpassam a vida cotidiana e se materializam na subordinação da mulher pelo homem. Pensar em gênero requer entender a forma como meninos e meninas são socializados/educados e como a sociedade define papéis sociais a serem desempenhados por homens e mulheres, a partir do sexo biológico (macho e fêmea). É incontestável que todas as mulheres são afetadas por essa subordinação, porém, esse fenômeno apresenta-se de maneira diversa, levando em consideração a classe social, a situação econômica de cada país e a herança cultural de cada sociedade. As formas como as mulheres vivenciam essas discriminações, são abordadas por VIEZZER (1989): A dimensão de gênero, no entanto, está presente nas contradições de classe e de etnias e os demais tipos de relações sociais. Por isso uma mulher pobre vivencia duas formas específicas de discriminação e exploração: por ser mulher, por ser pobre (enquanto gênero e classe). Uma mulher negra ou índia sofre uma tríplice forma de subordinação: por ser mulher, por ser pobre, e por ser negra ou índia (gênero, classe e etnia). E esses exemplos servem para demonstrar, mais uma vez, que a subordinação da mulher ao homem varia de forma segundo cada situação, mas está presente (VIEZZER, 1989, p. 116). Os exemplos acima elencados por VIEZZER (1989) colaboram com nossa reflexão acerca das dimensões de gênero e etnia presentes nas expressões da questão social. A grande maioria das mulheres estão inseridas nos empregos mais precários e flexibilizados, recebem baixos salários, vivem dupla jornada de trabalho, porque acabam sendo responsabilizadas pelos afazeres domésticos e cuidado com os filhos, como sendo algo natural ao sexo feminino. Sobre a questão das jornadas de trabalhos desempenhadas pelas mulheres, é necessário trazer as brilhantes contribuições de SAFFIOTI (1987): A socialização dos filhos, por exemplo, constitui tarefa tradicionalmente atribuída às mulheres. Mesmo quando a mulher desempenha uma função remunerada fora do lar, continua a ser responsabilizada pela tarefa de preparar as gerações mais jovens para a vida adulta. A sociedade permite à mulher que delegue esta função a outra pessoa da família ou a outrem expressamente assalariado para este fim (SAFFIOTI, 1987, p. 8).

5092 A responsabilidade última pela casa e pelos filhos é delegada ao sexo feminino, tornase clara a atribuição, por parte da sociedade, do espaço doméstico à mulher. Assim, por maiores que sejam as diferenças de renda encontradas no seio do contingente feminino, permanece esta identidade básica entre todas as mulheres. Mesmo a mulher trabalhando fora o aspecto da manutenção do espaço doméstico, continua sendo uma atribuição essencialmente feminina. Quando a mulher ingressa no mercado de trabalho e remunera outra mulher para realizar os afazeres domésticos, acaba se desincumbindo em parte dessa função. O mesmo não acontece com as mulheres que ocupam os serviços precarizados e mal remunerados. Além de realizarem suas tarefas fora do ambiente doméstico, quando retornam a este, vivenciam dupla jornada de trabalho. Essa divisão sexual do trabalho tem imputado às mulheres uma carga maior de atividades, fazendo-as realizarem jornadas duplas até triplas de trabalho. Nesse sentido, o trabalho pela manutenção da família, realizado pela mulher, que garante a reprodução da força de trabalho para a perpetuação do sistema capitalista é invisível e é socialmente desvalorizado pelo fato de ser trabalho feminino e não ser remunerado. Os estereótipos sexuais que afirmam esses papéis sociais começam a ser formados dentro da família e é no cotidiano em que os filhos vão recebendo os primeiros ensinamentos, e vão internalizando os valores dos demais membros, por isso que a família reproduz os valores culturais, interferindo na identidade social: No seio da família, a dominação masculina pode ser observada em praticamente todas as atitudes. Ainda que a mulher trabalhe fora de casa em troca de um salário, cabe-lhe realizar todas as tarefas domésticas. Como, de acordo com o modelo, os afazeres domésticos são considerados coisas de mulher, o homem raramente se dispõe a colaborar para tornar menos dura a vida de sua companheira. Não raro, ainda se faz servir, julgando-se no direito de estrilar se o jantar não sai a seu gosto ou se sua mulher não chega a tempo, trazendo-lhe os chinelos (SAFFIOTI, 1987, p.50, grifos meus). A cultura que em última instância determina o que é ser homem e o que é ser mulher conforma uma realidade de exclusão particular das mulheres. Pelo fato de o homem não ser socializado para desempenhar funções como o cuidado dos filhos e se sentir responsável pela família, tem gerado uma conformação familiar, onde a mulher tem assumido sozinha essa tarefa. Aliada a sua condição de gênero a mulher também vivencia uma realidade de pobreza e exclusão e de acordo com SAFFIOTI (1987). De modo geral, a supremacia masculina perpassa todas as classes sociais, estando também presente no campo da discriminação racial. Ainda que a supremacia dos ricos e

5093 brancos torne mais complexa à percepção da dominação das mulheres pelos homens, não se pode negar que a última colocada na ordem das bicadas é uma mulher. Na sociedade brasileira, esta última posição é ocupada por mulheres negras e pobres (SAFFIOTI, 1987, p. 16). As que mais sofrem os efeitos da hierarquia social são as mulheres pobres-negrasíndias. A desigualdade de classe, pedra fundamental do sistema capitalista se fortalece também a partir das desigualdades geradas no âmbito da cultura: de gênero e etnia. A lógica social engendrada pelo capitalismo é incompatível com a igualdade de classes, não admitindo tampouco, a igualdade entre as diferentes raças e entre as distintas categorias de sexo. Nesse sentido, na ordem das bicadas, a mulher negra se encontra numa posição social desprivilegiada, ocupando os espaços mais precarizados no mercado de trabalho. Pesquisas realizadas por Elza Berquó (2002) a respeito das chefias femininas brasileiras revelam que as chefias negras femininas monoparentais representam 71.9%. As chefes negras também possuem escolaridade mais baixa que as chefias brancas destacando-se a alta proporção de analfabetas, 27,6%. Famílias que se encontra em estado de vulnerabilidade social, são as que possuem um perfil, a saber: são chefiadas por mulheres negras. Portanto, a pobreza gerada pela Questão Social, carrega em suas expressões a desigualdade de classe, mas, sobretudo, carrega também desigualdades de gênero e étnicas. Grande parte das mulheres brasileiras encontra-se desempregadas ou quando estão trabalhando se inserem nas profissões mais precarizadas e flexibilizadas, onde não há vínculo empregatício. Estão, sobretudo, privadas ou fragilizadas por vínculos afetivos, vivenciam em seu cotidiano várias discriminações. Pesquisas realizadas por Diva Moreira (apud CARNEIRO, 2002) vêm constatando essa realidade, em que a discriminação de gênero/étnica tem sérios rebatimentos na vida afetiva e familiar das mulheres, especificamente as mulheres negras, colocando que a rejeição dessas mulheres no mercado afetivo se manifesta nas nossas adolescentes e jovens que se iniciam precocemente na sexualidade e engravidam motivadas pela vontade de cativar o parceiro e de afirmar com ele uma relação duradoura, se possível eterna. O sonho da maioria das nossas mulheres é casar-se, ter um lar, filhos, um marido e pai carinhoso (MOREIRA, apud CARNEIRO, 2002, p.177). Utilizamos os termos, privadas ou fragilizadas ao atribuir às características dos vínculos afetivos das mulheres, por constatarmos que as mulheres ou vivem sem um companheiro, ou quando vivem com ele, mesmo sendo a chefe de família, acabam se encarregando sozinha da educação dos filhos e pela manutenção da vida doméstica. Nesse

5094 sentido, BERQUÓ (2002) traz algumas contribuições para conceituar o que tem chamado de chefia feminina: Uma chefia feminina tem vários significados: uma mulher solteira, separada ou viúva, com filhos, tendo ou não parentes e/ou agregados em casa; mulher solteira, separada ou viúva, sem filhos morando em casa, ou porque não os teve, ou porque, adultos, já saíram de casa ou já faleceram, tendo ou não parentes e/ou agregados vivendo no domicílio; mulher solteira, separada ou viúva, morando sozinha, ou mulher casada chefiando a família mesmo tendo um marido ou companheiro em casa (BERQUÓ, 2002, p. 246). O fenômeno do aumento das chefias femininas tem sido generalizado no Brasil e ocorre nas cinco regiões do país e ainda segundo BERQUÓ (2002) a região Centro-Oeste destaca-se, por ter um aumento de chefias femininas de 35% nos últimos dez anos. Tal fenômeno tem chamado atenção pelo fato de que uma certa independência econômica da mulher em relação ao seu companheiro não necessariamente tem levado à independência emocional. Tal abordagem é necessária para o Serviço Social, uma vez que se trata de uma profissão interventiva com vistas à transformação da realidade social. O assistente social em seu cotidiano profissional depara-se com a pobreza humana, tanto material como subjetiva. Pois, as expressões concretas de miséria não são apenas materiais, ou de acordo com as abordagens de Robert Castel (1998) tais misérias materiais chegam a tal ponto que atingem também o espírito. É nesse sentido, que é fundamental, mesmo que em linhas gerais destacar a reflexão acerca do objeto de intervenção do Serviço Social que é a questão social e suas intersecções com as relações de gênero, uma vez no cotidiano profissional, tanto nas instituições públicas quanto privadas, o profissional irá deparar-se com as desigualdades de gênero e, portanto, essa realidade demanda respostas qualificadas do assistente social. CONSIDERAÇÕES É notório o comprometimento do código de ético do assistente social com um projeto societário que visa à construção de uma nova ordem societária sem dominação e exploração de classe, etnia e gênero. Nessa direção, tal projeto compactua com a defesa intransigente dos direitos humanos, na recusa do autoritarismo, do arbítrio e dos preconceitos. A intervenção do assistente social na realidade social requer a desconstrução de referências culturais dominantes internalizadas no decorrer da sua socialização, formação educacional e cultural. Implica também na construção de valores éticos em direção à

5095 afirmação dos direitos humanos e sociais, através de uma formação educacional voltada na reflexão crítica a respeito da realidade social, fundamentadas a partir dos pressupostos contidos no Projeto Ético-Político. Ao enfocar as relações de gênero, particularmente é preciso ater-se que os preconceitos e estereótipos de gênero são transmitidos culturalmente, de forma a serem aprendidos, internalizados e reproduzidos. A desnaturalização do ser mulher e ser homem, onde o aspecto biológico não é capaz de explicar os diferentes comportamentos de homens e mulheres, que são produtos sociais são explicitados pelos estudos de gênero. Nesse sentido, é necessário que o assistente social tenha uma formação profissional voltada à discussão acerca das relações de gênero no sentido de apreender a realidade a partir da totalidade social, determinada pela luta de classes e recortada pelas desigualdades de gênero, onde a mulher encontra-se em situação de subalternidade. Com a adoção do Estado Mínimo no Brasil e do continuísmo da opção política neoliberal, as mulheres pobres vivenciam em seu cotidiano familiar os efeitos dos retrocessos dos direitos sociais. Nesse sentido, é preciso abordar os efeitos da adoção dessas políticas para à vida e o trabalho das mulheres, particularmente, as que são chefes de família. Esse estudo, não termina por aqui, trata-se de uma reflexão inicial que visa suscitar reflexões para posteriores estudos e aprofundamentos sobre a temática. Referências BERQUÓ, E. Perfil demográfico das chefias femininas no Brasil. In: BRUSCHINI, C. & UNBEHAUM, S.G. (orgs). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: FCC: Ed. 34, 2002. CARNEIRO, S. Gênero e Raça. In: BRUSCHINI, C. & UNBEHAUM, S.G. (orgs). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: FCC: Ed. 34, 2002. CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998. IAMAMOTO, M. V. Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez, 2007. NETTO, J. P. A construção do Projeto Ético-Político do Serviço Social. In: MOTA, A. E...[et al]. Serviço Social e Saúde: formação e trabalho profissional. São Paulo: Ed. Cortez, OPAS, OMS, Ministério da Saúde, 2006. SAFFIOTI, H. O Poder do Macho. São Paulo: Cortez Editora, 1987. VIEZZER, M. O Problema não está na mulher. São Paulo: Editora Cortez, 1989.