CONSIDERAÇÕES SOBRE AS CONTRIBUIÇÕES DA PINTURA PARA A LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA



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IV ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura 28 a 30 de maio de 2008 Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador-Bahia-Brasil. CONSIDERAÇÕES SOBRE AS CONTRIBUIÇÕES DA PINTURA PARA A LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA Juciara Maria Nogueira Barbosa 1 O presente trabalho tem como objetivo apresentar algumas contribuições da pintura para a linguagem cinematográfica, destacando obras de renomados pintores, executadas entre o século XVI e o final do século XIX e evidenciando, a partir das pinturas, a presença de planos, enquadramentos e ângulos que passaram a ser utilizados no cinema. Trata, também, do impacto da fotografia sobre as artes plásticas e do surgimento do cinema no período em que alguns artistas buscaram derrubar os ícones da pintura baseada nos referenciais anteriores e apontaram novos caminhos para a arte moderna. Palavras-chave: Arte. Pintura. Cinema. Linguagem. Intrinsecamente ligadas à história humana, ao longo dos séculos as mais diversas manifestações artísticas dialogaram entre si, propiciando, ora de forma notável e notória, ora de forma singela e tênue, impactos sobre expressões artísticas que não devem ser ignorados. Ainda hoje, no início do século XXI, pode-se encontrar no cinema importantes contribuições da pintura, que com seus planos, enquadramentos e ângulos, comumente estampados em obras dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, ajudaram na construção do cinema enquanto linguagem. Assim, as reflexões apresentadas neste artigo surgiram a partir das considerações apresentadas por Marinyze Prates de Oliveira, na seguinte afirmativa: por sua capacidade de apresentar a imagem em movimento, obedecendo, inclusive, às linhas de perspectiva que a pintura renascentista nos habituou a considerar como forma natural de percepção dos objetos, o cinema, como nenhuma outra forma de expressão, alcançou o efeito da impressão de realidade, fazendo com que as imagens projetadas na tela se assemelhassem de forma quase perfeita ao espetáculo oferecido aos nossos sentidos pelo mundo real (OLIVEIRA, 2002, p. 24). 1 Professora do curso de Comunicação Social da Universidade Católica do Salvador, foi professora substituta de História da Arte na UNEB (1998-1999) e de História da Arte Brasileira na UFBA (2006-2007). Mestre em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes - Universidade UFBA. E-mail: juciaranogueira@yahoo.com.br

De fato, no cinema se encontra, de forma arrebatadora e convincente, o uso da perspectiva artificialis, que surgiu e se desenvolveu no Renascimento. Dizia-se, naquela época, que por ser um sistema de representação fundado nas leis científicas (leia-se euclidianas) de construção do espaço, a perspectiva renascentista deveria nos dar a imagem mais justa e fiel da realidade visível (MACHADO, 1984, p. 63). A perspectiva, portanto, procurava corresponder à visão da natureza mais próxima daquela que o olho humano obtém através do seu mecanismo óptico (Ibid.). O mural A última ceia, pintado por Leonardo da Vinci no Refeitório da Igreja de Santa Maria delle Grazie, em Milão, é um conhecido exemplo do uso da perspectiva no período do Renascimento. Ilustração 1 Leonardo da Vinci. A última ceia (1495-1497) Mural. 460 cm x 880 cm. Refeitório da Igreja de Santa Maria delle Grazie, Milão (Itália). Aqui, podemos observar o que afirma Arlindo Machado: a sua visão uninocular tem por função circunscrever a posição do sujeito; o espaço que ela constrói é sempre o espaço centralizado, cujo núcleo coincide com o olho que o produz (Ibid., p. 73-74). Esta abordagem, igualmente destacada por Arlindo Machado com relação ao fotógrafo e sua câmera na produção da imagem fotográfica, encontra-se presente também na linguagem cinematográfica. No que tange especificamente sobre as contribuições da pintura para a linguagem cinematográfica, cabe observar que

entendemos por linguagem cinematográfica os termos técnicos usados pelos que trabalham em cinema e TV, de forma que possam obter uniformidade de comunicação. Infelizmente, não existe uma padronização definitiva para os diversos termos. Algumas vezes, um determinado nome para um plano pode ter um outro nome em países e lugares diferentes (RODRIGUES, 2002, p. 25). Ao planejar A última ceia, Leonardo da Vinci escolheu um corte para a pintura. A perspectiva cria a ilusão de que o espaço continua, para cima e para os lados, seguindo, ainda, para dentro, como se o observador vislumbrasse a cena de uma janela, dando a idéia de profundidade. No cinema o plano pode ser definido como a imagem entre dois cortes, ou seja, o tempo de duração entre ligar e desligar a câmera a cada vez. Usado pelo diretor para descrever como o filme será dirigido, é a menor unidade narrativa de um roteiro técnico. A câmera pode estar parada ou em movimento, podendo-se também alcançar a sensação de movimento através da alteração do foco da lente ou com a lente zoom. O tempo de duração de cada plano varia com as necessidades dramáticas de cada cena e a preferência do diretor (Ibid., p. 26). Seguindo a herança do Renascimento, por séculos os artistas buscaram, na pintura, preencher o espaço da tela visando simular a realidade de forma convincente. Para tanto, ainda que atendendo às diferentes demandas de cada movimento artístico específico, houve um esforço dos pintores pelo preenchimento metódico do espaço, conforme pode ser observado em todas as obras apresentadas no presente artigo. Davi com cabeça de Golias, de Caravaggio, ilustra essa opção, embora seja uma obra com características do Barroco, marcada por fortes contrastes como luz e escuridão, vida e morte e por forte dramaticidade.

Ilustração 2 Caravaggio. Davi com a cabeça de Golias (1605-1606). Óleo sobre tela 125 cm x 101 cm Galeria Borghese, Roma (Itália). narrativa: No cinema, a escolha de cada plano está condicionada a clareza necessária à deve haver adequação entre o tamanho do plano e seu conteúdo material, por um lado (o plano é tanto maior ou próximo quanto menos coisas há para ver), e seu conteúdo dramático, por outro (o tamanho do plano aumenta conforme sua importância dramática ou sua significação ideológica) (MARTIN, 1990, p. 37). Conforme se pode observar, essas premissas já se encontravam presentes na pintura, a exemplo do Davi com cabeça de Golias, onde o artista optou por um corte da imagem acima do joelho. No cinema, esse tipo de plano ficou conhecido como plano americano: plano americano (PA) O personagem é mostrado do joelho para cima, tendo sua origem nos westerns americanos, com a função de mostrar a cartucheira do revólver na cintura (RODRIGUES, 2002, p. 29). Na pintura é comum o uso do plano de conjunto, que no cinema divide-se em dois tipos: o plano de conjunto fechado (enquadra dois atores com a mesma função dramática) ou plano de conjunto aberto (enquadra três ou mais atores com a mesma carga dramática) (Ibid., p. 31). Já no século XVII o que convencionou-se chamar de plano de conjunto no cinema era utilizado por grandes pintores, a exemplo de Rubens. Na pintura Dança dos camponeses, o plano de conjunto aberto personaliza o ambiente. A tela apresenta características do Barroco e traz como principal atributo do estilo a representação do movimento.

Ilustração 3 Rubens. Dança dos camponeses (1636-1640). Óleo sobre madeira 73 cm x 106 cm. Museu do Prado Madri (Espanha). A colheita de uvas, de Goya, também traz o plano de conjunto aberto, empregado em outras obras desse artista que é considerado o maior pintor espanhol do século XVIII. Goya, mais conhecido pelo caráter sombrio, instigante e por vezes assustador, nessa obra de início de carreira mostra uma situação bucólica, despreocupada, alegre e romântica, características que podem ser encontradas em muitos dos 63 cartões que pintou para servir de modelos nos trabalhos de tapeçaria quando trabalhou para a Manufatura Real, entre 1775 e 1792, no início da carreira. As tapeçarias eram produzidas em larga escala e os cartões que serviam de base eram encomendados com a intenção de que as cenas representadas se tornassem populares. A posição escolhida pelo pintor e a porção da cena que desejou privilegiar, no cinema recebe o nome de enquadramento: Enquadramento: inclui o lugar da câmera, a objetiva escolhida, o ângulo de tomadas, a organização do espaço e dos objetos filmados no campo (VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 37). A profundidade de campo, amplamente explorada no cinema, é outro aspecto interessante presente em A colheita das uvas, que também chama a atenção pelo ângulo de visão escolhido pelo artista, que construiu a cena de baixo para cima.

Ilustração 4 Goya. A colheita das uvas (1786-1787). Cartão para tapeçaria 275 cm x 190 cm Museu do Prado, Madri (Espanha). Esse tipo de ângulo, que no cinema é conhecido com contra-plongée, é muito difundido e a definição do termo, em relação a seu uso no cinema, poderia ser empregada com rigor para A colheita das uvas: A contra-plongée (o tema é fotografado de baixo para cima, ficando a objetiva abaixo do nível do olhar) dá geralmente uma impressão de superioridade, exaltação e triunfo, pois faz crescer os indivíduos e tende a torná-los magníficos, destacando-os contra o céu aureolado de nuvens (MARTIN, 1990, p. 41). Assim como na pintura, no cinema a contra-plongée é apenas uma das muitas opções para se construir a imagem. Ao tratar sobre os componentes do plano, Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété (1994, p. 37), esclarecem que entre os componentes do plano está o ângulo de filmagem. Este, por sua vez, engloba a tomada frontal, tomada lateral, plongée, contre-plongée, etc. Na pintura, a contra-plongée foi utilizado por renomados artistas. Um exemplo notável pode ser observado na tela As meninas, do espanhol Diego Velásquez.

Ilustração 5 Velázquez. As meninas (1656). Óleo sobre tela 318 cm x 276 cm. Museu do Prado. Madri (Espanha). O plano utilizado em As meninas, no cinema recebe o nome de plano geral aberto, que é utilizado para mostrar cenas localizadas em exteriores ou interiores amplos, mostrando de uma só vez o espaço da ação (RODRIGUES, 2002, p. 28). O plano escolhido foi combinado com o uso do ângulo que, no cinema, passou a ser conhecido como contra-plongée. Na pintura de Velázquez, a escolha permitiu a ampla visão do teto, contribuindo para que o observador tenha uma idéia da profundidade de campo e dimensão do ambiente. Na tela de grandes dimensões, o imobilismo do enquadramento abrigou o dinamismo das múltiplas cenas simultaneamente apresentadas: recurso que o cinema tem explorado incansavelmente, em especial nos filmes de ficção científica e aventura. A representação do ser humano - destacando suas formas, expressões, emoções e sentimentos - sempre foi prioridade na pintura e, igualmente, no cinema. Os diversos tipos de planos escolhidos por pintores, ao longo da história da arte, para valorizar seus modelos ainda hoje se encontram presentes no cinema. No plano inteiro o personagem é enquadrado da cabeça aos pés, deixando um pequeno espaço acima da cabeça e abaixo dos pés (Ibid., p. 29). Na pintura, diversos artistas utilizaram esse tipo de enquadramento. A título de exemplo, O tocador de pífaro, de Edouard Manet, ilustra bem essa prática.

Ilustração 6 Edouard Monet. O tocador de pífaro. (1866) Óleo sobre tela 160 cm x 98 cm. Museu d Orsay, Paris (França). No cinema, o plano médio mostra o personagem enquadrado da cintura para cima. É muito usado para mostrar o movimento das mãos do personagem (Ibid., p. 29). Na pintura, o retrato muitas vezes privilegiou esse enquadramento, a exemplo dessa famosa tela de Rembrandt, um auto-retrato feito no auge de sua carreira. Ilustração 7 Rembrandt. Auto-retrato (1638-1640).

Museu Kunsthistorisches, Viena (Áustria). O Primeiro plano, também chamado de plano próximo, muito presente no cinema, foi opção de renomados pintores. Nele o personagem é enquadrado do busto para cima, dando maior evidência ao ator, servindo para mostrar características, intenções e atitudes do personagem (Ibid., p. 29). Um exemplo é o auto-retrato do pintor romântico Delacoix, feito quando o artista tinha 37 anos, no auge de sua carreira e retratou-se de forma imponente, valorizando sua beleza e vigor. Cabe observar que nesse período (1835-1837) a imagem fotográfica, que surgiu no século XIX, suscitava importantes questionamentos entre os artistas. Muitos pintores contestaram e se empenharam arduamente para não conceder aos fotógrafos o status de artistas, alegando, entre outras coisas, o fato de que a fotografia se apoiava em princípios mecânicos e, portanto, não possuía a legitimidade das artes plásticas. Por outro lado, os fotógrafos se apropriavam dos padrões estéticos da pintura para construir suas imagens (como pode ser observado na foto de Delacroix feita por Nadar), fazendo com que os artistas passassem a questionar qual a função da arte no contexto vigente. Ilustração 8 Delacroix. Auto-retrato (1835-1837). Óleo sobre tela 85 cm x 54 cm. Museu do Louvre, Paris (França) Ilustração 9 Nadar. Fotografia de Delacroix.

A afirmativa de que a fotografia liberava a pintura de toda uma série de servitudes constrangedoras e a remetia a uma interpretação não tanto subjetiva quanto psicológica e analítica do universo (FRANCASTEL, 1993, p. 130) coaduna com o processo que se instala nas artes com o domínio da técnica e da prática fotográfica. Muitos artistas, então, passaram a abandonar a função meramente mimética da pintura e começaram a questionar os cânones da perspectiva clássica, buscando outros caminhos de expressão ao se darem conta de que a fotografia passou a realizar o ideal da arte renascentista, a partir de um ponto de vista central e monocular. Segundo Susan Sontag (1986, p. 89), A fotografia, assumindo essa tarefa de retratar realisticamente, até aí monopolizada pela pintura, libertou-a para a sua grande vocação modernista: a abstração. Esse processo teve grande importância, pois contribuiu para desencadear toda a arte moderna, enquanto a prática fotográfica e a própria fotografia, cada vez mais, se tornavam produtos de consumo em larga escala, passando a atender a múltiplas demandas dentro dos complexos e gigantescos mecanismos da indústria cultural que então se esboçava (BARBOSA, 2005, p. 30-32). Importantes pintores do final do século XIX contribuíram para derrubar os ícones da pintura baseada nos referenciais anteriores e buscaram novos caminhos: esquivando-se de competir com a fotografia no registro da realidade, a pintura distanciou-se gradativamente de sua tendência figurativa, passando a perscrutar espaços abstratos, cuja porta de entrada nem sempre é facultada à máquina, em uma busca incessante de novas vertentes capazes de manter o potencial das artes plásticas (OLIVEIRA, 2002, p. 18). Van Gogh, um dos artistas desse período, fez seu auto-retrato em primeiro plano quando já estava internado no asilo de Saint-Rémy, no ano em que faleceu.

Ilustração 10 Van Gogh. Auto-retrato (1889). Óleo sobre tela 65 cm x 54 cm. Museu d Orsay, Paris (França). O primeiro plano é diferente do close, que no cinema é chamado de primeiríssimo plano e mostra o rosto inteiro do personagem, do ombro para cima, definindo a carga dramática do ator (RODRIGUES, 2002, p. 30). Já o superclose, é definido como close fechado do rosto do ator, enquadrando o queixo e o limite da cabeça (Ibid.). Outro plano utilizado na pintura e encontrado com freqüência no cinema é o plano de detalhe, que mostra parte do corpo, como detalhes da boca, mão, etc. É usado também para mostrar objetos (Ibid.). Ainda no final do século XIX, os irmãos Lumière criavam, em Paris, o cinematógrapho, utilizando essa máquina para produzir e difundir imagens e Georges Méliès, um homem de teatro que trabalhava com mágica, viu no invento a possibilidade de utilizá-lo para contar estórias para grandes platéias (BERNARDET, 1980, p. 11). Surgia assim o cinema que, em princípio, carecia de uma linguagem própria e, apesar de suas peculiaridades, fez-se tributário das demais artes, já inscritas na tradição pintura, literatura, teatro, dança e música transformando-se, graças a essa sua carência inicial, em uma forma de expressão rica e versátil (OLIVEIRA, 2002, p. 18). Conclusão

As contribuições da pintura para a linguagem cinematográfica ajudaram a plasmar a própria linguagem visual do cinema, buscando nos cânones da pintura renascentista a construção de imagens que simulam a realidade de forma a convencer o espectador. Diferentemente da pintura, o cinema traz a imagem em movimento, mas ainda assim pode-se encontrar na linguagem cinematográfica, de forma marcante e inquestionável, planos, enquadramentos e ângulos abundantemente utilizados por pintores de diversos movimentos artísticos ao longo dos séculos. Ao constituir-se como linguagem, o cinema dialogou com diversas expressões artísticas, mas certamente as contribuições das artes plásticas, tratadas de forma breve no presente trabalho, merecem estudos mais aprofundados, visando identificar, detalhar e registrar as relevantes contribuições da pintura para a linguagem cinematográfica. Referências: ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. BARBOSA, Juciara Maria Nogueira. A Bahia de Jubiabá em fotografias de Pierre Verger. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Belas Artes, 2005. BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. 5ed. São Paulo: Brasiliense, 1983. 9 v. Coleção Primeiros Passos, vol. 9). FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa. 2ed. São Paulo: Perspectiva, 1993. HISTÓRIA Geral da Arte. Dicionário biográfico de artistas vol I e II. Madrid: Ediciones del Prado, 1997. MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 1990. MACHADO, Arlindo. A ilusão especular. São Paulo: Brasiliense, 1984. OLIVEIRA, Marinyze Prates. E a tela invadiu a página. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 2002. RODRIGUES, Chris. O cinema e a produção. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. SONTAG, Susan. Ensaios sobre fotografia. Lisboa: Dom Quixote, 1986. VANOYE, Francis e GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas: Papirus, 1994.