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Entre o dito e o visto: a narrativa de Vergílio Ferreira e a pintura de Claude Monet WOLFF, Ana Cristina Fernandes Pereira (UTFPR/UEM-PG) RESUMO: Inúmeras são as correlações que as artes têm mantido entre si durante toda a história do homem. As relações entre o texto verbal e a imagem, por exemplo, remontam ao mundo grego, e atualmente são mais evidentes e enfáticas as conexões intrínsecas entre ambos. A esse respeito, Mangel (2001) argumenta que a palavra e a imagem são indissociáveis. Ao retomar antigos pensadores, ele lembra que todas as nossas experiências são imagéticas e configuram uma linguagem cujas imagens se traduzem em palavras e cujas palavras se traduzem em imagens, num movimento para compreender nossa existência. Nesse sentido, guardadas as devidas particularidades, podemos dizer que existem pontos em comum entre literatura e pintura: a leitura de um quadro não acontece instantaneamente, e sim por meio de uma sucessão de percepções; a de um texto literário, ainda que temporal, exige, ao final, uma síntese em que coexistem, simultaneamente, seus elementos constitutivos (AGUIAR E SILVA, 1990). A partir dessas considerações, neste trabalho nosso intuito é observar as aproximações entre o texto literário e a pintura. Especificamente, propomos a leitura de um fragmento do romance Aparição (1959), do escritor português Vergílio Ferreira, e da pintura A Carroça: Estrada sob a Neve (1865), do francês Claude Monet, a fim de investigar como os dois textos um verbal e um pictórico, ainda que produzidos em momentos distintos, guardam relações entre si. Dito de outro modo, nossa leitura pretende explorar as correspondências entre a palavra vergiliana e a imagem monetiana. PALAVRAS-CHAVE: literatura; pintura; correspondências; Vergílio Ferreira; Claude Monet. ABSTRACT: Countless are the connections that the arts have remained together throughout the history of man. The relationship between the verbal text and image, for example, date back to the Greek world, and currently are more obvious and emphatic intrinsic connections between them. In this regard, Mangel (2001) argues that the word and image are inseparable. When returning to ancient thinkers, he reminds us that all our experiences are imagistic and configure a language whose images are reflected in words and whose words are translated into images, a movement to understand our existence. In this sense, there are commonalities between literature and painting, reading a picture does not happen instantly, but through a succession of perceptions, that of a literary text, even if temporary, requires in the end, a synthesis in which there are both constituent elements (AGUIAR; SILVA, 1990). From these considerations, the present study proposes an analysis of the similarities between the literary text and the painting. Specifically, the propose is an investigation of relations between a novel fragment of Aparição (1959), the Portuguese writer Vergílio Ferreira, and the paint The Cart: Road under Snow (1865), the French Claude Monet. In other words, the propose is to observe the correspondences between Vergílio Ferreira s word and Monet s image. KEY WORDS: literature; painting; Vergílio Ferreira; Claude Monet. Os caminhos traçados pelo homem caracterizam-se, sobretudo na contemporaneidade, pelo desejo de consumo. Na frenética sociedade em que vivemos, diariamente nos deparamos com uma infinidade de novos produtos, cada vez mais

competitivos e dotados de características capazes de seduzir-nos, levar-nos a consumir. Praticamente tudo adquire caráter de mercadoria e, neste contexto, até a arte acaba atrelada ao contínuo processo de comercialização de bens simbólicos. Ao mesmo tempo, como parte deste processo, assistimos à disseminação da imagem em todas as áreas: ela invade espaços privados e públicos, vinculando-se, na maioria das vezes, aos textos verbais. Sua mensagem é rápida, instantânea, atrai a atenção de todos. É impossível ignorá-la como geradora de sentido. Em sua Introdução à análise da imagem, Martine Joly (1996) chama a atenção para dois aspectos interessantes ligados à civilização atual: 1) a leitura da imagem, dada sua difusão, por vezes parece natural, sem necessidade de qualquer aprendizado; 2) tal naturalização pode revelar certa ingenuidade do espectador/leitor, submetendo-o à manipulação. Porém, adverte a estudiosa, nenhum desses aspectos é inteiramente justificável. Contra tal ingenuidade e manipulação, argumenta que a imagem nos é muito familiar exatamente porque temos a mesma massa que ela. Ainda que pareça natural, portanto, a leitura da imagem desperta em nós convenções, história e aspectos culturais interiorizados. Qualquer imagem envolve características particulares e uma natureza complexa que demanda o esforço do leitor/espectador: a atividade de leitura. Em meio a um mundo de imagens, todavia, questionamo-nos se nosso olhar está apto a lê-la, pois, de maneira geral, há preocupação maior com a leitura do texto verbal em detrimento do imagético. Particularmente, interessa-nos, no momento, uma imagem específica: a artística. Neste ponto, destacamos duas questões fundamentais. Primeiro, ainda que inserido em uma sociedade de consumo, que o absorve mais e mais, o homem não pode negar uma característica básica de toda sua história: a natureza e as funções da arte, a qual tem representado, desde a Pré-História, uma atividade fundamental do ser humano. A arte é uma necessidade essencial de cada um de nós, indissociável de nossa condição humana, é um modo específico de os homens entrarem em relação com o universo e consigo mesmos (BOSI, 1985, p. 8). Enquanto produção, supõe trabalho. Movimento que arranca o ser do não ser, a forma do amorfo, o ato da potência, o cosmos do caos (BOSI, 1985, p. 13). Qualquer obra de arte demanda o ato criativo, o trabalho árduo do artista, o esforço para transformar algo aparentemente comum, automatizado, em um objeto artístico, que desperta o prazer estético. Por outro lado, implica também o trabalho do leitor, do apreciador, do espectador. Nesse sentido retomamos Sartre: O esforço unido de autor e leitor produz o

objeto concreto e imaginário que é a obra do espírito. A arte existe unicamente para o outro e através do outro. (SARTRE apud ISER, 1999, p. 11). Ao apontar os fundamentos para a leitura do texto ficcional, Iser destaca a convergência de dois polos: a obra literária tem dois pólos que podem ser chamados pólos artístico e estético. O pólo artístico designa o texto criado pelo autor e o estético a concretização produzida pelo leitor (ISER, 1996, p. 50). Como notamos, o texto não é uma estrutura dotada de sentido, mas só existe a partir da interação com um outro, na leitura. É do encontro do texto com o leitor que nasce o significado, pois o texto é um ato criativo inacabado e depende da mediação do outro. Desse modo, é só na leitura que a obra enquanto processo adquire seu caráter próprio. [...] A obra é o ser constituído do texto na consciência do leitor (ISER, 1996, p. 51). Ainda que Sartre e Iser refiram-se ao texto literário, as condições por eles apontadas são válidas também para a imagem, visto que também se trata de um texto, um produto artístico, uma reação de um autor ao mundo que ganha caráter de acontecimento, pois apresenta uma nova perspectiva para esse mundo. Toda obra artística, quer literária ou não, excede a realidade e desestabiliza as referências, provocando diferentes efeitos no leitor e permitindo novos sentidos e novos significados. Ademais há de se destacar as inúmeras relações que as artes têm mantido entre si durante toda a história do homem. Enfatizamos, neste caso, as relações da imagem tão evidente em nossos dias com a palavra. Com efeito, a imagem sempre esteve associada à escrita na história humana, o que nos leva a indagar quais seriam os pontos comuns entre o texto literário e a pintura. A esse respeito, lembramos as afirmações de Manguel. Retomando antigos pensadores, como Platão e Francis Bacon, os quais defendiam que nossa memória contém inúmeras imagens e, desse modo, todo conhecimento é recordação, o teórico argumenta que estamos todos refletidos de algum modo nas numerosas e distintas imagens que nos rodeiam, uma vez que elas já são parte daquilo que somos [...], somos essencialmente criaturas de imagens, de figuras (MANGUEL, 2001, p. 20-21). Todas nossas experiências, segundo Manguel, são imagéticas, configurando uma linguagem feita de imagens traduzidas em palavras e de palavras traduzidas em imagens, por meio das quais tentamos abarcar e compreender nossa própria existência (MANGUEL, 2001,

p. 21). Esse argumento sustenta aquilo que afirmamos anteriormente: a imagem e a palavra guardam intrínsecas relações. Com base nessas considerações iniciais, propomos, neste trabalho, a leitura de um fragmento do romance Aparição (1959), do escritor português Vergílio Ferreira, e do quadro A Carroça: Estrada sob a Neve (1865), do pintor francês Claude Monet. Nosso objetivo é mostrar como os dois textos um verbal e um pictórico, ainda que produzidos em momentos distintos, guardam relações entre si. Dito de outro modo, nossa leitura pretende explorar as correspondências entre a palavra vergiliana e a imagem de Monet. DAS RELAÇÕES ENTRE LITERATURA E PINTURA Parece-nos bastante pertinente retomar a argumentação de Eunice Ribeiro (2000). Para a estudiosa, a própria escrita tem um caráter pictórico, é um gesto plástico com características figurativas. Se desprovida de normas, a escrita é mais visível que legível, o que evidencia suas relações com a imagem. A arte caligráfica na Idade Média gozava de certo status, era vista como algo sagrado e superior, implicando o controle da mão e da pena. Séculos mais tarde, Saussure reafirma o visualismo da escrita: são marcas distintivas, aspectos gráficos que diferenciam um signo de outro. Ainda na Idade Média, como necessidade de comunicação da época, foram frequentes as iluminuras como complemento à escrita no período. Desse modo, os livros eram escritos à mão e decorados com pinturas e diferentes ornamentos. O texto verbal impedia interpretações indesejáveis da imagem, tinha um caráter disciplinador. No período do Renascimento, os mais diversos textos eram ilustrados, mantendo a tradição da Idade Média. O auge da relação entre as artes plásticas e a literatura se deu nos séculos XV e XVI. Textos poéticos e retóricos serviam de estímulo à produção pictórica. O mundo greco-romano serviu como fomento, como material a ser imitado. Por isso o reaparecimento de clássicos poemas pastoris, elegíacos, odes, éclogas, epopeias e hinos homéricos (CORTEZ, 2003). Os pintores e artistas do tempo passaram do dito o texto clássico ao visto o texto não-verbal, à representação do dito. Os escritores desse período foram, como os pintores, grandes criadores. O texto tinha uma característica básica: a visualidade, a plasticidade, unindo o dito ao visto.

O poeta, que especulava como um filósofo, pretendeu desenvolver, igualmente a sua capacidade sensorial de pintar, numa crescente preocupação de atribuir aos textos escritos um caráter pictórico, produzindo imagens a partir de representações plásticas (CORTEZ, 2003, p. 284). A relação texto e imagem, no entanto, tem raízes mais profundas e remotas, no mundo grego. À época havia inúmeros casos de literatura visual, como technopaignia, carmita figurata, proto-escrita caligramática, alinhamento de ícones e símbolos verbais (RIBEIRO, 2000). Eram comuns os poemas de figuras, que demonstravam erudição, aliando plasticidade ao grafema. A literatura visual iniciou uma tradição que se estendeu pelo mundo latino e perdurou até o século XVIII, sendo revivida no século XX com a poesia experimental e visual, com o concretismo. O valor literário de tais produções, no entanto, era exíguo. No mundo clássico, as relações entre pintura e literatura basearam-se na metáfora. Haja vista não existir qualquer investigação teórica a respeito do texto pictórico, este estava sujeito às poéticas clássicas e à natureza mimética das artes. Eram comuns as poesias destinadas à descrição e à narração de figuras e cenas da mitologia, as quais se caracterizavam pelo pictorialismo. Entre elas, destacou-se a poesia ecfrástica, ou seja, um gênero de poesia que se caracteriza por descrever uma obra de arte (pintura, escultura, etc.) (AGUIAR E SILVA, 1990, p. 163). Nesse período (entre os séculos VI e V a. C.) viveu Simónides de Céos, autor da máxima segundo a qual a pintura é poesia muda e a poesia é pintura que fala : ut pictura poesis. Tal máxima, posteriormente, foi retomada e atualizada por Horácio em sua Arte Poética (AGUIAR E SILVA, 1990). O paralelo entre pintura e poesia foi formulado por vários autores durante a Idade Média. A fórmula de Simónides e de Horácio, no entanto, ganhou relevância no período da Renascença tanto em termos artísticos quanto teóricos, estendendo-se até o século XVIII. Apesar da importância, tal relação acarretou interpretações por vezes abusivas ou distorcidas, apontando semelhanças estruturais entre poesia e pintura. A mimese mantinha-se como a origem das duas artes, as quais gozavam de igual prestígio, ao contrário do que acontecia no mundo helênico. Do Renascimento ao Neoclassicismo, o paralelo entre pintura e poesia contribuiu para a realização de uma poesia descritiva nas literaturas europeias. Frequentemente, pintores escolhiam figuras e cenas de obras poéticas como temática de seus quadros, a exemplo da poesia ecfrástica. Ainda no Renascimento e depois no Barroco ganhou destaque o emblema,

composição em que coexistem o texto pictórico uma gravura e uma epigrama o texto verbal comentando a gravura. A partir de meados do século XVIII, a relação interartística começou a ser questionada por pensadores como Edmund Burke e Gotthold Efraim Lessing. Para o primeiro, a poesia e a retórica jamais descreveriam de forma tão exata as coisas quanto a pintura. O sublime, diverso da beleza, por outro lado, exige obscuridade, sofrimento, terror, grandeza, paixões em efusão. Por isso, apenas a poesia e a retórica poderiam despertá-lo. A pintura é admirada e amada com frieza, em contraste com o calor e a força arrebatadora das paixões que a poesia desencadeia (AGUIAR E SILVA, 1990, p. 167). Lessing, por sua vez, defendia diferenças profundas entre as duas artes. A pintura é uma arte espacial, capaz de apresentar objetos simultaneamente no espaço. Seus símbolos (figuras e cores) são naturais. Do outro lado, a poesia é uma arte temporal, de movimento e ação. Sua simbologia é arbitrária e incorpora sons articulados no tempo. É capaz de representar a sucessão de objetos no tempo, mas não sua simultaneidade. A pintura, acrescenta ele, não conta histórias nem articula ideias universais, como faz a poesia. Os dois teóricos, apesar das diferenças, tinham algo em comum: a arte superior, para ambos, era a poesia, contrariando aquilo que fora comum desde o Renascimento. Já o Romantismo negou a imitação como princípio constitutivo da arte, exaltando a subjetividade, a criação. Com isso, privilegiou a música como arte irmã da poesia. Para os românticos, a arte por excelência era a poesia, a única capaz de reunir todas as demais. No período, no entanto, as relações entre pintura e poesia não foram completamente esquecidas, a exemplo dos escritos de Victor Cousin, filósofo francês, ou dos versos de Baudelaire cujos temas foram traduzidos da pintura de Goya ou Delacroix. Com o Realismo e o Parnasianismo aproximaram-se mais a literatura e a pintura, haja vista o valor dado à representação das coisas exteriores, a atenção às cores, às formas, ao volume, às descrições detalhadas e coloridas. A plasticidade do discurso literário foi valorizada pelos parnasianos, muitos dos quais exploraram os efeitos espaciais e formais do poema. A partir do Modernismo e das vanguardas históricas se estreitaram as relações entre pintura e literatura. O texto poético aproximou-se do pictórico graças à exploração de seus aspectos visuais, materiais, espaciais. Houve a recusa artística dos modelos realistas e racionalistas de representação e a valorização da novidade, seja em relação à forma, ao estilo ou ao tema. A vida cotidiana é incorporada à obra de arte, que se torna conceitual.

Fragmentação, colagem, espacialização, paródia são marcas distintivas de um novo fazer artístico, reinterpretando o princípio do ut pictura poesis. Além de lido, o poema deve ser também visto. As estéticas modernas e os ismos de vanguarda conduziram a um novo conceito de representação: a arte não é reflexo do real, mas sim uma realidade paralela. A linearidade da escrita é rompida. A poesia incorpora o sensorial, o trans-racional, o não dizível, explorando novas dimensões espaciais e temporais para lá da palavra e da imagem (RIBEIRO, 2000, p. 107) e incorporando inúmeras novidades: sentidos, materiais e objetos. Entre as práticas artísticas contemporâneas criam-se teias interdisciplinares, fundindo passado e presente, questionando a estabilidade do significado. Tudo é invenção e a pósmodernidade é marcada pela translação de formas [...], hibridização de códigos (RIBEIRO, 2000, p. 108). As fronteiras entre as artes tornam-se mais tênues e menos evidentes, pois uma incorpora a outra, o que coloca o leitor/espectador em contato com novas formas de expressão e de interação. Isso tudo comprova que, embora alguns dos fundamentos de Lessing sejam indiscutíveis, há alguns aspectos um tanto rígidos. Afinal, guardadas as devidas diferenças, existem pontos em comum entre poesia/literatura e pintura: a leitura de um quadro não acontece instantaneamente, e sim por meio de uma sucessão de percepções; a de um texto poético, ainda que temporal, exige uma síntese final em que os seus elementos constitutivos de certo modo coexistem simultaneamente (AGUIAR E SILVA, 1990, p. 172). São tais semelhanças que intentamos explorar a seguir. CLAUDE MONET E VERGÍLIO FERREIRA: O TEXTO PICTÓRICO E A VISUALIDADE DA PALAVRA O impressionismo foi o movimento que marcou a primeira revolução artística total desde a Renascença (STRICKLAND, 2004, p. 96). Surgiu na França no início dos anos de 1860 e, ainda que sua expressão mais pura não tenha durado um longo período (até 1886), foi determinante para a arte posterior. O movimento impressionista rompeu definitivamente com a tradição. Rejeitando a perspectiva, o equilíbrio na composição, a idealização figurativa e o claro/escuro da Renascença, voltou-se para as sensações visuais imediatas provocadas pelas cores e, principalmente, pela luz. Seu objetivo principal era apresentar uma impressão ou as

percepções sensoriais iniciais registradas por um artista num breve vislumbre (STRICKLAND, 2004, p. 96). Isto porque descobriram que a cor é volátil, consoante os efeitos da luz sobre a superfície do objeto observado. Preferiam ver o mundo em movimento: e tudo mudava pela ação prodigiosa da luz (RIBEIRO, 1965, p. 183). Daí advém o interesse dos impressionistas pela pintura da natureza ao ar livre, o que permitia observar as mudanças de luz e cor. Ademais, os trabalhos impressionistas não se preocupavam com um conteúdo narrativo, em refazer a história. Contrariamente retratavam um fragmento da vida contemporânea ou uma fotografia momentânea da natureza. Abandona-se, assim, a figuração do permanente e busca-se apreender o fugidio, fixar o efêmero. Claude Monet (1840-1926), o mestre de Giverny, situa-se como o maior evento do Impressionismo, e talvez de maior complexidade na pintura francesa do século XIX (RIBEIRO, 1965, p. 200). O nome do movimento impressionista baseou-se em um de seus quadros. Sua intenção era pintar o registro transitório daquilo que via, a partir da luz. Trabalhava com enormes telas, nas quais pintava a mesma cena repetidas vezes: o pincel percorria cada vez mais fluente seus constantes caminhos, até os quadros se converterem numa evocação livre e maravilhosamente lírica da cena, em vez de ser uma descrição conscienciosa (LYNTON, 1978, p. 45). No outro polo de nossa leitura está o texto de Vergílio Ferreira, ficcionista português contemporâneo. Ensaísta, contista e romancista, iniciou sua produção literária em 1939, com a publicação de seu primeiro romance Onde tudo foi morrendo. À época, os desdobramentos da II Guerra Mundial instalaram no homem uma profunda experiência do fracasso. As forças sociais convergiam para uma literatura engajada, de denúncia das condições de exploração a que estavam submetidos alguns grupos sociais. Por isso as produções literárias foram marcadas, na década de 1940, quer pelo niilismo, quer pelo reformismo. Estávamos em pleno período neorrealista. A obra vergiliana passou, depois, por um processo evolutivo. Deixando de enfocar grupos sociais, a realidade exterior, volta-se para a realidade interior, particular do homem. Seu objeto de interesse centra-se na condição humana. Adquire, desse modo, uma dimensão existencial. O que mais nos interessa neste trabalho, porém, não é a temática que subjaz ao texto vergiliano. Um aspecto extremamente importante de sua produção literária é o lirismo. A prosa poética de Vergílio Ferreira é, segundo Goulart (1998), o paradigma do romance lírico

contemporâneo em Portugal. Ao lado disso, observamos a visualidade de seu texto, a poeticidade que permeia as descrições, sobretudo do espaço. Aliás, o espaço amplia-se, é plasmado e reelaborado pela subjetividade do narrador vergiliano, comprovando que o texto literário também é imagem. Um primeiro aspecto que devemos enfatizar em relação aos textos é o modo de ler: a leitura do texto vergiliano, como de todo texto verbal, processa-se temporalmente, determinada por certas regras: da esquerda para a direita, de cima para baixo, seguindo a demarcação de princípio, meio e fim. A do texto pictórico permite maior liberdade, pois o olhar do espectador move-se livremente pela tela. Ainda assim, como no texto literário, a pintura não é apreendida instantaneamente. A visão do todo se mostra ao espectador imediatamente, mas a percepção da imagem exige um processo temporal. No fragmento selecionado do texto vergiliano, há a narração do retorno de Alberto (o eu-narrador) à casa da família pela primeira vez após a morte do pai. Do comboio, percorrendo os caminhos, evidencia-se a linguagem visualista e lírica de Vergílio Ferreira, carregada de imagens. A minha memória está cheia. Da janela do comboio olho a montanha ao longe, branca de espaço, olho as matas de pinheiros, o chão trágico de pedras. Tento reconhecer aí o que é vivo e relembra, o que dura e aparece nos instante de alarme. Fecho os olhos, raivoso, e busco a verdade inicial, a que sabe a minha presença no mundo, o que eu sou, a música irredutível que às vezes me visita (FERREIRA, 1983, p. 117). O narrador empreende uma tentativa de reconhecimento no espaço exterior, plasmando-o com sua subjetividade. O olhar é o modo de unir-se à realidade externa e há um esforço para captar algo efêmero, mas cujo efeito transcende o tempo: o que é vivo e relembra, o que dura e aparece nos instantes de alarme. O leitor partilha um sentimento de solidão com o eu-poético: há apenas ele e o entorno. Nenhuma presença humana aparece ou é mencionada. Além disso, destaca-se a presença da montanha, branca de espaço. O olhar capta esse elemento simbólico, a montanha, coberto de neve, todo branco, cor da luz e da pureza, como uma resposta a tudo o que procura, como um indício de sua verdade original. O branco começa a delinear-se por todo o espaço circundante, em especial pela neve que tudo cobre. A respeito disso, lembramos que, simbolicamente, a neve significa vida e morte: sepulta tudo, mas ao derreter, permite que nova vida renasça. A vida também está presente na mata, no verde, enquanto as pedras do chão relembram a morte, sempre acompanhando o

homem daí chão trágico. A partir de todos esses elementos simbólicos é que o narrador procura a sua evidência, aquilo que permanece, tal como a montanha, que transcende o tempo. Já na aldeia, a imagem que descreve o caminho da estação até a casa é também impressionante e de fato a que mais de perto nos interessa. Sozinho na carroça com Antônio, um empregado da família, além da viagem propriamente dita, do deslocamento físico, o narrador experimenta outra por trás dessa primeira: a viagem pela memória, determinada pela observação da realidade circundante, paisagens de tempos passados quanto de tempos presentes que é preciso respirar interiormente, em grandes golfadas, acentuam Azinheira e Coelho (1999, p. 57). Certamente essa segunda viagem é a mais relevante para Alberto, que reflete e, nesse impulso de olhar o espaço, acaba integrando-o, reenviado ao passado, às suas origens, a um tempo primordial. Pela estrada fora, aberta entre a neve, os guizos do cavalo retinem alegremente. Uma claridade baça desce do céu imóvel com a promessa de mais neve. E para um olival distante gente escura canta. Fecho os olhos ainda, e escuto. É uma música antiga, da idade da terra, da idade do destino dos homens. Da amargura funda como os séculos, dos biliões de sonhos consumidos pelas eras, ela vem até mim, essa canção de nada, abrindo no ar sobre a solidão do Inverno, com a mensagem de uma noite perene. Caminhamos agora por uma recta extensa. Passam à nossa beira camponeses escuros, um ou outro pedinte de viagem com a face das misérias bíblicas. Ao fundo, barrando o horizonte, ergue-se a montanha, que recua, vagarosa, diante de nós, como para nos atrair à sua verdade de génese. E, suspenso sobre ela, unido ao cântico dos homens, que já não ouço, eis que se me abre um coral longínquo, eco de que paz triunfal numa manhã solene, esperança sem fim, esperança eterna? (FERREIRA, 1983, p. 118). Alberto fecha-se em si mesmo, entrega-se ao espaço que seus olhos captam e pensa [ -Velho António! Deixa-me pensar (FERREIRA, 1983, p. 118)]. Comprova-se, assim, a necessidade da atitude reflexiva na obra em detrimento dos fatos, a entrega ao mundo interior. O ser é o centro de tudo, nada tem mais importância que ele. Além dos olhos, os ouvidos também se integram a tudo o que cerca a personagem ( escuto ). A neve, o frio, os guizos alegres dos cavalos, a claridade opaca, o céu imóvel, a música antiga, tudo se funde ao olhar do narrador, criando um efeito sinestésico, um mundo particular, em que a montanha reina como metáfora de permanência, contrastando com o percurso existencial do homem (AZINHEIRA E COELHO, 1999, p. 58). A montanha é símbolo da solidez ansiada pelo eu, de uma ligação a algo que transcende os próprios limites humanos, de busca de um horizonte inalcançável, grandioso e equilibrado. Imponente, ganha

movimento aos olhos do narrador-personagem, exercendo sobre ele profunda atração, um efeito comunicador. Ao mesmo tempo, o inverno é espaço de solidão porque conduz ao abandono dos homens nas suas teias da existência. Eles são também da cor do Inverno, baços como a luz difusa dessa estação do ano (AZINHEIRA E COELHO, 1999, p. 58). Às pessoas que ocupam esse espaço falta vida, força; gente escura, pedinte de viagens com a face das misérias bíblicas, têm os sonhos desfeitos, tão amarguradas quanto a música que cantam; gente antiga, fruto de longas eras, em que a revelação do homem ainda não se fez e a quem resta somente uma noite perene. Absorvido pela presença da montanha, pelo canto, todavia, Alberto é ofuscado e transfigura essa música: o que ele ouve agora é um sinal de esperança, uma música longínqua, acalentadora, um eco de paz, como aquela música irredutível mencionada logo atrás, um fulgor de alegria, um eco transcendente que nele vibra como o som de uma harmonia que não sabe (FERREIRA, 1983, p. 117). Eco de lamentos de gente <<escura>>, esta música que vem de todos os tempos e vai para todos os tempos assume-se como posicionamento social de um eu que o metaforiza. Filtrada pelo seu pensamento e ligada a um coral longínquo, esta converter-se-á na música da esperança de uma humanidade com direito a existir através de um acto redentor (AZINHEIRA E COELHO, 1999, p. 59). Assim, não é por acaso que a música que permanece é o Messias de Haendel. Porque o Messias será toda a arte capaz de redimir, de perdoar, de sublimar, de devolver ao homem a esperança que faz da vida um percurso que vale a pensa ser vivido (AZINHEIRA E COELHO, 1999, p. 59). A música ecoa e o homem se liga intrinsecamente ao universo. Perdido na paisagem rança e solitária, o eu-narrador experimenta a união com o irredutível, uma espécie de comunhão com o espaço circundante e, diante de si, vê surgir, da solidão, um sinal de esperança, de transcendência. Do branco, da neve que sepulta, surge a esperança, a própria vida. Para dialogar com o texto vergiliano, escolhemos uma pintura de Claude Monet. Ainda que Monet tenha pintado muitas paisagens ensolaradas, com cores intensas e variadas, também gostava do inverno, que o desafiava pela limitação de cores. É exatamente o inverno que predomina na pintura selecionada. Trata-se de A carroça: Estrada sob a Neve, de 1865 (64,7 x 92 cm), exposta no Museu do Louvre, em Paris.

Fonte: Nova Cultural, 1986. Contra aqueles que argumentam que a análise da imagem mata o prazer estético, bloqueia a espontaneidade da recepção da obra, Joly afirma que sua prática, que exige tempo, pode aumentar o prazer estético e comunicativo das obras, pois aguça o sentido da observação e o olhar, aumenta os conhecimentos e, desse modo, permite captar mais informações [...] na recepção espontânea das obras (JOLY, 2001, p. 47). Na leitura do quadro chama a atenção, em um primeiro momento, a ausência do colorido: o branco e o cinza-azulado-amarelado são as cores predominantes, em contraste com o tom escuro da carroça, do córrego congelado, das árvores ao fundo, da casa. No centro do quadro, ganha densidade a carroça e seus ocupantes, os quais não têm contornos nítidos. A moldura corta a paisagem à direita e à esquerda, sugerindo ao espectador que a complete. À direta parece elevar-se o terreno, sugerindo a presença de uma montanha, altamente simbólica, como já apontamos no texto anterior. A distância provoca certo efeito de profundidade, com um espaço real tridimensional. Esse distanciamento é muito caro aos impressionistas no sentido de permitir captar as flutuações da luz e seus efeitos. A paisagem, a ausência de cores, a predominância do branco, tudo sugere a introspecção, o homem entregue a sua intimidade e pensamentos. Assim como no texto vergiliano, a impressão é de extrema solidão: há apenas os passageiros da carroça, em uma paisagem silenciosa, onde apenas o ranger do veículo (sugestivamente) se faz ouvir. O efeito produzido é este: os pequenos ocupantes da carroça perdidos contra a imensidão de neve, recolhidos a si mesmos, a sua intimidade, isolados no espaço circundante.

No primeiro plano, uma grande porção de neve ganha destaque, com cores frias que misturam o branco predominante, o amarelo e o cinza azulado, como a mostrar o efeito da luz incidindo sobre a neve. As pinceladas dão volume à neve, em especial no caminho percorrido pela carroça. É como se o pincel e as cores, ao mesmo tempo, revelassem a neve pisada, percorrida na estrada. Daí a mistura de cores revelada pela intensidade da luz. Ao contrário, a neve em torno do córrego, na massa que se mostra à direita e sobre a casa, ainda que volumosa, parece mais firme. A pintura congela um momento específico. A estrada e a carroça sugerem a viagem, o deslocamento físico dos dois ocupantes o que se intensifica pela neve mais volumosa, sugerindo o próprio ir e vir da vida; levam o leitor a preencher a imagem com um antes e um depois, como a refazer uma narrativa, imaginando de onde vêm e aonde vão, o que sentem, o que pensam... É interessante notar que as sombras, bem ao gosto do impressionismo, não são negras. São escuras, mas dotadas de alguma cor, algo entre o cinza e um marrom esverdeado, sobretudo nas árvores que, como no texto anterior, sugerem a vida. O céu baço tal qual o de Vergílio Ferreira, com a promessa de mais chuva, ocupa a porção superior do quadro, praticamente metade dele. A luz é trêmula, errática, sugerindo a paisagem e o devaneio dela. Como no fragmento textual anterior, o branco e a neve predominam, pontilhados de algumas sombras, o que também pode sugerir a antítese morte e vida. Ao mesmo tempo, a imagem é extremamente melancólica, e o espectador parece ouvir a música anunciada no texto vergiliano, como se no fim da estrada houvesse a promessa de alegria, de renascimento, de esperança. Notamos que ambos os textos o verbal e o pictórico guardam semelhanças entre si. O lirismo que advém da contemplação de ambos é visível, mas nem sempre dizível. As cores e os elementos da paisagem evidenciam como os dois de períodos distintos; um verbal e um imagético dialogam entre si e há correspondências neles. Ferreira e Monet, cada um a seu modo, liricamente captaram um momento efêmero, transitório, mas altamente sugestivo. Tal momento, nos textos, sugerem a ut pictura poesis, ou seja, o texto verbal é pintura que fala, altamente visual e imagético; a pintura é poesia muda.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Mesmo em uma sociedade de consumo, mesmo que a arte, muitas vezes, esteja atrelada a valores econômicos, jamais perderá sua capacidade de envolver-nos, enlevar-nos e provocar o efeito estético. Desde os mais remotos tempos, as grandes obras artísticas permanecem como provas cabais de que a beleza, ainda que possa mostrar-se grotesca muitas vezes, é uma marca indistinta da vida humana. Como afirmou Leonardo Da Vinci, tudo o que é belo morre no homem, mas não morre na arte. A arte continua a engrandecer-se com novas obras, as quais por vezes guardam relações interartísticas, como vimos em Vergílio Ferreira e Claude Monet. De nós, leitores, exigem-se apenas um olhar atento, capacidades imaginativas e a entrega ao efeito estético. Se, como afirmou Bandeira algures, a morte é o fim de todos os milagres, a arte é a afirmação maior do milagre de existir, da incrível capacidade humana de superar-se e revelar-se. A leitura aqui empreendida confirma as relações entre o texto literário e a pintura. Por um lado, tal qual um pintor com suas cores e pinceladas Vergílio Ferreira, com as palavras, compõe quadros belíssimos, plasmando o real com sua sensibilidade, rumo à palavra-imagem. De outro, seria impossível pensarmos a obra de Claude Monet sem as palavras: cada traço de seu quadro nos conduz a um esforço de linguagem, como se fôssemos compor a narrativa por detrás da imagem. Em ambos os casos, buscamos o apoio da palavra, ainda que, ao experimentarmos o efeito estético, muitas vezes ela se torne insuficiente. Afinal, lembrando Iser, ele é indizível. REFERÊNCIAS: AGUIAR E SILVA, V. M. Teoria e metodologia literárias. Lisboa: Universidade Aberta, 1990. BOSI, A. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 1985. CORTEZ, C. Z. Literatura e pintura. In: BONNICI, T. & ZOLIN, L. O. Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas (org.). Maringá: Eduem, 2003, p. 281 293. FERREIRA, V. Aparição. Difel: São Paulo: 1983. HAUSER, A. História social da arte e da literatura. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Vol. I. Tradução: Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1996.

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