REIS E CARETAS MARIA DO AMPARO MOURA ALENCAR ROCHA 1
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- Betty Carneiro Clementino
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1 REIS E CARETAS MARIA DO AMPARO MOURA ALENCAR ROCHA 1 A proposta de documentário que apresentamos tem a sua construção narrativa centrada na louvação ao Santos Reis, uma das celebrações religiosas mais tradicionais, emblemáticas e que mantém elementos característicos de outros tempos, realizada há mais de cem anos no sertão do Estado do Piauí, em Alto Longá, Norte do Estado, aproximadamente 80 km da capital Teresina. O documentário, de natureza etnográfica, tem como argumento central a Folia de Reis, conhecida no Piauí como Reisado. Dentre os santos acolhidos pela tradição religiosa cristã da localidade estão os Reis Magos, celebrados como Santos Reis ou simplesmente Santo Reis, considerados milagrosos. O imaginário em torno dos Reis Magos se revela em rituais complexos, permeados de interpretações; há símbolos, sentidos e significados, cultural e historicamente elaborados, traduzidos e metamorfoseados pelas comunidades devotas, apresentados em manifestações diversas, de caráter sagrado e profano. As comunidades que celebram o dia de Santos Reis estão dispersas em países de tradição cristã, imprimem na oralidade diversas narrativas, contadas de geração em geração. A celebração em louvor aos Santos está ligada intimamente às festas sagradas e aos cultos pagãos de fertilidade, de abundância alimentar. Nos versos improvisados dos caretas, personagens da Folia, são feitas referências aos magos do Oriente. Reis, que depois de cumprida a rota que lhes indicava a estrela de Belém, louvaram Jesus na gruta onde nascera com a entrega de presentes. Não é possível saber quando teve início a Folia ou Festa de Reis em Alto Longá, mas é válido afirmar sobre a secularidade da tradição, transmitida de pais aos filhos, que ao longo do tempo assumiram a devoção e em alguns casos até pagam a promessa feita, mas não cumprida por um ente querido a Santo Reis. A cada ano, uma promessa é paga. Na casa do promesseiro, há um altar ornado, singelo em honra a Santo Reis. Arranjado em uma caixinha de papelão, cuidadosamente, está colocada a imagem dos Reis Magos na gruta onde prestaram homenagem ao menino Jesus, referência ao primeiro culto de devoção ao menino Deus. Os magos, guiados por uma estrela, teriam levado ao recém nascido ouro, incenso e mirra, que representam as três dimensões de Cristo: a realeza, a divindade e a humanidade. A Folia de Reis é realizada em países como Portugal, Espanha, França, Bélgica e Itália. Podemos afirmar que foi trazida ao Brasil pelos colonizadores portugueses que mantiveram a tradição europeia com elementos pagãos: doações e trocas de presentes. No 1 Professora do quadro provisório da Universidade Estadual do Piaui. Especialista em História e historiografia do Brasil
2 Brasil, alguns estados do Nordeste, dentre eles o Piauí, a tradição sobrevive, guardando algumas de suas características originais. Em Alto Longá, a celebração é conhecida como Folia de Reis, Dia de Reis ou Reisado, há a presença de grupos de foliões, que visitam os amigos ou conhecidos, cantando modinhas e versos. Dançam, cantam e rezam ao som da sanfona. Em alguns estados brasileiros estão presentes instrumentos como tambores, violões, cavaquinhos e pandeiros. Os Caretas percorrem as casas no entorno da casa do promesseiro e pedem dinheiro ou alimentos aos vizinhos para a partilha, em forma de almoço e jantar aos convivas no dia do pagamento da promessa. O que observamos são permanências medievais da teatralização da fé. Os adereços do altar, dos caretas, da bandeira e do boi são coloridos e cuidadosamente preparados. O boi é ornado com chita, fitas coloridas e espelhos; os caretas, figuras mascaradas, fazem palhaçadas, elaboram momentos cômicos, com suas máscaras de couro ou ornadas com papéis coloridos, representam os soldados de Herodes, governador romano que desejava a morte de Cristo, fato que teria motivado a fuga da sagrada família para o Egito. O que se vive em Alto Longá é uma celebração com elementos pagãos e cristãos, com dimensões sagradas, crenças antigas, ancestrais, seculares, com origens míticas, enraizadas em um lugar árduo, que deseja magia, ludicidade, energia, alegria; deseja o encontro com a fortuna, com a utopia, com a desconstrução do real. No documentário buscaremos representar a estética, a sonoridade, a devoção, os momentos de deleite, alegria, fé; trocas simbólicas entre fiéis e santos de devoção, o pagamento de uma promessa por uma graça alcançada, um milagre, fruto da intervenção do sobrenatural. A Folia tem a marca de uma naturalidade coletiva, é cíclica, móvel, os devotos transportam a imagem de Santos Reis que veneram, com sua bandeira, cânticos; há festins alimentares com produtos da localidade, são servidos pratos típicos do lugar, dentre eles o sarapatel, a buchada, a galinha ao molho pardo, o porco assado, o carneiro ao molho, etc. A Folia é a materialização da religiosidade, da espiritualidade, é o desejo dos fiéis que dão continuidade às homenagens aos Reis, Santos, que circulam pelas casas, visitam as famílias fundadoras da comunidade, pessoas que vivem entre o mundo urbano e rural, entre o natural e o sobrenatural. Na narrativa, a câmara será valorizada apenas como instrumento tecnológico que aproxima a figura humana e a paisagem natural da região para oferecer intimidade entre o espectador e a celebração, seus símbolos, rituais e fiéis. O que nos interessa é o sentimento religioso, seu registro como um fenômeno visível e dizível. O Reisado é o fio condutor do filme. O critério norteador e definitivo do documentário é a Folia: os devotos, os símbolos do ritual, seus sentidos e significados. Buscaremos uma composição entre palavras, gestos e sons. A própria observação das pessoas na condição de devotas, seus silêncios, gestos, rostos, movimento das mãos, olhares, nos
3 oferecerá as circunstâncias ritualísticas da Folia e nos comunicará uma paisagem ao mesmo tempo visual e sonora. O documentário terá trilha sonora original, composta a partir de sons originais dos versos de improviso e das batidas fortes dos pés dos caretas, das rezas e ladainhas dos devotos, do som da sanfona, da paisagem natural do sertão, sonoridade elaborada partir dos recursos da etnografia e da música, sem comprometer a verossimilhança com a Folia, Ritual e Personagens. Conhecendo o rito a ser documento A ideia de pesquisar o Reisado na cidade de Alto Longá surgiu a partir de um levantamento cartográfico com o objetivo de revelar as manifestações culturais que melhor identificasse seu povo, a forte ligação destes com a cultura do gado. Neste contexto o Reisado toma destaque por apresentar particularidade próprias do lugar bem como da região norte do Estado Piauiense, que reuni religiosidade, cultura e economia. Presente na devoção a Santo Reis, e principalmente nos elementos utilizado para realizar essa celebração, como a presença do boi, e na indumentária dos caretas, personagens que faz parte do reisado, que se vertem com palha de carnaúba, sandália e máscara de couro, seja de boi, ovelha ou bode, revelando a ligação com a economia, que se baseia principalmente da pecuária e cera de carnaúba, como também no cardápio que é servido no dia da festa de Santo Reis, evidencias hábitos e costumes próprios dessa região, como os cozimentos dos gizados de leitão, bodes, ovelhas e galinhas, feitos a lenha, evidencias uma ancestralidades da cultura piauiense, que mantém a memória viva, atualizada. Nesta localidade só se tira reisado em pagamento de um ex-voto, em reconhecimento a uma graça alcançada, no ritual os devotos evocam uma memória coletiva capaz de ligá-los a seus ancestrais, manifestada nos gestos, nos sons e na devoção ao Santo. Embora ressignificados, os festeiros de reis procuram preservar no rito, a semelhança com a qual vivenciaram, no tempo de seus avós, de seus pais, como era celebrado outrora. Alguns símbolos e personagens ainda permanecem como: a Bandeira, a Caixa que leva o Santo, a presença dos Caretas, o Boi, o Sanfoneiro, as Cantadeiras e a figura do Pagador do ex-voto. Durante nove noites, período que vai de 26 de dezembro á 06 de Janeiro, com alguns intervalos para descanso, esse grupo segue peregrinando pelas ruas longaense, batendo de porta em porta para celebrar esse ritual. O que desperta a curiosidade de populares, que vão chegando de toda parte, pois se identificam com a devoção, riem, cantam, dançam, e observam atentamente toda aquela celebração. Agora em maior número, o grupo se aproxima das casas, o curioso é que as mesmas devem estar escuras, em sinal que querem receber o Santo Reis, vendo esse sinal, o Promesseiro
4 devoto põe a Bandeira na porta e com a Caixa do Santo no Colo e junto com as cantadeiras, que são guiadas por seus cadernos de cantigas, cantam o Reis, acompanhando o ritmo sonoro da sanfona e com a musicalidade que é peculiar do reisado piauiense começam a relatar o motivo da promessa. Vale ressaltar que a cada refrão da cantiga de Reis, os Caretas, personagens que anima o rito, respondem com tom hilariante, o que faz com que todos os presentes riem muito. Após ouvirem os relatos da promessa entoados nas cantigas, os donos da casa, geralmente o casal, acende uma luz, a porta se abre, seguram a Bandeira e ajudam a enrolá-la para libera a entrada da Caixa do Santo, ambos o reverenciam e beijam, é papel da mulher acolher o Santo, recebê-lo com devoção. Nesse momento sua expressão facial muda, como se a mesma se revertesse de uma sensibilidade que denota uma prática religiosa aprendida e ritualizada, tudo silencia. Ela faz suas orações, dar a esmola, uma espécie de oferenda ao Santo, que é entregue ao promesseiro, o festeiro devoto. A cada casa o Santo repousa, geralmente ao lado de uma vela acesa, em sinal de respeito á divindade peregrina. Enquanto isso, o dono da casa é surpreendido pelos Caretas, que de forma irreverente se apresentam, pedindo permissão ao Capitão, denominação que atribuem ao dono da casa, para apresentarem seus versos e sapatearem, em troca de pagamento, é claro. Há todo um jogo, o capitão demonstra desinteresse naquele tipo de apresentação, aí então os caretas procuram em seus repertórios os versos mais engraçados para agradá-lo, e nesta peleja, diverte tanto capitão quanto ao público que acompanha o reisado. Aí então o Capitão se rende aos seus apelos e permite que dancem. Os Caretas então, começam a sapatear, ritmado ao som da sanfona e orquestrado pelo o barulho estridente que trazem em suas alparcatas (sandálias de couros) recheadas com latas, que marcam a percussão do ritmo. Eles sapateiam, dançam só, ás vezes se agarram, dançando em dupla, transpiram muito, se divertem e alegram aos que os observam. O ritmo é envolvente, difícil é ouvir e não se contagiar, os pés começam involuntariamente a pisar no chão com mais firmeza, na esperança que os calçados consigam emitir o mesmo som do sapateado dos Caretas, o corpo começa a mexer-se, mesmo que timidamente. Ao final do sapateado, eles jogam lenços de tecidos no ombro do Capitão, este é um sinal que querem o pagamento pela apresentação. O dono da casa na tentativa de vê-los dançar mais um pouco, diz não ter ficado satisfeito com o que viu, daí condiciona o pagamento da dança a mais um pouco de sapateado e eles na tentativa de satisfazê-lo, sapateiam mais um pouco para a alegria de todos. Não demora muito e o Dono da casa lhes traz o pagamento, enrolado nos lenços e os devolve, isso é suficiente para que façam a maior festa.
5 Após serem pagos, oferecem ao Capitão, uma outra apresentação, agora eles falam de um passarinhos que veio de longe, que já nasceu cantando e perguntam se o mesmo não quer conhecê-lo. O capitão experiente, acostumado com a celebração do ritual, já sabe do que se trata do Boi que quer se apresentar, assim como os Caretas, precisa de pagamento para se apresentar, se o Capitão dispõe da boa quantia em dinheiro, não pensa nem duas vezes, permite que se apresente. O boi começa a dançar na toada da sanfona, ritmado na musicalidade puxada pelos Caretas, que mais uma vez alegram o rito. Com seus chicotes provocando a ira do Boi, e este como resposta aos insultos, corre atrás dos mesmos, na tentativa de chifrá-los. Na fuga, os Caretas se misturam aos que estão assistindo que também procuram correr para escapar das chifradas do bicho. Motivos para arrancar risos dos demais que assistem a apresentação. Chega um momento em que o boi se distrai e um dos caretas o sangra, simula perfurar o pescoço do boi com o cabo do chicote ou o atira em sua cabeça, matando o boi dançarino, este cai, facilitando a retirada de sua língua. Os Caretas se sentam para retirada da língua, um fica pegado no rabo e os outros dois seguram a cabeça do boi. Toda essa encenação é para tirar um lenço vermelho, simbolizado como a língua, este é entregue ao Capitão para que o envolva com o pagamento da apresentação e depois o devolva. Após o pagamento, Caretas entoam uma nova canção que tem o poder de ressuscitar o boi, ele vai ganhando vida, dançando, e se levanta, cumprindo as ordens dos Caretas, abençoa a Aiá, que é dona da casa e o Capitão, como forma de agradecimento da celebração do ritual. Assim termina a encenação do rito, e o Promesseiro recolhe a Caixa do Santo, a Bandeira e convida os donos da casa para que no dia 06 de janeiro, venham rezar com ele, festejar o dia de Reis. Toda essa celebração se repete a cada casa em que o reisado se apresente, varando a noite só terminando com o clarear do dia. E assim ocorre durante as noves noites até o dia de Reis. No dia de Santo Reis, a casa do festeiro já amanhece em festa, a vizinhança chega logo cedo para ajudar na preparação dos alimentos que serão ofertados a todo povo que vierem festejar o Santo. Assim, homens, mulheres e crianças passam o dia envolvidos naquela lida, contam causos e riem enquanto cuidam dos preparativo. Tudo que é servido aos convidados, foi ofertado ao Santo Reis durante a peregrinação do reisado. Santo Reis ganha como esmola além de dinheiro, animais como: galinhas, porcos, bodes, carneiros e cereais como: arroz, fécula de mandioca e farinha. Tudo isso pode ser ofertado ao Santo durante a realização do ritual do Reisado e será ofertado aos que comparecerem á festa. A variedade de alimentos a serem servidos depende do que foi ganho, considerando isso, o banquete é composto por guisado de galinha, de porco e bode, que são
6 preparados em caldo, acompanhados de arroz, farofa e feijão. Como se espera muita gente para a festa toda essa comida é feita em grande quantidade, preparadas em panelas grandes e cozidas em fogo á lenha, feito no quintal da casa do festeiro devoto. Ainda cedo, por volta de meio-dia, começam a chega os convidados, neste momento as comidas já devem está prontas, para serem servidas, que vai chegando vai logo comendo e escutando as brincadeiras dos caretas que ao som da sanfona animam a casa com seus versos. Na casa do Festeiro, todos são bem recebidos, nem precisa ter sido convidado pelo devoto, o importante é que queira participar. Com isso todos se sentem acolhidos e quando menos se imagina a casa do devoto está repleta de gente vinda de todos os cantos da cidade. Ainda ao entardecer, dá-se continuidade ao ritual, o festeiro devoto retoma sua obrigação, pega a caixa do Santo, a Bandeira e na companhia dos Caretas e Cantadeiras, retoma novamente sua peregrinação, agora tirará o Reis, em duas casas vizinhas e por última na sua casa do devoto festeiro. Quando chega em sua casa é Ele quem recebe o reisado. Neste momento as Cantadeiras seguram a Caixa do Santo na porta e o festeiro fica dentro de casa para receber o Santo, a Bandeira, as Cantadeiras, os Caretas e Sanfoneiro. Cumprindo o ritual Ele acende as luzes, abre a porta e juntamente com sua mulher recebe a caixa do Santo, beija a imagem de Santo Reis e faz o sinal da cruz. Em seguida, todo o povo entra na casa para rezar um terço oferecido á Santo Reis, nesta parte do rito é que o devoto pagar sua promessa, agradecer ao Santo, pela graça recebida, agradece as pessoas que participaram e ajudaram na celebração do rito e que desta forma ajudaram a pagar sua promessa. Depois que termina o terço e os agradecimentos, todos saem de dentro da casa e vão para o terreiro 2, lá fora o Boi começa a dançar, os caretas sapatearem e jogarem os lenços na multidão que assistem apresentação, o Boi dançando entoado pelo o som da sanfona e provocado pelos Caretas, começa a chifrar aos que assistem, fazendo todos riem e correrem com medo de suas chifradas. Dessa forma, Caretas e boi, vão até altas horas da noite dançando e divertindo todos que vieram assistir o ritual do Reisado. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Alceu Maynard. Folclore Nacional. São Paulo: Melhoramentos, CASCUDO, Luis da Câmara. Folclore do Brasil. Rio de Janeiro. Ed. Fundo de Cultura, MOTT, Luiz. O Piauí colonial: população, economia e sociedade. 2 ed- Teresina: APL, FUNDAC, DETRAN, Espaço localizado na frente da casa do festeiro reservado para apresentação do boi e dos caretas.
7 OLIVEIRA, Noé Mendes de. Folclore Brasileiro: Piauí, Rio de Janeiro, Furarte, POLLAK, Michael. Memória e Identidade social. Estudo de História. Rio de Janeiro, CPDOC-FGV, v.5 n.10, 1992(disponível para download em
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