POR CAUSA DE RITA. Texto de Cyrano Rosalém

Transcrição

1 POR CAUSA DE RITA Texto de Cyrano Rosalém

2 PERSONAGENS ANDRÉ SULA CENÁRIO Um restaurante com piano-bar. AÇÃO André entra e senta-se ao piano. Dedilha um ou outro acorde. Usa um elegante smoking. É educado e extrovertido. ANDRÉ Boa noite, senhoras e senhores. Em primeiro lugar, eu quero agradecer a sua presença. Não são muitas as pessoas que se dispõem a ouvir peças de música clássica num sábado à noite. Há tantas opções aos sábados... (Feliz.) Mas vocês estão aqui: e é isso que importa. Boa comida, boa bebida e boa música. Eu só me responsabilizo pela boa música, o resto é com

3 eles (aponta os garçons.). E, para os que querem boa companhia, eu só posso desejar boa sorte. Afinal, a noite de sábado é para isso mesmo. Então, eu começo aquecendo os corações com a abertura de Scherazade, de Rimski-Korsakov. (Vai tocar.). SULA (Mal-humorada, do fundo do restaurante) Scherazade é de Debussy! (Pausa. Mal-estar de André. Sula veste um longo chiquérrimo.) Além do que, Rimski-Korsakov era russo, e Debussy, francês. ANDRÉ Sim, eles eram contemporâneos... SULA Só mesmo você, André, pra confundir Rimski-Korsakov com Debussy. ANDRÉ (Puto da vida, mas contido) Você prometeu que nunca viria. SULA (Feliz) Eu menti. E foi bom: te flagrei quase enganando a platéia. ANDRÉ (Ignorando) Vamos, então, à abertura de Scherazade, para animar os solitários e excitar os casais de sábado à noite. (Vai tocar.). SULA Posso perguntar uma coisa? (Pausa. Respiração profunda de André.) Você ainda vai usar aquele truque da gravação? (André fica puto. Levanta. Olha Sula com vontade de matar. Ela vem, de onde está sentada.) É. Os senhores vão me desculpar, mas, infelizmente, a verdade tem que ser dita. Este homem, este bonito homem, que estão vendo, não toca nada. Ele ia enganar vocês. Há um gravador escondido,

4 que ia tocar Scherazade, enquanto ele fingia. Querem ver? Solta, Sebastião! (Sebastião, o operador de áudio, solta a abertura de Scherazade, ao piano. Toca um pouco.) Pára, Sebastião! (Ele corta a música.) Gente, e o pior é que a abertura de Scherazade é com violinos. Esta versão é grosseira! Quem você contratou, dessa vez, para tocar? ANDRÉ (Para Sebastião) Sebastião, desde quando a Sula dá ordens para você? SULA Não fica bravo com ele, não. O coitado tem mulher e quatro filhos. Eu fiquei com pena, e dei uma contribuição pra família... ANDRÉ Você subornou meu operador de áudio? SULA Eu só mostrei pra ele como é feio enganar a platéia. ANDRÉ Sula, já não basta tudo o que você me fez, e ainda quer destruir a minha carreira? SULA Que carreira? Que carreira André? Faz cinco anos que te conheço, e só vi você tocar bem, uma coisa: O Bife. Só se for carreira de açougueiro. ANDRÉ (Feroz) Sula, minha querida, olha ao seu redor. Nós estamos em um ambiente fino. Eu não acredito que você teve o trabalho de vir até aqui só pra me humilhar... SULA Ah, você vai me desculpar, André, mas quando eu vi no jornal que você ia tocar aqui, eu pensei: coitadas daquelas pessoas. Vão ficar lá, olhando e acreditando que ele toca alguma coisa... (Escolhe uma senhora da platéia.) A senhora, por exemplo, ia ficar ouvindo e imaginando: que moço bonito,

5 como toca bem. Deve ficar muitas horas, todo o dia ensaiando, ensaiando... Minha senhora: eu fui casada com esse homem, e ele não chegava perto do piano nem pra tirar o pó das teclas. Eu é que ia lá, com o meu espanadorzinho e limpava e tal. Aí, eu chamava: André, você não vai ensaiar? E ele: não. Tô vendo a Xuxa. E no outro dia, eu: André, e o ensaio? E ele: agora não, tô com as mãos cansadas... (Para André.) Você vivia com as mãos cansadas. Onde você cansava tanto essas mãos? No banheiro? ANDRÉ Sula, por favor! SULA Comigo é que não era. Eu nunca senti a habilidade desses dedos... ANDRÉ Sula: já chega! (Para o público.) Os senhores vão nos desculpar, mas... Estamos nos separando, e essas coisas sempre criam mágoa, rancor... SULA Mas o público não tem culpa e você continua enganando todo o mundo. ANDRÉ (Seco) Tem razão. O público não tem culpa. (Pausa.) Como você era maravilhosa, Sula! O que foi que aconteceu com a gente? (Para o público.) Os senhores nem imaginam quando eu a vi pela primeira vez. Ela estava linda, e cantava num bar. (Mudança de luz. Flashback do dia em que se conheceram. Introdução instrumental para a música sensual que Sula vai cantar. André sai. Sula senta na tampa do piano, esperando o momento de começar. É a mesma Sula, mas com postura profissional de cantora da noite. Fatal. Canta languidamente. No meio da canção, André entra e fica

6 olhando, fascinado. Quando a música acaba, ele puxa os aplausos. Ela agradece e vai para trás do piano, como se fosse um camarim. Retoca a maquiagem. André vai até ela.). ANDRÉ Com licença. SULA Sim? ANDRÉ Eu não pude deixar de vir cumprimentá-la. SULA Ah, muito obrigada. Gostou do show? ANDRÉ Não: do seu vestido. (Pausa. Sula nem acredita no que ouviu. Por fim, acha que é uma piada e ri. André ri, também.). SULA Boa... boa... Muito bom. O senhor é espirituoso... ANDRÉ Estou falando sério. (Os dois param de rir. Pausa.). SULA (Seca. Irritada) É. O meu vestido é lindo. (Volta a se maquiar.). ANDRÉ Eu gostaria de comprá-lo. SULA Ele não está à venda. ANDRÉ Eu vou pagar muito bem. SULA Isso é um absurdo... ANDRÉ Principalmente se a voz maravilhosa que está dentro dele vier junta. (Transformação total de Sula, que vai abrindo um sorriso.). SULA O senhor, hein? Salvou-se no último segundo. ANDRÉ Muito prazer. Meu nome é André Paderewski.

7 SULA Ah, é de família russa? ANDRÉ Não, italiana. (Pausa. Ficam se olhando, com sorrisos simpáticos. Ela ri. Ele ri.). SULA O senhor é humorista? ANDRÉ Não, sou pianista. SULA Ah, é músico também! Está com show em algum lugar? ANDRÉ Não. Ainda não estou pronto para o público. SULA Entendo. ANDRÉ Mas estou pronto para várias outras coisas. (Pausa. Sula se aproxima dele.). SULA O quê, por exemplo? (Pausa. André se aproxima dela. Parece que vão beijar-se.). ANDRÉ Eu canto. SULA (Meio decepcionada) Que bom. ANDRÉ É por isso que queria comprar o seu vestido. SULA Com a voz dentro. ANDRÉ Com a voz dentro. SULA E o que você ia fazer com a voz de dentro do vestido? ANDRÉ Uma dupla. SULA Mas a voz de dentro do vestido gostaria de ouvir a voz de dentro desse smoking.

8 ANDRÉ Não tem problema. Basta que a voz de dentro do vestido acompanhe a voz de dentro do smoking. SULA Meu querido: aqui, a voz de dentro do vestido sola, enquanto a voz de dentro do smoking acompanha. Assim está bem? ANDRÉ Claro. SULA Então vamos parar com essa conversa de alfaiataria e vamos cantar. ANDRÉ Você conhece (diz o nome de uma música bem popular, que possa ser cantada em dupla.)? SULA Sim: é uma das minhas preferidas. (Cantam a música em dueto. Clima bem romântico. Ao final, um aplaude o outro, aproveitando para puxar aplausos da platéia. Mudança de luz. Termina o flashback.). ANDRÉ (Sarcástico) Como você era maravilhosa, Sula! SULA (Idem) Como você era gentil, André! JUNTOS Você mudou muito, sabia? ANDRÉ Eu mudei muito? SULA (Cínica) É verdade, nem tanto. Piano você continua não tocando. ANDRÉ Pelo menos, eu não regredi. SULA Como assim? ANDRÉ Antes você cantava...

9 SULA - Eu ainda canto! ANDRÉ Quando eu digo cantar, é CANTAR. Ter extensão de voz, brilho, potência... SULA Eu ainda atinjo a nota que você quiser. ANDRÉ Ah, é? (Vai ao piano.) Então me dê esse dó. (Toca um dó bem agudo. Sula repete, lindamente.) Agora esse Mi. (Toca um Mi uma terça acima do dó anterior. Sula alcança.) Agora, este outro dó. (Toca um dó uma oitava acima do primeiro.). SULA Esse é impossível, André. Ninguém alcança esse. ANDRÉ Como ninguém alcança? Qualquer mulher alcança. Aquela senhora ali (escolhe uma da platéia.) deve alcançar. Vamos lá, minha senhora, repita. (Cena de platéia. Ele vai tocando e tentando fazer mulheres e depois homens alcançarem as notas agudas. Improviso total dos dois atores. Atenção: o dó que ele pediu deve ser impossível de alguém alcançar.). SULA Viu. Ninguém alcança. ANDRÉ Antes você alcançava. SULA Nunca cheguei a esse tom! ANDRÉ Ou será que a vodka diminuiu sua extensão? (Pisou no calo dela. Sula fica, subitamente, muito séria.). SULA Foi maldade dizer isso.

10 ANDRÉ Você vem aqui, estraga o meu show, e sou eu que faço maldade? SULA Como você é, não? ANDRÉ Eu? Você é que é! SULA De jeito nenhum: nunca fui. Você é que é! ANDRÉ Ora, não me venha com essa: você sempre foi! SULA Tá bom: fui meu querido, fui. Mas isso é passado. Agora não sou mais. ANDRÉ Pois eu tenho certeza que ainda será novamente. SULA É? ANDRÉ É. SULA É. (Pausa.). ANDRÉ Sobre o quê nós estamos discutindo? SULA Não sei. Me perdi. ANDRÉ Esse é o seu problema. SULA Qual? ANDRÉ Nunca sabe de nada. Está sempre perdida. SULA Rá, rá, rá... Até parece que você está sempre por dentro de tudo. ANDRÉ (Vai replicar, lembra-se do público) Meu Deus! Por favor, queiram nos desculpar.

11 SULA É, tem razão. Eu não vim aqui para estragar a noite de vocês... ANDRÉ Vamos sair, Sula. A gente continua a conversa lá fora. SULA Claro, claro. Vamos? (Vão saindo.) Espera! ANDRÉ Que foi? SULA Eu vim até aqui por um motivo muito claro: e ainda não disse qual é. ANDRÉ Não pode me dizer lá fora? SULA Nã, nã, nã, nã, não! Vou dizer aqui, na frente da platéia, para que eles sirvam como testemunhas. ANDRÉ Sula: você não vai envolver essas pessoas nos nossos problemas. SULA (Tranqüila) Vou apenas tornar público seu caráter, meu querido. ANDRÉ Ah, não! Eu não vou ficar aqui, para ouvir mais nada. (Vai saindo.). SULA NINHO DE AMOR... (André pára. Pausa. Vira-se lentamente.). ANDRÉ Então é isso... SULA Senhoras e senhores... ANDRÉ Não! Pode deixar! Eu faço questão de explicar para eles. SULA Ótimo! (Afasta-se.).

12 ANDRÉ Foi há pouco tempo. Eu estava em casa compondo, ao piano. (Senta-se ao piano.) Fazia uma canção para Sula. Ela havia saído e, coincidentemente, chegou quando eu terminei. (Mudança de luz. Flashback. André dá um acorde no piano, enquanto Sula entra.). SULA Oi, amor! ANDRÉ (Levanta-se) Sula! (Pausa. Está emocionado.) Fiz uma música pra você! SULA André, que lindo! Desde quando você compõe? ANDRÉ (Ignorando) Desde agora. Quer ouvir? SULA Quero, claro! (Música. André canta NINHO DE AMOR para Sula.). ANDRÉ (Cantando) Estava pensando em nossa casa / Onde tudo me lembra você. / Das paredes à enceradeira / Cada prato me lembra você. / Na porta do armário embutido / Eu vejo tua pele branca / E no blindex do banheiro / Transparências fico a imaginar. / Benzinho, nosso lar é um ninho de amor / Dois artistas a se acasalar / Sou sortudo por viver aqui / Uma fita com a minha Rita. (André puxa aplausos para si mesmo. Sula está em estado de choque, pois, além da música ser um horror, alguma coisa a incomodou profundamente.) E então: gostou? (Pausa. Sula sai, irritada. Mudança de luz. Fim do flashback. Para a platéia.) Dá pra entender as mulheres? A música era linda! (Para Sula que vem voltando.) O que foi que deu em você? Saiu daquele jeito intempestivo e sumiu!

13 SULA Precisei de três meses para pôr a cabeça no lugar, e ter coragem de te fazer a pergunta. ANDRÉ Que pergunta? SULA Quem é essa Rita? ANDRÉ Rita? (Pausa.) Ah, claro, Rita! (Muda para um misto de assombrado e irritado.) Não! Eu não acredito que você foi embora por causa da Rita da letra da música! SULA Claro! Você acha que eu tenho sangue de barata? Esta música está entalada aqui, meu querido. ANDRÉ Meu Deus, como você é lerda! Quando a gente namorava, a gente brincava de ser o quê, além de músicos? SULA Atores antigos. ANDRÉ E você dizia que eu era quem? SULA James Stewart! ANDRÉ E eu dizia que você era quem? SULA Rita Hayworth! (Pausa. Sula fica sem graça.) Ô, Andrezinho!... ANDRÉ Ô, Andrezinho, é o caralho! Você some três meses por causa dessa bobagem e agora me vem com Ô, Andrezinho... Sula: vá se foder! (Desesperada, Sula olha para André, depois para o público. Escolhe uma mulher.). SULA Minha senhora: me dá um conselho. O que é que eu faço? (Improviso sobre a resposta. Escolhe outra. Idem. Escolhe um homem. idem. Faz uma cena de platéia

14 tentando encaminhar as respostas para que André a perdoe. Ao final.) Tá vendo, André? Me desculpa, vai? (Pausa.). ANDRÉ Tá bom. (Sula corre e abraça André.) Mas vê se presta mais atenção nas minhas letras. São metafóricas. SULA Eu te amo, meu metafórico. ANDRÉ E mais uma coisa: controla um pouco o teu gênio. SULA Pode deixar. E para provar que daqui pra frente não vai ter mais briga por bobagem, eu vou te confessar uma coisa. ANDRÉ O quê? SULA Eu sabia desde o começo: Scherazade é de Rimski- Korsakov. (Sorriem. Beijam-se ao som da abertura de Scherazade.). FIM