EDIÇÃO DE MANUSCRITOS: CARACTERÍSTICAS PALEOGRÁFICAS
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- Betty Palha Silveira
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1 EDIÇÃO DE MANUSCRITOS: CARACTERÍSTICAS PALEOGRÁFICAS Carmem Lúcia Toniazzo 1 Elias Alves de Andrade 2 Maria Margareth Costa de Albuquerque Krause 3 A necessidade de construir textos autênticos se faz sentir quando um povo de alta civilização toma consciência dessa civilização e deseja preservar dos estragos do tempo as obras que lhe constituem o patrimônio espiritual. (AUERBACH,1972, p.11) Re s u m o : Este artigo visa ao estudo filológico de dois manuscritos pertencentes ao Arquivo Público Municipal de Cáceres, Mato Grosso, datados do século XIX, de acordo com os princípios da Filologia e da Crítica Textual, com a apresentação das edições semidiplomática e fac-similar seguidas da análise de suas características paleográficas. Este estudo justifica-se pela importância histórica e social dos referidos documentos para a cidade de Cáceres, além do valor linguístico que apresentam, uma vez que neles é possível verificar algumas mudanças ocorridas na língua portuguesa, especialmente no tocante a aspectos paleográficos, procurando-se, assim, contribuir para a caracterização do que se tem denominado dialeto caipira no português brasileiro. Trata-se de trabalho articulado aos projetos de pesquisa: Estudo do Português em manuscritos produzidos em Mato Grosso a partir do século XVIII (MeEL/UFMT), Filologia bandeirante (USP, UFMG, UFGO e UFMT) e Expansão do Português paulista através do rio Tietê até Mato Grosso a partir do século XVI (USP). Pa l a v r a s-c h a v e s: filologia, crítica textual, linguística, manuscritos, paleografia 1 Mestranda em Estudos da Linguagem UFMT. 2 Professor Associado II do Departamento de Letras e do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem do Instituto de Linguagens da UFMT, Doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela USP. 3 Mestranda em Estudos da Linguagem UFMT e professora da UNEMAT. POLIFONIA CUIABÁ EDUFMT Nº 19 P issn x
2 Manuscript editions: paleographic characteristics Ab s t r a c t: This article is a philological study of two manuscripts that belong to the Municipal Archive of Cáceres, Mato Grosso. The two manuscripts are dated from the XIX century in accordance with the principles of Philology and Textual Criticism with the presentation of the semidiplomatic and facsimile editions followed by the analysis of their paleographic characteristics. This study is justified by the historic and social importance of these documents for the city of Cáceres because of their linguistic values as some changes in the Portuguese language can be seen in them especially regarding to paleographic aspects. In this way this study contributes to the characterization of what has been named rural dialect ( falar caipira ) in Brazillian Portuguese. The study is part of the large research projects running by several universities in Brazil involving Studies of the Portuguese language in the manuscripts produced in Mato Grosso dating from the XVIII century (MeEL/UFMT), Pioneer Philology (USP, UFMG, UFGO, UFMT) and Expansion of São Paulo Portuguesec ( português paulista ) across the Tietê river to the state of Mato Grosso dating from the XVI century (USP). Ke y w o r d s: philology, textual criticism, linguistics, manuscripts, paleography. Introdução Este artigo propõe-se a fazer um estudo filológico de documentos manuscritos visando, dentre outros objetivos, à sua preservação, já que, como textos antigos, possuem valor não só histórico e cultural, mas principalmente linguístico, especialmente na perspectiva do estudo do que vem sendo ultimamente chamado de português brasileiro. Para tanto, serão feitas as edições fac-similar e semidiplomática e a análise paleográfica de dois manuscritos do século XIX, o Ms1, de 20 de maio de 1885, e o Ms2, de 18 de novembro de 1895, pertencentes ao Arquivo Público Municipal de Cáceres-MT, seguindo-se os principais procedimentos pertinentes à Filologia e à Crítica Textual, conforme 44
3 abordagem a propósito feita por Spina (1994), Azevedo Filho (1987), Acioli (2003), Spaggiari & Perugi (2004) e Cambraia (2005), dentre outros. 1. Tipos de edição Há diversas formas de tornar acessível ao público um texto, sendo, para tanto, fundamental a escolha do tipo adequado de edição a ser utilizado, pois cada um tem características próprias, desde a edição fac-similar, em que o grau de intervenção do editor é nulo, até a interpretativa, marcada por forte intervenção do editor. A opção aqui é pela edição semidiplomática, por caracterizar-se por baixo grau de intervenção do editor, sendo, por isso, destinada a um público mais restrito e especializado, dentre os quais linguistas, historiadores, antropólogos etc. (CAMBRAIA, 2005, p.95) Edições fac-similar e semidiplomática Editar um texto consiste em reproduzi-lo lançando-se mão de variados graus de mediação. Aqui optou-se pela edição fac-similar ou foto-mecânica, entendida como a fotografia do texto, que reproduz com muita fidelidade as características do texto original, e pela semidiplomática, que, segundo Spina (1994, p. 85), representa um tentativa de melhoramento do texto, com a divisão das palavras, o desdobramento das abreviaturas, constituindo-se assim em uma forma de interpretação do original, pois elimina as dificuldades de natureza paleográfica suscitadas pela escritura Critérios adotados para a edição semidiplomática Com o intuito de unificar os critérios de transcrição e edição de manuscritos, a Comissão de Sistematização e Redação do I Encontro Nacional de Normatização Paleográfica fixa, em novembro de 1990, diretrizes e convenções, revistas durante o II Encontro Nacional de Normatização Paleográfica, em 1993, e reformuladas por ocasião do II Seminário para a História do Português Brasileiro, realizado no período de 10 a 15 de maio de1998, em Campos do Jordão São Paulo. 45
4 Assim, seguindo-se as orientações do II Seminário para a História do Português Brasileiro, realizado em Campos do Jordão-SP, em 1998, a edição semidiplomática dos manuscritos Ms1 e Ms2 adotará os seguintes critérios: 1. Os manuscritos e as transcrições serão numerados; 2. As linhas serão numeradas de cinco em cinco; 3. A acentuação será mantida conforme no original; 4. A pontuação original será mantida; 5. As maiúsculas e minúsculas serão mantidas; 6. A ortografia original será mantida, não se efetuando nenhuma correção ou atualização; 7. As abreviaturas serão desdobradas e as letras omitidas marcadas em itálico; 8. As assinaturas serão indicadas por diples; 9. Os caracteres impressos serão registrados entre chaves; 10. O s caudado será transcrito como s ; 46
5 Edições fac-similar e semidiplomática dos manuscritos Ms1 47
6 Transcrição 01 1r 4 Identificação: Arquivo Público Municipal de Cáceres Assunto Comunicação de nomeação de alferes honorário do exército pelo presidente da província de Mato Grosso Local São Luiz de Cáceres MT Data 20 de maio de 1885 Assinatura Ideógrafo2 {Numero} 161 {Secretaria da Presidencia de Matto-Grosso} {Em Cuyabá,} 20 {de} Maio {de 188} 5 {1ª Secção} {Illustrissim}os {Senhor}es 5 De ordem de Sua Excellencia o Senhor Presidente da provincia, comunico a Vossas Senhorias, para os fins convenientes, que por acto d esta data foi nomeado o alferes honorario do exercito Indalecio da Silva Rondon para servir o lugar de Juiz comissario de medições desse municipio; ficando marcado 10 o prazo de um anno, contado de hoje, para dentro d elle serem medidas e demarcadas as terras do mesmo municipio, comprehendidas nas attribuiçoões do Juiz comissario. Deus Guarde a Vossas Senhorias Illustrissimos Senhores Presi dente e mais vereadores da Camara 15 Municipal de Saõ Luiz de Caceres. O secretario, <José Marques dasilva Pereira> 4 A identificação 1r refere-se a fólio nº 1, recto, ou seja, frente. 5 O Ms1 é documento ideógrafo, ou seja, é produzido por escrivão a pedido de quem o idealizou, que o assina. 48
7 Ms2 49
8 Transcrição 02 1r Identificação: Arquivo Público Municipal de Cáceres Assunto Local Certidão de batismo de filho legítimo de escrava lavrada pelo vigário de São Luís de Cáceres-MT São Luiz de Cáceres-MT Data 18 de novembro de 1895 Assinatura Apógrafo 6 Certifico que revendo o Livro de assentamentos dos baptismos dos ingenu - os celebrados nesta Parochia, nelle á folhas 5 verso, deparei com 05 o assento pedido, que de verbo ad verbum é pelo theôr seguinte = Aos vinte nove de Maio de mil oitocentos e setenta e quatro baptizei e puz os Santos Oleôs 10 á Moysés, nascido em principios de Junho de 1873, anno passado, filho legitimo de Eusebio Garcia, e Henriqueta, escrava de Vespasiano da Silva Nogueira; 15 foi padrinho Antonio Cardoso da Silva, e madrinha a liberta Maria Antonia. E para cons= tar lavrei este termo, em que me assigno. O vigario Casimiro 20 Ponce Martins Nada mais se continha em o dito assento, que fielmente copiei, e a o qual me reporto. Saõ Luiz de Caceres 18 de Novembro de <Padre Casimiro Ponce Martins.> Parocho encõmendado. 6 O documento Ms2 é apógrafo, por tratar-se de cópia. 50
9 2. Paleografia Para se proceder a uma análise filológica adequada de um corpus, como o Ms 1 e o Ms 2, é preciso recorrer a outras ciências que auxiliam a Filologia, dentre as quais a Paleografia, que fornece subsídios também à História, à Antropologia, ao Direito e a outras ciências que tenham a escrita como material de análise. Originária do grego, a palavra Paleografia significa: palaios = antigo e graphien = escrita, segundo Spina (1977). Por sua vez, Acioli (1994, p. 5) afirma ser a Paleografia o estudo da escrita feita sobre material brando ou macio, como as tábuas enceradas, o papiro, o pergaminho e o papel, podendo recorrer aos conhecimentos de ciências afins e vice-versa. A paleografia é, assim, antes de tudo, um instrumento de análise de documentos históricos. Não cabe ao paleógrafo somente ler textos; a ele compete igualmente datá-los, estabelecer sua origem e procedência e criticá-los quanto à sua autenticidade, levando em consideração o aspecto gráfico dos mesmos. Das ciências auxiliares da História, a Paleografia é a mais importante, porque ela se dedica ao estudo da escrita sobre material brando, principal fonte de informação do historiador. (ACIOLI, 1994, p. 6). Segundo Cambraia (2005, p. 23-5), modernamente, a paleografia apresenta duas finalidades: a teórica, que se preocupa em entender como os sistemas de escrita se constituem sócio-historicamente, e a pragmática, que se detém na capacitação de leitores modernos para avaliarem a autenticidade de um documento com base na sua escrita e de interpretarem adequadamente as escritas do passado. Além disso, continua o citado autor: A relevância da Paleografia para o crítico textual é bastante evidente: para se fixar a forma genuína de um texto, é necessário ser capaz de decodificar a escrita em que seus testemunhos estão lavrados. É muito comum, aliás, existirem edições de texto que apresentam falhas decorrentes de equívocos na leitura do modelo por parte do editor. (CAMBRAIA, 2005, p. 23-4). 51
10 A análise paleográfica, minuciosa por natureza, requer do pesquisador dedicação e muitas horas de trabalho, exigindo um olhar atento para cada palavra do texto. A paciente tarefa de vasculhar instituições, como bibliotecas e mosteiros, lendo documentos, observando-lhes letra e forma, era efetuada, em sua maioria, por religiosos das mais diversas ordens. A necessidade de analisar a autenticidade e a veracidade dos documentos para poder julgar sobre a aceitação ou a rejeição do seu conteúdo surgiu no início da Idade Média, quando se organizaram verdadeiras coletâneas de abreviaturas como, por exemplo, os Comentari, espécie de dicionário que reuniu cerca de Notas Tironianas, atribuídas a Sêneca, sistema de abreviar as palavras, criado para copiar mais rapidamente os discursos pronunciados no Senado Romano. Mais tarde, como consequência da Guerra dos Trinta Anos ( ), ocorrida entre protestantes e católicos na Alemanha, castelos, terras e propriedades foram abandonados, os arquivos desapareceram e, com eles, os documentos, não tendo, dessa forma, os proprietários como comprovar suas posses. Os juízes e os tribunais, então, assoberbados com a quantidade de documentos falsificados, tomaram a iniciativa de fazer um estudo minucioso dos mesmos. Consolida-se, assim, a Paleografia como instrumento de perícia forense, tornando-se ciência auxiliar da Justiça. Estabeleceram-se, assim, os princípios da Paleografia à qual cabe, dentre outras coisas, determinar o autor, o tempo e o lugar em que um determinado documento foi escrito, fornecendo ao perito os conhecimentos indispensáveis para se distinguir os documentos verdadeiros e autênticos dos falsos, deturpados, apócrifos, adulterados, etc. A Paleografia foi introduzida como cátedra, primeiramente na Alemanha, nas escolas de Filosofia e Letras, nos cursos de História, Filologia e Direito, tendo-se formado um bom número de cultivadores da nova ciência, o que ocorreu também na França, Itália e Alemanha. No Brasil, no final do século XIX e início do XX, os estudos paleográficos desenvolveram-se inicialmente graças à iniciativa particular de historiadores. Apenas em 1952, a Paleografia 52
11 foi introduzida na Universidade de São Paulo USP, como disciplina no curso de História. A seguir, estão relacionadas algumas das finalidades da Paleografia, segundo Román Blanco, citado por Dias e Bivar (1986, p.16-17): Ensinar a ler corretamente e sem erros todo tipo de documento, tanto antigo como moderno. Dar a conhecer a evolução da escrita através dos tempos, das nações e dos indivíduos. Determinar o autor, o tempo e o lugar em que o documento foi escrito. Fornecer ao perito os conhecimentos indispensáveis para saber distinguir os documentos verdadeiros e autênticos dos falsos, deturpados, apócrifos, adulterados, etc. Descrever as letras (forma, traçado, ângulo, módulo, peso). Descrever os sinais braquigráficos (abreviaturas) atribuindo-lhes significado exato e completo. Descrever os sinais estigmológicos (pontuação) Comentários paleográficos dos manuscritos Os documentos identificados aqui como Ms 1 e Ms 2 são constituídos de 17 e 26 linhas, respectivamente, em parágrafos únicos. O escriba do Ms 1 possui mãos hábeis, ou seja, é detentor de certo grau de instrução, pois a escrita, em papel pautado, apresenta respeito às margens, homogeneidade e regularidade das letras quanto ao traçado ou ductus ordem de sucessão e sentido de seus traços, ângulo relação entre seus traços verticais e a pauta horizontal, módulo sua dimensão em relação à pauta, e peso relação entre seus traços finos e grossos (CAMBRAIA, 2005, p.24). O Ms2, produzido em papel pautado, o que facilita o traçado ou ductus das letras, apresenta respeito às margens, mas sinaliza ter sido produzido por amanuense ou copista de mãos inábeis, ou seja, provavelmente possuidor de baixo grau de instrução, pois as letras são irregulares quanto à sua morfologia, traçado ou ductus, módulo, ân- 53
12 gulo e peso, além de mostrarem, em geral, um desenho de formas tremidas. Pode-se classificar a escrita dos dois manuscritos como humanista, com tipo de letras cursivas, traçadas, no âmbito da palavra, em sua maioria sem descanso das mãos, especialmente no Ms1, já que, no Ms2 predomina a separação entre letras. Esse tipo de escrita, de acordo com Higounet (2003, p ), surgiu em manuscritos de 1423, a partir da escrita carolíngea, por obra dos humanistas italianos, sendo caracterizada como suave, traçada com penas pontudas, fortemente inclinada para a direita, com todas as letras de uma mesma palavra unidas. Observase, nos documentos sob análise, que os escribas respeitam a pauta, apresentam regularidade da escrita na inclinação para a direita, em ambos estabelecendo as fronteiras entre palavras, diferentemente do que se constata em manuscritos produzidos até, aproximadamente, meados do século XIX. Ms1 e Ms2 apresentam características ortográficas pertencentes ao que Gonçalves (2003, p. 40) chama de sistema misto, que se constitui na convergência de vários princípios como a etimologia e a pronúncia, podendo verificarse versões mais ou menos fortes de etimologia, de grafias históricas, de adopção de grafias fonéticas, ou de sujeição ao uso (sic). Exemplos dessas características nos documentos sob análise ocorrem em Cuyabá (Ms1-2) 7, Moysés (Ms2-10), em que a semivogal do ditongo está representada por y, podendo ocorrer também como j. A duplicação de consoantes assim como o uso de encontros consonantais, por influência do período ortográfico etimológico ou pseudo-etimológico era a tônica da grafia, como se pode verificar pelo uso de ct, cç, pt, gn, ch, th, tt, ll, nn, mm, além, naturalmente, do ss e rr, usual ainda hoje, como em: acto (Ms1-6), Secção (Ms1-3), baptizei (Ms2-9), baptismos (Ms2-2), assigno (Ms2-19), Parochia (Ms2-3), Parocho (Ms2-26), theôr (Ms2-6), Matto-Grosso (Ms1-1), e attribuições (Ms1-12), d elle (Ms1-10), nel-/le (Ms2-3 e 4) 8, Illustrissimos (Ms1-4), lllustrissimos 7 Leia-se Ms2-2 como manuscrito 2, linha 2. 8 A barra diagonal (/) indica mudança de linha nas transcrições. 54
13 (Ms1-14), Excellencia (Ms1-5), anno (Ms1-10 e Ms2-11) e com/munico (Ms1-5 e 6). Registra-se também a presença de h como em comprehendidas (Ms1-12). O uso de letras maiúsculas é outra característica dos manuscritos sob análise aqui, como se pode verificar em Maio (Ms1-2), Guarde (Ms1-13), Junho (Ms 2-11), Livro (Ms2-1) e Presidente (Ms1-5 e 14). Observa-se, também, a presença de s caudado em desse (Ms 1-9) e comissario (Ms1-9 e 12), além da indefinição quanto ao uso de s ou z, comum até final do século XVIII, como em puz (Ms2-9). Registram-se no corpus abreviaturas por sigla, como em: Sua (Ms1-5), Vossas (Ms1-6 e 13), ou por síncope com letras sobrepostas, como em: Illustrissimos Senhores (Ms1-4), Illustrissimos Senhores (Ms1-14), Excellencia (Ms1-5), Senhor (Ms1-5), Senhorias (Ms1-6), Senhorias (Ms1-13), Silva (Ms2-14) e Padre (Ms2-25). A divisão silábica é assinalada com hífen simples, como no Ms1, em: d es-/ta (6 e 7) e In-/dalecio (7 e 8), e no Ms2, em: assen-/tamentos (1 e 2), ingenu-/os (2 e 3), nel-/le (3 e 4), seguin-/te (6 e 7), principi-/os (10 e 11) e pas-/ sado (11 e 12), e hífen duplo, como no Ms2, em: cons=/ tar (17 e 18). Em seguin-/te = Aos vinte nove... (Ms2-7), aparece o hífen duplo, e em Ponce Martins Nada mais... (Ms2-20), o simples, nestas situações sinalizando, não separação silábica, mas dois pontos, na primeira ocorrência, e travessão ou ponto final, na segunda. Com respeito à acentuação gráfica, os manuscritos apresentam certas características como a acentuação de monossílabo tônico, a exemplo de é (Ms2-6), das palavras oxítonas, como se pode ver em Cuyabá (Ms1-2), José (Ms1-17), Moysés (Ms2-10) e theôr (Ms2-6). Por outro lado, não se acentuam as paroxítonas terminadas em ditongo, critério estabelecido em acordos ortográficos posteriores, como em Presidencia (Ms1-1), provincia (Ms1-5), honorario (Ms1-7), comissario (Ms1-9 e 12), In-/dalecio (Ms1-7 e 8), municipio (Ms1-11), secretario (Ms1-16), ingenu-/os (Ms2-2 e 3), Parochia (Ms2-3), Eusebio (Ms2-12), Antonio (Ms2-15), Antonia (Ms2-17) e vigario (Ms2-19), mas curiosamente acentuando-se Oleôs (Ms2-9). Também as proparoxítonas não são acentuadas, como em legitimo (Ms2-12), Cace- 55
14 res (Ms1-15 e Ms2-23) e Parocho (Ms2-23), curiosamente acentuandos-se Oleôs (Ms1-2). Além do mais, a crase é indicada pelo acento agudo e não pelo grave, como em á folhas (Ms2-4) e á Moysés (Ms2-10), sendo que, a rigor, nesta última ocorrência ela não caberia, pois trata-se de nome próprio masculino, como mais tarde ficou estabelecido em acordos ortográficos. Já em encõmendado (Ms2-26), além da presença da consoante m como possível marca de nasalização, há ainda o til (~) para indicá-la. A propósito da pontuação empregada nos dois documentos em estudo, vale dizer que pouco difere daquela usual atualmente. Há registros, por exemplo, de uso da vírgula, como hodiernamente, em: De ordem de Sua Excellencia, o Senhor Presidente da provincia, com/munico... (Ms1-5 e 6), no caso de aposto, e também, de seu uso, corriqueiro até fins do século XVIII, como em:...filho legitimo de Eusebio/Garcia, e Henriqueta... (Ms2-12 e 13), antes da conjunção aditiva e, utilizada aqui em sintagma, unindo dois substantivos. Observa-se, por fim, que o apóstrofo foi utilizado para supressão de vogal antes de outra vogal, como em d es-/ ta (Ms1-6 e 7) e d elle (Ms1-10), o emprego da expressão latina de verbo ad verbum (Ms2-5 e 6), até porque trata-se de cópia de texto original redigido provavelmente por padre, além de o Ms1 apresentar caracteres impressos, indicando ser ocorrência já costumeira em repartições públicas. Considerações finais A Filologia, entendida como um dos campos de estudo da linguística, tendo por objetivo o estudo da língua sob a perspectiva histórica, no que é auxiliada pela Paleografia e Diplomática, dentre outras, trabalha o texto, sem o que ela não subsiste, restituindo-o à sua genuidade, enfim, à última vontade de seu autor, preparando-o para o estudo linguístico, histórico, antropológico etc. Assim, descrever e compreender a língua portuguesa utilizada no Brasil em séculos anteriores, quanto aos aspectos de natureza paleográfica, por exemplo, como se procurou fazer aqui com as características ortográficas 56
15 dos documentos identificados com Ms1 e Ms2, é tarefa do filólogo ou crítico textual. Cáceres, local de produção dos documentos aqui estudados, por estar situada na região de expansão da fronteira oeste do Brasil, na antiga província de Mato Grosso, desmembrada da Capitania de São Paulo, desempenhou estratégico papel, não apenas do ponto de vista políticogeográfico, pela proximidade com Vila Bela da Santíssima Trindade, Cuiabá e a Bolívia, e por estar às margens do Rio Paraguai, intensamente utilizado desde o século XVI pelos bandeirantes paulistas, mas também por pertencer à área de influência das monções, portanto de expansão da Língua Portuguesa. Estudos filológicos de documentos manuscritos produzidos no Brasil, a exemplo de Ms1 e Ms2, em especial por pertencerem à área de abrangência do dialeto caipira, visam a trazer alguma contribuição para a compreensão e descrição do que se tem denominado português paulista, língua trazida pelos bandeirantes para a fronteira oeste do Brasil, alimentando as discussões do que ultimamente se tem chamado de Português Brasileiro. Referências ACIOLI, Vera Lúcia Costa. A escrita no Brasil colônia. Recife: Massangana/Fundação Joaquim Nabuco, ANDRADE, Elias Alves de. Estudo paleográfico e codicológico de manuscritos dos séculos XVIII e XIX: edições fac-similar e semidiplomática. São Paulo: USP, Tese (Doutorado), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Iniciação em crítica textual. São Paulo: EDUSP, CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual. 1ª edição. São Paulo: Martins Fontes, CASTRO, Ivo. O retorno à filologia. In: PEREIRA, Cilene da Cunha; PEREIRA, Paulo Roberto Dias. Miscelânia de estudos lingüísticos, filológicos e literários in memoriam Celso Cunha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p
16 DIAS, Madalena Marques; BIVAR, Vanessa dos Santos Bodstein. Paleografia para o período colonial. In: Paleografia e fontes do período colonial brasileiro. Estudos CEDHAL Nova Série nº 11. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2005, p FLEXOR, Maria Helena Ochi. Abreviaturas: manuscritos do século XVI a XIX. 2ª edição. São Paulo: Editora UNESP; Edições do Arquivo Público de São Paulo, GONÇALVES, Maria Filomena. As idéias ortográficas em Portugal e pronunciar com acerto a Língua Portuguesa de Madureira Feijó a Gonçalves Viana ( ). Lisboa: Edição Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia, MCES, HIGOUNET, Charles. História concisa da escrita. São Paulo: Parábola Editorial, MELO, Gladstone Chaves de. Iniciação à filologia e à língua portuguesa. 4ª edição. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, SAMARA, Eni de Mesquita. Fontes coloniais. In: Paleografia e fontes do período colonial brasileiro. Estudos CEDHAL Nova Série nº 11. São Paulo: Humanitas/FFLCH-USP, 2005 p DIAS, Madalena M.; BIVAR, Vanessa dos S. B. Paleografia e fontes do período colonial brasileiro. Estudos CEDHAL-Nova Série, nº 11, São Paulo: Humanitas/FFLCH-USP, 1986, p SANTIAGO-ALMEIDA, Manoel Mourivaldo. Aspectos fonológicos do português falado na baixada cuiabana: traços de língua antiga preservados no Brasil (Manuscritos da época das Bandeiras, século XVIII). São Paulo: USP, Tese (Doutorado), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, SPAGGIARI, Bárbara e PERUGI, Maurizio. Fundamentos da Critica Textual. Rio de Janeiro: Lucerna, SPINA, Segismundo. Introdução à Edótica (crítica textual). 2ª edição. São Paulo: Ars Poética/EDUSP, TEYSSIER, Paul. História da língua portuguesa. 7ª Edição. Lisboa: Sá da Costa, Recebido em 07/04/2009 Aceito em 03/06/2009
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