HETEROGENEIDADE TEXTUAL E AQUISIÇÃO DOS CONHECIMENTOS NO ENSINO FUNDAMENTAL: AS MÚLTIPLAS CONFIGURAÇÕES DO TEXTO EXPOSITIVO
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1 HETEROGENEIDADE TEXTUAL E AQUISIÇÃO DOS CONHECIMENTOS NO ENSINO FUNDAMENTAL: AS MÚLTIPLAS CONFIGURAÇÕES DO TEXTO EXPOSITIVO Luis Passeggi Universidade Federal do Rio Grande do Norte INTRODUÇÃO A noção de heterogeneidade textual está bem estabelecida entre os estudiosos do texto e do discurso, e pode ser entendida como o fato de que um texto nunca é homogêneo. Ela abrange tanto a heterogeneidade existente entre os diferentes textos e tipos de texto (a questão dos gêneros textuais) como a heterogeneidade existente num mesmo texto. As pesquisas sobre a heterogeneidade textual interessam diretamente a formação docente e as práticas pedagógicas, pois fornecem elementos para uma melhor compreensão do papel da linguagem no aprendizado e para um aprimoramento dos procedimentos didáticos. Desenvolvidas na confluência das ciências da educação, das ciências da linguagem e da psicologia, (Swales, 1990; Adam 1992; Bhatia, 1993; Bronckart, 1999; Marcuschi, 2000), elas propiciam a integração de diferentes correntes teóricas e áreas: abordagens sócio-históricas, de psicologia e lingüística cognitivas, de psicologia e lingüística culturais, entre outras. O objetivo desta exposição é apresentar alguns resultados de pesquisa sobre a heterogeneidade do texto expositivo escrito, no ensino fundamental. Nosso trabalho visa a contribuir para as demandas do ensino-aprendizagem que envolvem diretamente questões de linguagem, claramente colocadas, aliás, nos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs, especialmente, os de Língua Portuguesa, Ciências Naturais, História e Geografia. O TEXTO EXPOSITIVO Uma citação dos PCNs de Língua Portuguesa sintetiza a problemática que nos ocupa e justifica nossa pesquisa: Cabe... à escola viabilizar o acesso do aluno ao universo dos textos que circulam socialmente, ensinar a produzí-los e a interpretá-los. Isso inclui os textos das diferentes disciplinas com os quais o aluno se defronta sistematicamente no cotidiano escolar e, mesmo assim, não consegue manejar, pois não há um trabalho planejado com essa finalidade. Um exemplo: nas aulas de Língua Portuguesa, não se ensina a trabalhar com textos expositivos como os das áreas de História, Geografia e Ciências Naturais; e nessas aulas também não, pois considera-se que trabalhar com textos é uma atividade específica da área de Língua Portuguesa. Em conseqüência, o aluno não se torna capaz de utilizar textos cuja finalidade seja compreender um conceito, apresentar uma informação nova, descrever um problema, comparar diferentes pontos de vista, argumentar a favor ou contra uma determinada hipótese ou teoria. É essa capacidade que permite o acesso à informação escrita com autonomia, é condição para o bom aprendizado, pois dela depende a possibilidade de aprender os diferentes conteúdos. (PCNs de Língua Portuguesa, p ). As funções do texto expositivo são, pois, compreender um conceito apresentar uma informação nova descrever um problema
2 comparar diferentes pontos de vista argumentar a favor ou contra uma determinada hipótese ou teoria Essas funções são indispensáveis para a apresentação e explicação dos conteúdos de ensino, bem como para expressar a própria dinâmica do pensamento científico. Por esse motivo, os PCNs colocam o domínio do texto expositivo escrito como condição para um bom aprendizado, posto que muitos conteúdos, a começar pelos dos livros didáticos, são apresentados sob forma expositiva. Paradoxalmente, o ensino de Língua Portuguesa não parece prever nenhum tratamento específico para esse gênero textual, apesar do reconhecimento de que o aprendizado dos conteúdos de ensino depende dele. ESTRUTURAS SEMÂNTICAS DO TEXTO EXPOSITIVO Na nossa perspectiva, as estruturas semânticas são construções que abrangem um enunciado, ou uma seqüência de enunciados, gramaticalmente e lexicalmente conectados, e que correspondem à estruturação de um conteúdo conceitual, moldado pelas convenções lingüísticas. Nesse sentido, as estruturas semânticas equivalem, globalmente, ao que se denomina ato de fala, no sentido de Searle (1969). Entretanto, diferentemente da teoria dos atos de fala, focalizamos a construção gramatical desse conteúdo, e admitimos que uma estrutura semântica pode ser constituída por uma seqüência de enunciados (de forma semelhante às seqüências propostas, num outro contexto teórico, por J.M. Adam, 1992). Particularmente importante para nós é a noção de interpretação cognitiva (que utilizaremos como equivalente do inglês construal) e que corresponde à capacidade que todo falante tem de conceitualizar / interpretar a mesma situação de diferentes maneiras. Comparemos os seguintes enunciados: Os cometas eram os únicos corpos celestes pequenos que eram conhecidos desde antes da invenção do telescópio pois, quando se aproximam do Sol, eles se tornam visíveis. Quando os cometas se aproximam do Sol, eles se tornam visíveis. Por esse motivo, eram os únicos corpos celestes pequenos que eram conhecidos desde antes da invenção do telescópio. Esses enunciados expressam uma mesma situação, um mesmo conteúdo conceitual, mas suas interpretações cognitivas são diferentes em decorrência das construções gramaticais utilizadas. A interpretação cognitiva é inevitável: não há uma maneira completamente neutra de apreender uma situação, embora haja, naturalmente, formas típicas de fazê-lo. No que se refere ao texto expositivo, diversas estruturas semânticas são particularmente importantes: entre elas, destacamos a explicação, a constatação, a definição e a comparação. Teríamos, assim, as seguintes construções: construções explicativas: explicações de tipo porque e como ; construções constativas: apresentação de uma informação, constatação de fatos científicos indiscutíveis que, freqüentemente, são o ponto de partida da explicação ou exemplificação; construções de definição: definição de conceitos científicos ou termos técnicos; construções comparativas: estabelecimento de comparações entre constatações, explicações, etc. Embora essas estruturas sejam centrais no texto expositivo, elas não se situam todas no mesmo nível, nem se encadeiam de forma idêntica: uma explicação é explicação de alguma coisa
3 constatada, mas uma constatação não precisa, necessariamente, ser explicada; uma definição caracteriza um conceito, e uma comparação relaciona duas entidades. ALGUNS RESULTADOS Apresentamos, a seguir, alguns resultados de nossa pesquisa, referentes à construção explicativa no texto expositivo, assim como à própria concepção desse tipo de texto entre os professores. Os dados empíricos são constituídos pelos textos expositivos de um livro didático de Ciências Naturais, da 4a. série Caminhos da Ciência. vol. 4, de Sampaio, Carvalho, 2000 recomendado com distinção pelo Programa Nacional do Livro Didático - PNLD, para Foram examinados aproximadamente 100 textos expositivos (45000 palavras), distribuídos em cinco unidades didáticas: Estudo dos astros; Sistema solar; Planeta Terra; Estações do ano; Como funciona o corpo humano? A construção explicativa As construções explicativas, que apresentam as causas ou as razões de uma dada situação, estão entre as estruturas semânticas mais importantes do texto científico-pedagógico. Priorizamos as construções gramaticalmente marcadas (tipos de frase, conectivos, expressões típicas, etc.), que não coincidem, necessariamente, com as classificações gramaticais habituais. Assim, as construções explicativas são marcadas por conjunções de coordenação, conjunções de subordinação (causais e consecutivas) ou outras expressões. Analisamos essas construções em nossos dados, focalizando os conectivos de tipo porque (de causa) e por isso (de conseqüência), correspondendo, basicamente às conjunções explicativas, causais e consecutivas. Vejamos, agora, alguns resultados: 1º) Identificamos 57 ocorrências de construções explicativas, distribuídas em dois grupos: as construções de tipo porque, mais numerosas, com 38 ocorrências. as construções de tipo por isso, com 19 ocorrências; 2º) 15 ocorrências de tipo porque se concentram em três temas: Sistema solar, Planeta Terra, Corpo humano. 3º) Já as construções de tipo por isso se distribuem regularmente entre os temas, sem concentração aparente. Esses dados indicam que a explicação causal é a mais freqüente e sugere uma tendência no sentido de que certos objetos de conhecimento, os relativos a fenômenos da natureza como os eclipses e a erosão, e alguns do corpo humano, têm uma interpretação cognitiva tipicamente explicativa causal (porque). Entretanto, para outros objetos de conhecimento relativos a certos aspectos do corpo humano (a pele, a alimentação), a interpretação explicativa causal não seria a predominante, sendo utilizados procedimentos que indicam conseqüência. Estamos diante de formas diferentes de explicar certos objetos de conhecimento, seja pela causa seja pela conseqüência, e provavelmente a escolha dessas interpretações cognitivas depende de fatores culturais e pedagógicos que devem ser analisados mais de perto. Do discurso institucional às práticas pedagógicas Paralelamente, temos alguns resultados sobre a concepção que os professores têm do texto expositivo escrito no ensino de português em escolas de Natal-RN, e como ela afeta a produção
4 desse tipo de texto. Consideramos: (1º) a representação do gênero textual expositivo pelos professores, manifestada em entrevistas; (2º) o tratamento do gênero nos livros didáticos; (3º) as práticas pedagógicas observadas em sala de aula. Os resultados indicam que: 1º) Os professores associam o texto expositivo escrito a uma concepção tradicional, informativa e representacional da linguagem, insuficiente, pois não abrangeria aspectos argumentativos e expressivos. Também recusam a aula expositiva, porquanto associada a uma pedagogia autoritária, centrada no professor e meramente conteúdística. Há, pois, uma ruptura oralidade / escrita que dificulta a aquisição da forma escrita desse gênero textual, e a compreensão de sua modalidade oral. 2º) Por outro lado, os livros didáticos não fornecem modelos para um trabalho de produção escrita do texto expositivo: um dos mais utilizados em escolas de Natal, na 4ª série (ALP, 4) propõe 32 leituras, das quais somente 3 podem ser consideradas textos expositivos. Já o livro de Ciências para a mesma série, que utilizamos em nosso trabalho (Caminhos da ciência, 4), contém mais de uma centena de textos expositivos, bastante elaborados quanto à sua organização lingüística. 3ª) As observações da sala de aula confirmam que não há um trabalho visando à produção escrita de textos expositivos. PARA CONCLUIR Esses resultados são preliminares e estão em fase de discussão, de um ponto de vista essencialmente qualitativo. Eles fornecem subsídios empíricos para uma didática do texto expositivo e, do ponto de vista teórico, permitem uma melhor compreensão do seu funcionamento na transmissão-aquisição dos conhecimentos científicos. Finalmente, essa didática do texto expositivo, nos parece de extrema importância, no ensino fundamental (e em outros níveis do ensino) e mereceria uma atenção especial na formação de professores e nas práticas pedagógicas. BIBLIOGRAFIA Adam, J. M. Les textes: types et prototypes. Paris: Nathan, Bhatia, V. K. Analysing Genre. London: Longman, Bronckart, J.-P. Atividade de linguagem, textos e discursos. Por um interacionismo sóciodiscursivo. São Paulo: EDUC, Grize, J.-B. Logique naturelle et communications. Paris: Presses Universitaires de France, Janssen, T., Redeker, G. (org.) Cognitive linguistics: Foundations, scope and methodology. Berlin New York: Mouton de Gruyter, Langacker, R. W. Foundations of cognitive grammar. Vol I e II. Stanford, CA: Stanford University Press, 1987, Assessing the cognitive linguistic enterprise. In: Janssen, T., Redeker, G. (eds.) p Marcuschi, L. A. Gêneros textuais: O que são e como se constituem. Recife: UFPE. Janeiro (Mimeo). MEC Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília, Passeggi, L. Interação verbal em sala de aula. Produção e compreensão dos discursos. Número temático de Vivência. Revista do Centro de Ciências Humanas Letras e Artes da UFRN. v. 12. n. 1, Natal: Editora da UFRN, jan jun 1998c.. Os discursos da sala de aula. Revista Vivência. v. 12. n. 1. Jan Jun 98. Natal: Editora da UFRN, 1998d.. A estruturação sintático-semântica dos conteúdos discursivos. In: Passeggi, L., Oliveira, M. S. (org.) Lingüística e Educação. São Paulo: Terceira Margem, 2001.
5 Passeggi, M.C. A explicação na interação didática. Competência comunicativa e reformulações intertextuais. Número temático de Vivência. v. 12. n. 1. Jan Jun 98. Natal: Editora da UFRN, p Discurso explicativo e uso do livro didático em sala de aula. In: Passeggi, L. (org.) Abordagens em lingüística aplicada. Natal: Editora da UFRN, 1998b. p Sampaio, F. A. A., Carvalho, A. F. Caminhos da ciência. Uma abordagem socioconstrutivista. v. 4. São Paulo: IBEP, Searle, J. Os actos de fala. Coimbra: Almedina, Tradução de Speech Acts, Swales, J. M. Genre Analysis. Cambridge, Cambridge University Press
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