O REALCE DE GILBERTO GIL: A POLITIZAÇÃO DO CORPO. Cássia Lopes (UFBA) calopes@ufba.br
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- Maria Clara Lima Espírito Santo
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1 O REALCE DE GILBERTO GIL: A POLITIZAÇÃO DO CORPO. Cássia Lopes (UFBA) calopes@ufba.br Analisa-se o corpo em Gilberto Gil não só a partir de suas canções, mas, sobretudo, pela sua atuação no tablado da cena social e política. Para tanto, será feita a travessia pela política do corpo desse artista tendo por base a leitura do filme Outros (doces) bárbaros, bem como a construção da imagem do cantor enquanto Ministro da Cultura. A valorização que o tropicalismo concedeu à performance não vinha dissociada de um debate maior sobre a politização do corpo. Definia-se a autopoiesis corporal, imersa na confluência histórica brasileira, quando a política não mais se confina a ser um tema somente das canções, nem tampouco se mostra limitada à atuação do político, enquanto restrito ao cargo ocupado pelo ilustre baiano. Palavras-chave: Corpo, Gilberto Gil, Política, Poética, Tropicalismo. O quarteto baiano, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia, em 2002, revolveu as areias do passado de Os Doces Bárbaros em um grande show na praia de Copacabana no Rio de Janeiro, numa retomada significativa do grupo. O episódio foi transformado em filme-documentário dirigido por Andrucha Waddington e se mantém em circuito comercial. Outros (doces) bárbaros é o título deste filme que evidencia, no acréscimo do termo outros, a consciência da impossibilidade de retomar o mesmo ânimo e os motivos que agiram nos corpos e na movimentação do grupo em Vinte e seis anos depois, os outros bárbaros defrontam-se com circunstâncias históricas repetidas e, ao mesmo tempo, bem diferentes daquelas que davam sentido aos gestos performáticos e ao tom libertário do grupo na década de 70. A Bahia que abrigara o primeiro encontro do grupo, em 1964, era a mesma e também era outra bem diversa. O cenário baiano de 2002 divulgava para o Brasil e para o mercado internacional o seu Carnaval eletrizante e pop-axé; colocava-se como centro de atração turística da maior festa popular do mundo. O baiano continuou gozando de sua condição de pólo cultural, sendo economicamente lucrativo investir na imagem do prazer e da alegria associada à forte presença festiva da Bahia. Tal fenômeno de efervescência musical coincide com o retorno do quarteto a Salvador: Caetano Veloso, Maria Bethania, Gal Costa e Gilberto Gil, que já não possuíam residência nesta capital, voltaram a adquirir suas casas na década de 90. O retorno do quarteto já se estava insinuando em termos de uma geografia baiana, e os shows do grupo, em 2002, confirmaram a tendência pressentida. Ao rastrear os motivos desencadeadores da união do grupo baiano e da vontade do reencontro nos palcos, Caetano Veloso reafirma ter visto desde sempre algo especial que
2 ligava os quatro integrantes, como algo assim predestinado, sem que isso devesse ser lido como destino místico ou de acordo com uma visão maravilhosa do fato: Eu sou muito cético, eu achei que era uma intuição de que a gente tinha aquela vocação para o estrelato, o estrelato vulgar do comercialismo da sociedade de consumo. 1 Ao ouvir as palavras do amigo, Gilberto Gil confirma que a gente também tem isso na nossa carreira. 2 No filme, expõem-se a consciência aguda e a visão crítica diante das propostas e validades do tropicalismo e das diferenças entre seus integrantes. As palavras dos mentores desse movimento não causam, entretanto, um impacto negativo, já que a revisão do lastro argumentativo e simbólico tropicalista é necessária para mapear as possibilidades do Brasil de hoje e a labilidade da música popular na transformação imaginária da nação. É nesse ponto do discurso que Caetano Veloso revela sua veia mais crítica e a sua insatisfação diante da própria carreira como artista, como também diante de tudo que representou o tropicalismo, na abertura para a rede comercial do mercado consumidor: Tem momentos que me dá a impressão que é só isso, quer dizer, eu fico desiludido. Como um escorpião encalacrado, Caetano Veloso fere a própria história artística e denuncia a crise do que representou o tropicalismo, repassa o encontro pós-tropicalista de Os Doces Bárbaros e a sua responsabilidade frente à trajetória de novas gerações de músicos no Brasil. Como reação ao discurso insatisfeito e melancólico do amigo, Gilberto Gil afirma que o nosso esforço foi para que não seja só isso, 3 isto é, que tudo não tenha passado de um estrelato vazio com fins unicamente comerciais. Numa postura de julgamento mais árduo, Caetano Veloso insiste: Tem momentos que eu tenho vontade de exercer uma crítica muito cruel a nosso respeito, então eu não quero deixar de dizer. 4 Na tensão desse discurso pós-tropicalista, denuncia-se a verve crítica deste artista e pensador da cultura, em desacordo com o estilo mais conciliador de Gilberto Gil, que assume uma posição mais apaziguadora e menos conflitada diante da vontade de crítica contundente do companheiro tropicalista: Sem dúvida alguma, essa oscilação é absolutamente pertinente, tem a ver. Você, por exemplo, é o mais esforçado de todos nós quatro no sentido de que não tenha sido só isso. 5 Nestas palavras, sente-se que a postura de Caetano Veloso é absolutamente significativa e compreensível, porém não justifica o efeito redutor da análise ao estrelato meramente comercial. Ciente da pertinência e do sentido da preocupação do companheiro tropicalista, Gilberto Gil declara: eu tenho confessado várias vezes, toda hora por aí, que se não fosse Caetano, eu teria me tornado... provavelmente estaria com música, faria música, mas não com a responsabilidade que eu tive. 6 São esses momentos que fazem do documentário Outros
3 (doces) bárbaros um filme precioso para situar as crises e as divergências inseridas na história do tropicalismo e dos integrantes do quarteto baiano. É importante marcar que a cena do sexto dia de ensaio é protagonizada apenas por três integrantes do grupo: Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, pois, segundo o próprio depoimento do irmão de Maria Bethânia, esta cantora não teria participado do movimento tropicalista. Numa entrevista coletiva gravada no filme, evidencia-se mais claramente que o grupo não tinha um significado unívoco, resguardando suas diferenças e identificações. Gal Costa confirmou sua afinidade com Ella Fitzgerald, ao contrário de Maria Bethânia, que se mostrava seduzida por Judy Garland, com aquela mulher entrando, correndo pelo palco, tal como depois confirmariam os próprios gestos dramáticos da cantora baiana. Caetano, nas trilhas de João Gilberto, revelou sua afinidade maior com Gal Costa, porque nós somos mais cool, instante de fala no qual se flagra sua admiração pela suavidade da voz e pelo estilo musical impresso por Chet Baker. Diferentemente, Gilberto Gil admite as suas predileções por Jimmy Hendrix, tendendo pra coisas mais jazzísticas e mais experimentais, mais arrojadas e mais rock n roll, além de samba jazz. 7 Nesse encontro, com as reflexões desenvolvidas no filme, Caetano Veloso demonstra compreender o amálgama artístico desenhado por Gilberto Gil não como um ecletismo indiferenciado e homogêneo, mas tal como o conceito de arte pop atribuído por Andy Warhol: Perguntaram a Andy Warhol o que era arte pop e ele disse que é gostar de coisas. 8 Gilberto Gil confirma ser exatamente essa a sua posição: Em mim, era um misto de gostar mesmo de muita coisa e um pouco gostar de gostar. 9 Dessa maneira, expõe o preconceito e o vício elitista de alguns artistas, intelectuais e pessoas de bom gosto que rejeitam a música sertaneja e cantores do círculo comercial e perguntam: Mas como é que você gosta de Sandy e Júnior? Ao que ele responde: Eu gosto, eu aprendi a gostar de coisas, e termina a frase com um riso. 10 O documentário é também uma repetição do modelo do primeiro filme desenhado por Tom Job Azulay ao gravar os ensaios, os shows e os depoimentos dos quatro integrantes, entretanto são indiscutivelmente Outros (doces) bárbaros e outro filme absolutamente diversos. Nas cenas gravadas, pode-se ver o perfil de cada um dos membros, com as transformações vividas pelo grupo e o vigor da história desses artistas e da música popular brasileira. A primeira tomada de foco, no roteiro fílmico, escolhe o oitavo dia de ensaio do grupo que traz Gilberto Gil sentado em uma cadeira cantando Máquina de ritmo e Caetano Veloso sambando no estúdio.
4 Vários momentos do filme são recheados com diálogos férteis e entrevistas sobre a visão estética e sobre o processo artístico dos integrantes do quarteto baiano. Em uma delas, pergunta-se ao grupo se aquele reencontro poderia acrescentar algum sentido ou mudança para as suas vidas. Quem responde a essa indagação é Gilberto Gil: Eu não faço nada na minha carreira para acrescentar. Eu faço para ser cada momento íntegro como o primeiro, a seqüência é sempre a mesma; não há o sentido aritmético, não. Este compositor ensaia uma teoria da repetição na diferença, cujo termo outros, sobreposto ao título do filme de 1976, é bem sintomático. A espiral do tempo impede de pensar o reencontro como um acréscimo ou mais uma manifestação unida à primeira, iniciada em Ao contrário do cálculo matemático da aritmética, as palavras de Gilberto Gil animam uma diferente abordagem: os shows tanto no Parque do Ibirapuera como na praia de Copacabana aconteceram, porque o primeiro encontro com o grupo baiano desde o Teatro Vila Velha constituiu-se intensa e eficazmente, no ritmo e no compasso da alma de grupo, que é alguma coisa que tem dos pássaros. 11 Aquele primeiro encontro entre os quatro artistas foi tão vivo que pediu o seu reencontro; contudo não é o episódio em si que retornou, mas o desejo que unia o grupo no palco. Assim, cada momento permanece único, íntegro; e seria um equívoco, em relação àquele show em Copacabana, em 2002, vê-lo apenas como mais um episódio a somar na trajetória artística de cada membro do grupo. Com a praia de Copacabana lotada, os outros (doces) bárbaros iniciaram o seu show e o seu reencontro no palco 26 anos depois, relembrando o impulso e o ritmo contagiante da música Fé cega, faca amolada, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos: Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada/ um brilho cego de paixão e fé, faca amolada/ deixar a luz brilhar e ser muito tranqüilo/ deixar o seu amor crescer e ser muito tranqüilo. O show não desejava representar, portanto, nem a nostalgia do reencontro do quarteto baiano, nem a impotência de seus artistas, porém os laços afetivos e o brilho da história viva que os unia; além de ser um passe um corte amolado na rede comercial. Os ensaios do show revelaram o clima de descontração do grupo, o tom ameno e íntimo da conversa e, apesar dos risos e das gargalhadas soltas, não se nota nenhum tipo de exagero nas atitudes, nem poses artísticas, nem mesmo pulos; nada que lembrasse o desconcerto e o ritmo corporal demonstrados no filme Os doces bárbaros. Muito diversa daquela cantora que expunha a barriga e o desenho do seu corpo nas calças justas que usava, Gal Costa chegou ao estúdio de gravação com um conjunto bem comportado de peças de calças e blusa cor de goiaba, que deixava visível apenas uma pequena parte dos tornozelos,
5 além das sandálias tipo Havaianas com os dedos à mostra. Após cumprimentar Caetano Veloso com um beijo na boca, a conversa da cantora girou em torno da ansiedade quanto ao show-reencontro do grupo: ela confessou ter passado a noite mal-dormida, com as músicas na cabeça. Caetano disse partilhar do mesmo sentimento, ao contrário de Gilberto Gil, que não demonstrou experimentar, a princípio, da mesma ansiedade expressa pelos outros dois artistas. Tal como no primeiro filme, quando compôs a música temática Nós, por exemplo, Gilberto Gil retomou o mesmo gesto e criou Outros bárbaros. Feita especialmente para o reencontro, a letra da canção emocionou Gal Costa, que, na primeira audição no ensaio do grupo, desabafou: A música é comovente. Eu não chorei para não passar vergonha. 12 O autor da canção, motivado pelo clima de amizade e pelo diálogo, confessa: Eu já chorei tudo em casa. 13 Mais que um desabafo entre amigos e companheiros de muita história, o filme revela um traço metalingüístico, quando, via canção, indica-se a capacidade da arte musical de rever as marcas e as emoções guardadas em cada membro daquele grupo e em muitos brasileiros. A cena permite lembrar os versos de Caetano, por isso uma força me leva a cantar, por isso uma força estranha no ar, por isso é que eu canto, não posso parar. Segundo depoimento de Gilberto Gil, o nascimento da canção Outros bárbaros traduz a inflexão e o pedido do momento: Acordei e fiquei uma hora na cama de papo pra cima, aí veio inteira, ri o compositor, dizendo ter feito aquela nova música para finalizar o show do quarteto: Será que ainda temos o que fazer na cidade?/ Em nossos corações ainda existe um quê de ansiedade. 14 Os primeiros versos desencadeiam uma entonação crescente que marca o isomorfismo da canção: o tom interrogativo presente no verso melódico não esconde o sentido do enunciado emitido pelo cantor, na sua leitura revisora do que representou o grupo, desde o primeiro encontro na cidade de Salvador e, depois, na cidade maravilhosa, quando os baianos foram considerados como invasores bárbaros de uma nova era musical, instalada no coração do Brasil. Tal como Caetano Veloso e Gal Costa, Gilberto Gil também não se eximiu da ansiedade em relação ao reencontro. Diferentemente da insônia vivida pelos dois primeiros, ele a transformou em versos, revertendo-a em sinal de persistência, de uma vontade de indagar sobre a sua trajetória artística e do grupo, como se comprova na utilização do advérbio ainda. A repetição do advérbio, nos dois versos iniciais, ressalta a consciência do tempo transcorrido, da necessidade de saber se é possível refazer e reviver em meio a tudo que passou de tão intenso e forte com cada integrante daquele grupo a mesma e outra atmosfera criativa: Resta saber se ainda queremos seguir/ Querendo-nos mútuo prazer. 15 A
6 questão não se restringe a manter o afeto e o sentido musical que enlaça o quarteto, mas de marcar a presença viva do grupo e de cada um de seus integrantes em meio às novas gerações e frente à música meramente comercial, consciente do tempo que corrói e confirma a memória. Evidentemente, esses artistas passam e passaram por crises criativas, de que se problematiza a escolha de Gilberto Gil quanto à política partidária. O Ministério da Cultura pode ter constituído um veículo de maior inibição da veia criadora, basta lembrar que este artista só compôs uma música nos quatro primeiros anos do cargo assumido. Por outro lado, foi também um meio de galvanizar a carreira do artista no cotidiano brasileiro; ele encontra outra via para se manter ativo e cada vez mais visível nos palcos do Brasil, além de ser a oportunidade concreta que afirmaria seu desejo e a sua vocação para a política. Dessa maneira, pode-se interpretar a ida para o governo como uma resposta ao primeiro verso da sua canção datada daquele ano de 2002, ano que antecedeu à posse no ministério: Será que ainda temos o que fazer na cidade?/ Em nossos corações já reside um quê de saudade/ De saudade. 16 Revisitado anos depois, o filme Os doces bárbaros remasterizado em 2004, quando Gilberto Gil já era ministro da cultura do governo Lula demonstra não só como o grupo baiano dominou, com grande agilidade e rapidez, o espaço cultural brasileiro. Vem apontar para a ubiqüidade da música popular brasileira na vida cotidiana, a capacidade de unir um grupo de artistas e também dar acesso ao social, gestando surpresas, dentre as quais se ressalta a chegada de um integrante do movimento tropicalista ao círculo oficial de poder. A propósito, em uma entrevista ao jornal A Tarde, Caetano Veloso é interrogado a respeito de como sentia a presença de tropicalistas no poder : Tropicalistas... A gente tem vontade de discutir isso, porque uma palavra cujo sentido a gente sabia muito bem qual era em 1966, 67, 68, mas eu não sei muito bem o que é tropicalista hoje. Mas, de todo modo, o Gil está no poder oficial, ele é ministro de Estado, e ele foi um dos fundadores, líderes e, de fato, o idealizador mesmo daquilo que veio a ser conhecido como Movimento Tropicalista. Então, ele está de fato no poder e foi um tropicalista. Mas, eu tenho a impressão de que aquilo que me levou a ser tropicalista é, de uma certa forma, a mesma coisa que me leva a me sentir pessoalmente tendo necessidade de me distanciar do poder oficial. 17
7 No trecho recortado, fica notório o esgarçamento do termo tropicalismo, passível de ser claramente definido e vivido entre 1967 e 69, data-limite que situa o momento de exílio de Gilberto Gil e Caetano Veloso em Londres. A pergunta do entrevistador assinala para uma questão lateral: refere-se ao alcance da verve dos tropicalistas naqueles anos, que ecoaria sempre sobre suas imagens e sobre sua travessia artística, como se naqueles primeiros anos tivesse se delineado o lastro teórico que os acompanharia sempre. De fato, durante evento no Museu da República em 2003, na cidade do Rio de Janeiro, o ministro da cultura Gilberto Gil aproveitava a ocasião simbólica para reeditar a foto da capa do disco Tropicália ou panis et circenses, de Trinta e cinco anos depois do lançamento daquele disco, ao anunciar a criação do programa Cultura Republicana e Brasilidade cujo projeto previa a reinvenção do espaço do museu, como centro de debate e reflexão cultural, reaparece na memória do artista, do político e do público, a paródia da capa do disco. Na primeira montagem fotográfica, Rogério Duprat posava com um penico na mão, como se fosse uma xícara de chá; Gilberto Gil e Gal Costa mostravam-se à vontade em batas à moda da contracultura; somavam-se à cena Rita Lee, Caetano Veloso, Torquato Neto e Tom Zé, este marcando o lugar do retirante, ao segurar uma mala de couro. Alguns participantes do disco que estavam ausentes, tais como Nara Leão e Capinan, eram lembrados pelas fotografias que os tropicalistas baianos Gilberto Gil e Caetano Veloso seguravam em suas mãos. Na nova versão fotográfica, divulgada pelo jornal Folha de S. Paulo em 11 de novembro de 2003, pode-se ver Gilberto Gil no alto, de terno e gravata e de cabelos trançados, tendo ao lado esquerdo a companhia de um índio da tribo Waiãnpi e, ao lado direito, Claudia dos Santos Rodrigues. Também compunham a imagem Nelson Rodrigues Filho, Maurício Andrade, Rosa de Iemanjá da Casa Branca e uma representante do Apofonjá, Regina. Para retomar fielmente a diagramação da fotografia do disco de 1968, estavam sentados Maria de Leda Linhares, Carmem Costa e José Leite Costa. No lugar que antes era ocupado por Gilberto Gil, aparece a imagem de um jovem afrodescendente, que o jornal não divulga o nome. Se a primeira foto apresentava os artistas que integravam o lançamento do disco tropicalista, ao mesmo tempo retomava, pela via da paródia, a pose referida nas fotografias das famílias patriarcais. Nela, podem ser destacados os mais velhos sentados nas cadeiras, os adultos em pé, numa posição acima, atrás dos pais ou dos avós, e os netos sentados no chão. Na repetição da cena fotográfica 35 anos depois, outro mosaico instala-se: a leitura crítica agora não se refere somente à união forjada e limitadora exigida pelas mesmas famílias.
8 Trata-se de tecer uma análise do que representou o tropicalismo para a cultura brasileira e para a reflexão sobre os ideais da República. É significativa a escolha do Museu da República para que a paródia da fotografia da Tropicália fosse levada ao conhecimento do público. Mais uma vez os versos de Outros bárbaros podem ser lembrados: Será que ainda temos o que fazer na cidade? A pergunta, nascida naquela manhã do ensaio do show-reencontro em 2002, expressava uma inquietação viva, cuja rima com as palavras ansiedade e, finalizando, com saudade, reaparece naquele evento do museu. A saudade plasmada na imagem passadista e estereotipada do museu reveste-se, entretanto, da vontade de fazer daquele lugar e daquele momento a possibilidade de produzir uma reflexão sobre o presente brasileiro no encontro com o passado, que inclui tanto uma leitura da biografia de Gilberto Gil, quanto da história cultural brasileira. Se para Caetano Veloso o ideário do tropicalismo constituía o motivo da recusa ao poder oficial como demonstra o trecho da entrevista apresentada, Gilberto Gil transita pela contramão do discurso do amigo. A fotografia sugere que, exatamente por ter sido o idealizador daquele movimento tropicalista, Gilberto Gil assumiu um cargo no governo. Com a experiência da tropicália, teve a certeza de que o cotidiano das cidades, principalmente protagonizado pelas vestes de um ministro, pode constituir-se de um espaço performativo de ação cultural e política. Desse modo, a cidade atualizava-se como lugar de trânsito e de ação da poética e da política do corpo de Gilberto Gil. A matéria do jornal intitulada Nova tropicália expõe a necessidade de ter o olhar incansavelmente crítico diante desse trânsito e da história cultural do Brasil, da qual este artista não é só um grande exemplo, mas um dos seus idealizadores, pois participa duplamente como artista e como político. Pode-se dizer que, a princípio, no nome Gil já estava predestinado o jogo duplo de si mesmo; o seu nome guarda o segredo, a potência de sua história e de sua arte: a coragem de reinventar a si mesmo. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, ao ser interrogado novamente sobre a presença do amigo no cargo de ministro da cultura, Caetano Veloso responde: Gil está bem, está ministro. Eu não teria o menor saco de estar naquela situação, mas ele adora. 18 Segundo ele, Gil é o Lula do Lula, aludindo ao prestígio internacional do artista, como também o lado estrangeiro, gauche do presidente experimentado pelo cantor tropicalista no cargo do ministério. O reconhecimento internacional de Gilberto Gil, a trajetória musical desde o tropicalismo, além de suas investidas na política, justificam a indicação para o cargo de ministro da cultura no governo do Brasil. Por outro lado, um ponto que merece ênfase, no depoimento de Caetano Veloso, é a força política da música popular brasileira. Vivida
9 intensamente nos fins dos anos 60 e no transcorrer das décadas ulteriores à ditadura política dos militares, como forma de conquistar uma abertura do horizonte político-cultural, a música popular expressa os conflitos e as tensões de vários estratos da sociedade brasileira e se confirma na chegada de Gilberto Gil ao governo. Embora na primeira gestão no ministério tenha composto muito pouco, apesar de declarar publicamente que não se sente mais obrigado a compor, não se pode dizer que assumir o cargo de ministro da cultura tenha sido para o artista um prejuízo. O seu corpo ganhou um recorte estético e político: a escolha de participar do ministério revitalizou a imagem do cantor nas pautas dos jornais e dos debates culturais; suas canções permanecem na agenda dos rádios, sua batida de violão continua sendo ouvida no Carnaval da Bahia e pelo mundo afora. Como inventor incansável da sua história pessoal, a sua presença nos gabinetes da política traz a ambivalência esta já sentida desde o início do tropicalismo geradora de crise e de conflito quanto à sua imagem: pode ser lida como mais uma jogada estratégica individual e comercial, que lhe faculta o direito e o dever de permanecer atuante no debate e nos palcos da sociedade brasileira e, ao mesmo tempo, assinala para a grande oportunidade de atuar na gestão criativa do Brasil. Para o ministrartista, a arte de viver é igual à arte de compor. 19 A riqueza e a importância da sua obra musical, construída ao longo dos anos, não só permitem entender suas buscas, como imaginar que, a qualquer momento, uma nova canção possa aparecer na internet e nos palcos do país, surpreendendo a todos. Como declara Elis Regina em um dos seus depoimentos, Gil talvez seja dos compositores atuais o mais completo, porque ele compõe muitíssimo bem, ele faz letra muitíssimo bem, ele toca muito bem e ele canta muito bem. 20 Completando a fala da cantora, cabe dizer ainda que ele soube e sabe transitar, como poucos, entre a poética e a política do corpo; ele que cantava, em seus versos, eu preciso aprender a só ser Declaração transcrita do filme Outros (doces) bárbaros. Direção: Andrucha Waddington. Produção: Conspiração Filmes. Roteiro: Hermano Vianna, Quito Ribeiro, Sérgio Mekler e Andrucha Waddington. Rio de Janeiro: Estúdio Palco/ RJ, DVD. 2 Idem. 3 Ibidem. 4 Declaração extraída do filme Outros (doces) bárbaros. Cf. Op. cit. 5 Idem. 6 Idem. Ibidem. 7 VELOSO, Caetano. Declaração transcrita do filme Outros (doces) bárbaros. Cf. Op. cit. 8 Idem. 9 GIL, Gilberto. Declaração transcrita do filme Outros (doces) bárbaros. Cf. Op. cit. 10 GIL, Gilberto. Idem. 11 GIL, Gilberto. Idem. Ibidem. 12 COSTA, Gal. Declaração transcrita do filme Outros (doces) bárbaros. Cf. Op. cit.
10 13 GIL, Gilberto. Declaração transcrita do filme Outros (doces) bárbaros. Cf. Op. cit. 14 GIL, Gilberto. Idem. 15 GIL, Gilberto. Ibidem 16 Idem. Ibidem. 17 VELOSO, Caetano. Entrevista concedida a Luiz Lassere, para o jornal A Tarde. Salvador, 16. jan Caderno 2. A Tarde on line. < 18 VELOSO, Caetano. Gilberto Gil é o Lula de Lula. Entrevista concedia ao jornal Folha S. Paulo. São Paulo: 15 nov Caderno Ilustrada, p. E5. 19 GIL, Gilberto. Depoimento extraído da matéria jornalística Gil lança CD que reúne seus retiros espirituais. Folha S. Paulo. 2 set Caderno Ilustrada, p. E3. 20 REGINA, Elis. Transcrição feita do programa Ensaio, MPB especial 1973, produzido pela TV Cultura. Disponível em DVD sob licença da Trama Produções, GIL, Gilberto. Cf. RENNÓ, Op. cit. p. 136.
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