Raimundo Alves de Campos Júnior
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- Ana Vitória Weber Marinho
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1 Raimundo Alves de Campos Júnior O CONFLITO ENTRE O DIREITO DE PROPRIEDADE E O MEIO AMBIENTE E A QUESTÃO DA INDENIZAÇÃO DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO FLORESTAL Recife, dezembro de 2002
2 Raimundo Alves de Campos Júnior O CONFLITO ENTRE O DIREITO DE PROPRIEDADE E O MEIO AMBIENTE E A QUESTÃO DA INDENIZAÇÃO DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO FLORESTAL Dissertação apresentada à Banca Examinadora como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Recife/Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em convênio com a Universidade Federal de Alagoas (UFAL), sob a orientação do Prof. Dr. Andreas Joachim Krell. UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO UFPE Universidade Federal de Alagoas UFAL Faculdade de Direito do Recife Recife, dezembro de 2002
3 BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Francisco Queiroz Bezerra Cavalcanti (Presidente) Prof. Dr. George Sarmento Lins Júnior (1º Examinador) Prof. Dr. Geraldo de Oliveira Santos Neves (2º Examinador)
4 AGRADECIMENTOS A Deus, por ter me permitido estar aqui e por todas as graças alcançadas. Aos meus pais, Raimundo e Nenita, pelo legado de amor, carinho, compreensão e perseverança. força. Aos meus irmãos, Lenise, Lenilde, Lenilson e Lisiane, pela amizade, carinho e A minha esposa, Sandra, e as minhas adoráveis filhas, Bruna e Rayssa, pela compreensão pelas horas roubadas do convívio familiar. Aos meus avós, Alípio, Maria Hermínia, Lia e Perciano (in memorian), pelo exemplo de humildade, decência, honestidade e persistência. Aos amigos Juízes Ricardo Tenório, Evilásio Filho, Francisco Antônio e Sérgio Mendonça, pelo incentivo e pelas críticas inteligentes e construtivas, que foram de grande valia para a elaboração deste trabalho. À Professora Erinalva, pela idéia inicial na escolha do tema e pela ajuda na bibliografia. Aos colegas Juízes Federais da Seção Judiciária de Alagoas, pelas colaborações, sugestões e incentivos prestados. Ao Desembargador Federal, Dr. Francisco Cavalcanti, pelo incentivo à conclusão desta dissertação. Aos servidores da Justiça Federal de Alagoas, especialmente aos da 4ª e 5ª Varas, bem como a Antônio, Inaldo, Luciana, Kennedy, Beclaute, Jamesson e Kayrene, pela amizade, colaboração no trabalho diário de prestação jurisdicional e pela gentileza em examinar o presente trabalho. Ao Centro de Atendimento ao Juiz Federal (CAJU), especialmente às bibliotecárias Márcia, Raquel e Flávia, pela ajuda na revisão bibliográfica. A todos os funcionários do Curso de Mestrado em Direito da UFPE e da UFAL, especialmente à Carminha, Joanita, Josi, Raquel e Rosely, pelo apoio, compreensão e simpatia constantes.
5 AGRADECIMENTO ESPECIAL Agradeço ao meu orientador, Andreas Joachim Krell, pela amizade sincera, pelo incentivo, pela paciência e ajuda indispensáveis à conclusão deste trabalho e à correção dos rumos da pesquisa.
6 RESUMO A propriedade, tal como constitucionalmente protegida, já não mais pode ser entendida em sua concepção liberal, onde era permitido ao proprietário usar, gozar e dispor de seu bem com amplitude ilimitada, pois já não há mais um direito individual de propriedade, mas sim um direito a ser exercido em prol da coletividade. Pelo fato de as normas que asseguram o direito de propriedade e o de higidez ambiental possuírem índole principiológica, faz-se necessário o uso da Teoria dos Princípios, com a aplicação do método do balanceamento ou de ponderação, para, sopesando os valores envolvidos, encontrar a solução mais justa para o caso concreto, máxime porque os direitos de propriedade e de preservação ambiental, como direitos fundamentais, possuem a mesma dignidade constitucional, um não podendo prevalecer em relação ao outro. Infelizmente, e apesar dos avanços da doutrina, a jurisprudência pátria ainda insiste em dar à propriedade privada a concepção mais individualista do Estado Liberal, desconsiderando que o ponto de partida de qualquer operação hermenêutica deve ser a Constituição e que a função social compõe os limites, as fronteiras internas do direito de propriedade, incidindo sobre o próprio conteúdo desta, sendo, pois, pressuposto para o reconhecimento do direito de propriedade válido, razão pela qual não há falar em indenização de áreas criadas pelo Poder Público para a preservação ambiental, principalmente quando não se impede, por inteiro, o uso da propriedade. O presente trabalho, partindo da premissa de que a preservação do meio ambiente é tarefa de todos e de que nenhum proprietário tem direito ilimitado de alterar a configuração natural de sua propriedade sem a autorização dos órgãos públicos, vem, pois, para tentar munir a coletividade jurídica de conceitos e esclarecimentos básicos que possam ser usados para o entendimento da nova ordem constitucional: da proteção do meio ambiente e do atendimento da função social da propriedade (situações plenamente harmonizáveis e imprescindíveis à sobrevivência humana e à humanização da propriedade).
7 ABSTRACT Ownership, as it is currently constitutionally protected, can no longer be understood in its liberal conception, in which the owner was allowed to make unlimited use of his property, for ownership is no longer an individual right, but a socially collective one. Because the rules that assure the right to property and to a clean environment have the nature of principles, the use of the Principle s Theory becomes necessary to, weighing the values involved, find the fairest solution to the presented case, mainly because ownership and environment protection, as fundamental rights, bear the same constitutional dignity, being impossible for one of them to prevail over the other. Unfortunately, despite doctrinary advances in this field, our court precedents still insist in giving ownership the individualist concept of the Liberal State, not considering that the start for any hermeneutical interpretation must be the Constitution and that the social role of ownership is the limit, the internal boundary of property right, reaching all its contents and being an essential condition to the recognition of valid property rights, reason by which there can be no compensation of State created areas to environmental conservation, mainly when the use of property by its owner is not entirely restricted. The present research, starting with the premise that environment conservation is a collective duty, and that no owner has unlimited right to alter the natural configuration of his property without the consent of the proper government authorities, aims to provide the legal community with basic concepts and ideas that can be used to a better understanding of the new constitutional order: environmental protection and the fulfillment of property s social role (completely harmonizable situations and indispensable to human survival and property humanization).
8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO CAPÍTULO I: OS DIREITOS FUNDAMENTAIS As gerações dos direitos fundamentais Os direitos fundamentais nas Constituições brasileiras Pontos controvertidos na doutrina dos direitos fundamentais O problema da eficácia dos direitos fundamentais CAPÍTULO II: O PROBLEMA DA COLISÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS Princípios e regras Critérios de distinção entre regras e princípios O papel constitucional dos princípios O princípio da dignidade da pessoa humana O significado do princípio da proporcionalidade para os direitos fundamentais A proporcionalidade e as leis restritivas de direitos Resolução do conflito entre os direitos fundamentais CAPÍTULO III: O DIREITO DE PROPRIEDADE Fundamentos filosófico-jurídicos da propriedade A propriedade como categoria de direito subjetivo: a teoria individualista da propriedade A teoria social da propriedade A propriedade nas Constituições brasileiras O princípio da função social da propriedade Princípio da função social da propriedade e as regras constitucionais programáticas CAPÍTULO IV: O MEIO AMBIENTE COMO OBJETO DE DIREITO O Direito Ambiental Características do Direito Ambiental Princípios constitucionais de proteção ao meio ambiente Princípio do direito humano fundamental Princípio da supremacia do interesse público na proteção do meio ambiente em relação aos interesses privados Princípio da indisponibilidade do interesse público na proteção do meio ambiente Princípio da obrigatoriedade da intervenção estatal Princípio da prevenção Princípio da proteção da biodiversidade Princípio da defesa do meio ambiente Princípio da responsabilização pelo dano material Princípio da exigibilidade do estudo prévio de impacto ambiental Princípio da educação ambiental Princípio do desenvolvimento sustentável... 76
9 4.4 Desenvolvimento econômico e meio ambiente Natureza do meio ambiente como direito indivisível CAPÍTULO V: PROPRIEDADE versus MEIO AMBIENTE Propriedade versus higidez ambiental: categorias de direitos fundamentais Relação entre os princípios da função social da propriedade e da proteção do meio ambiente na Constituição de Resolução do conflito entre os direitos fundamentais de propriedade e de preservação do meio ambiente CAPÍTULO VI: FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E LIMITAÇÕES Propriedade: limitações e restrições Limites internos e externos da propriedade Poder de polícia e função social da propriedade CAPÍTULO VII: AS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO AMBIENTAL E O PROBLEMA DA INDENIZAÇÃO DAS PROPRIEDADES PRIVADAS A obrigação de preservar o meio ambiente e o direito de propriedade: cabimento ou não da indenização Desapropriação indireta e indenização Instrumentos de preservação ambiental As Áreas de Preservação Permanente As Reservas Florestais Legais O problema da indenização das Áreas de Preservação Permanente e das Reservas Florestais Legais Pressupostos para a indenização de áreas de interesse ambiental CAPÍTULO VIII: ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA Lixo industrial Loteamentos irregulares Degradação do meio ambiente versus licença ambiental Invasão dos sem-terra versus área de preservação nacional Áreas de preservação permanente (reservas ou estações ecológicas), reservas florestais legais e direito de propriedade Parques nacionais e estaduais versus direito de propriedade Síntese da jurisprudência brasileira sobre indenização das áreas de preservação ambiental CONCLUSÕES REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
10 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ac. acórdão ADC ação direta de constitucionalidade ADIn ação direta de inconstitucionalidade art. artigo BverGE Entscheidungen des Busdesverfassungsgerichts (Decisões do Tribunal Constitucional Federal alemão) c/c combinado com CC Código Civil (Lei nº 3.071/16) CDC Código de Defesa do Consumidor CF/88 Constituição Federal de 1988 cf. conforme cit. citado(a) CONAMA Conselho Nacional do Meio Ambiente Coord. coordenador CP Código Penal CPC Código de Processo Civil CPP Código de Processo Penal Dec. Decreto Des. Desembargador DJU Diário da Justiça da União DOE Diário Oficial do Estado DOU Diário Oficial da União EC Emenda Constitucional ECO/92 Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Brasil (Rio de Janeiro), em 1992 ed. edição em. ementa IBAMA Instituto Brasileiro dos Recursos Naturais Renováveis ibid. mesma obra e mesmo autor j. julgado em LICC Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei nº 4.657, de 04/09/42) MP Ministério Público Med. Prov. Medida Provisória Min. Ministro MS Mandado de Segurança nº número (por vezes também n.) OAB Ordem dos Advogados do Brasil ob. obra obs. observação op. cit. obra já citada anteriormente ONGs Organizações Não-Governamentais ONU Organização das Nações Unidas Org. organizador p. página par ou parágrafo p. ex. por exemplo
11 PNUMA Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente RDA Revista de Direito Administrativo RDP Revista de Direito Público RE Recurso Extraordinário Rel. Relator RF Revista Forense Rep. Repositório RePro Revista de Processo REsp Recurso Especial RJTJESP Revista do Tribunal de Justiça do Espírito Santo RT Revista dos Tribunais s.d. sem data s.e. sem editor segs. seguintes sic de acordo como que foi escrito s.l. sem local s.n. sem número ss. seguintes STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça T. Turma t. tomo TASP Tribunal de Alçada de São Paulo TFR Tribunal Federal de Recursos TJ Tribunal de Justiça TJ-SP Tribunal de Justiça de São Paulo trad. Tradução UICN União Internacional para Conservação da Natureza un. unânime v. ver; veja; volume v.g. verbi gratia (por exemplo) v.u. votação unânime
12 INTRODUÇÃO O homem, como ser social, vivendo na sociedade contemporânea, é regido, em suas relações, por uma série de normas e princípios que visam protegê-lo e garantir-lhe um determinado número de direitos. Dentre os direitos encontramos uma determinada categoria que se constitui nos direitos essenciais, os direitos fundamentais, que têm por escopo tutelar a pessoa humana, protegendo-a de todo e qualquer ataque contra ela deflagrado. Como valores precípuos plasmados em uma Constituição, os direitos fundamentais traduzem, pois, as concepções filosófico-jurídicas aceitas por uma determinada sociedade, em um certo momento histórico. 1 Estes valores basilares do Estado são, ao mesmo tempo, fins dessa sociedade e direitos dos seus indivíduos. Nos primórdios, a concepção da propriedade era tida como direito natural coletivo, no qual todos tinham o direito de possuí-la. Não tinha, assim, qualquer valor econômico individual. Porém, com o passar dos tempos, a propriedade começou a despertar os interesses dos homens, que se aperceberam do aspecto econômico e absorveram a idéia de que a propriedade representava poder e riqueza. A busca desse status contribuiu sobremaneira para revelação do egoísmo e insensatez da natureza humana, como também para formação das distintas classes sociais. Enquanto o direito de propriedade era exercido de maneira coletiva, não havia qualquer espécie de preocupação nesse sentido. No momento em que passou a denotar privilégio para alguns e representar instrumento de opressão para outros, eclodem os primeiros conflitos de interesses, sendo necessária a adoção de medidas disciplinadoras para o uso do instituto, máxime quando o mundo hodierno se debate com o problema da escassez dos recursos naturais, pelo uso abusivo da propriedade privada, que são indispensáveis à sobrevivência e existência digna dos seres humanos. Com a tomada de consciência de que os recursos naturais existentes no mundo não são perenes, aliada à elevação do direito ao meio ambiente sadio como direito fundamental de todo ser humano, surgiu a idéia de que o desenvolvimento econômico deveria necessariamente estar condicionado à preservação do meio ambiente, eis que fundamental para a própria sobrevivência humana. O desenvolvimento sustentável é, indiscutivelmente, a 1 A propósito do assunto, recomenda-se a obra de BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, No mesmo sentido, entre nós, COMPARATO, Fábio Konder. Os problemas fundamentais da sociedade brasileira e os direitos humanos. In: CONFERÊNCIA NACIONAL DA OAB, 12., 1998, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: OAB, Conselho Federal,
13 maior preocupação da sociedade moderna e tem sido palco de grandes restrições àquele ultrapassado conceito de direito de propriedade privada advindo da filosofia liberal. Se antes as restrições ao direito de propriedade se limitavam às de vizinhança, hoje elas representam um papel social e ecológico muito mais importante, pois, hodiernamente, o atendimento simultâneo da função social e da preservação do meio ambiente é indispensável à existência e validade do direito de propriedade privada. É por esse motivo que a Teoria dos Princípios, através da aplicação do método de balanceamento dos valores envolvidos, é imprescindível para a solução dos conflitos entre direitos fundamentais de igual dignidade constitucional: o direito de propriedade e o direito que todos têm ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. O Código Florestal (de 1965), antecipando-se ao constituinte de 1988, já afirmava, em seu artigo 1º (caput), que as florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que a legislação em geral e especialmente o Código Florestal estabelecem. Vê-se, assim, que o proprietário, mesmo nos estritos limites de seu imóvel, não tem total e absoluta disposição da flora, só podendo utilizá-la na forma e com os limites estabelecidos pelo legislador. Sem serem proprietários, todos os habitantes do País é o que declara a lei têm um interesse legítimo no destino das florestas nacionais, privadas ou públicas, vez que imprescindíveis à sobrevivência das futuras gerações. Imbuído das premissas acima e tendo como ponto de partida a Constituição Federal, que enalteceu a função sócio-ambiental da propriedade, procurar-se-á mostrar aqui que o Poder Público em regra não tem de indenizar pela instituição de Áreas de Preservação Permanente e de Reservas Florestais Legais, áreas destinadas à proteção e higidez ambiental. E tal se dá, como se demonstrará neste trabalho, porque tais espaços protegidos fazem parte da configuração intrínseca do direito de propriedade, pois são áreas que, por caracterizarem o aspecto ambiental da função social da propriedade, não podem ser consideradas isoladamente, destacadas da propriedade em si. As Áreas de Preservação Permanente e as Reservas Florestais Legais não são limitações administrativas, mas, antes disso, constituem o próprio direito de propriedade, daí só estarem sujeitas à indenização se se comprovar que a sua instituição inviabilizará completamente a exploração econômica do imóvel. Em outras palavras: não caberá indenização se for possível a realização de qualquer outra atividade econômica no local. 11
14 Nossos órgãos jurisdicionais, lamentavelmente, talvez por desconsiderarem conceitos básicos de Direito Administrativo, Ambiental e Constitucional, não têm interpretado escorreitamente a mensagem insculpida pelo constituinte quando insistem em conceder indenizações aos proprietários de áreas destinadas à preservação ambiental. Olvidam nossos tribunais que não há qualquer prevalência entre o direito individual à propriedade privada e o direito à higidez ambiental ambos elevados à insígnia de direito fundamental e de igual dignidade constitucional e que não é razoável atribuir-se à propriedade a ultrapassada concepção individual e paternalista do sistema liberal, 2 quando o direito moderno pugna por uma revisão dos conceitos da propriedade privada e do papel que sua função social tem no mundo jurídico. E é com o fito de contribuir um pouco mais para o estudo do intrigante tema que envolve o conflito entre o direito de propriedade e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado que este trabalho foi desenvolvido. Entretanto, sem desejar ser a solução definitiva para todos os casos de colisão entre tais direitos fundamentais, aqui o objetivo é desenvolver subsídios para uma melhor compreensão dos conceitos e dos princípios que envolvem a matéria, tudo com o propósito de munir o operador do Direito com o instrumental necessário à nova ordem constitucional: a de que a proteção do meio ambiente, a preservação da propriedade privada e o atendimento da função social da mesma são situações plenamente harmonizáveis e indispensáveis à humanização da propriedade e ao equilíbrio dos ecossistemas. 2 Fato que serve para comprovar o conservadorismo ainda reinante em nossos Tribunais. 12
15 CAPÍTULO I OS DIREITOS FUNDAMENTAIS SUMÁRIO: 1.1 As gerações dos direitos fundamentais. 1.2 Os direitos fundamentais nas Constituições brasileiras. 1.3 Pontos controvertidos na doutrina dos direitos fundamentais. 1.4 O problema da eficácia dos direitos fundamentais. 1.1 As gerações dos direitos fundamentais A história dos direitos do homem é a história de sua luta pela limitação do poder. O regime democrático firmado no Ocidente, poder de emanação popular, voltado para o povo e em sua razão exercido, nasce com a proclamação de direitos básicos a todos os homens assegurados. O reconhecimento desses direitos em declarações explícitas (Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, de 04/07/1776, de autoria de Thomas Jefferson; Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, adotada pela Assembléia Constituinte Francesa em 1789, dentre outras) condicionou diretamente o nascimento de quase todas as Constituições escritas dos Estados Democráticos de Direito ocidentais. 3 As conquistas históricas dos direitos dos homens aperfeiçoam-se nas denominadas gerações de direitos fundamentais. 4 As primeiras declarações se caracterizavam pela conotação individualista dos direitos fundamentais, porque o Estado então estruturado era Liberal de Direito, pelo que os interesses individuais e o individualismo predominavam sobre todas as formas de organização e o direito não se ausentava desta natureza com que se geravam as idéias, as instituições e as suas práticas, daí os direitos fundamentais referentes à vida, à liberdade individual, à segurança, à 3 Coube aos autores da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, em 1776, a expressão primeira desses direitos básicos, posteriormente (já no século XX) divulgados com a alcunha de direitos humanos. E aos revolucionários franceses, com o caráter cosmopolita dominante dos seus atos políticos, a proclamação desses direitos em elenco que se divulgou e se fez fonte de sua adoção nos sistemas jurídicos e nas organizações políticas que a partir de então se estabeleceram. Vale ressaltar, contudo, que, a despeito do dissídio doutrinário sobre a paternidade dos direitos fundamentais, disputada entre a Declaração de Direitos do povo da Virgínia, de 1776, e a Declaração Francesa, de 1789, é a primeira que marca a transição dos direitos de liberdade legais ingleses para os direitos fundamentais constitucionais. SARLET, Ingo. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p Alguns juristas, por entenderem que falar em gerações dos direitos fundamentais pode levar ao cometimento de erro de pensar que tais direitos se substituem à medida que surge uma nova geração, preferem falar em dimensões dos direitos fundamentais. SARLET, 2001b, op. cit., p
16 igualdade e à propriedade terem sido considerados, no curso do século XX, denominados de primeira geração. A constatação de que a dicção jurídica declaratória dos direitos fundamentais era necessária, embora não suficiente, e de que o próprio elenco daqueles que se haviam declarado anteriormente ampliava-se nas novas conquistas sociais, conduziu a outros movimentos que levaram a novas formulações jurídicas, razão pela qual surgem os direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os direitos coletivos, direitos estes tidos como de segunda geração, que acresceram e redimensionaram o sentido daqueles que compunham os de primeira geração. Os direitos fundamentais de segunda geração nasceram intrinsecamente ligados ao princípio da igualdade. Tais direitos fecundaram a justiça social e o bem-estar social passou a ser buscado pelo próprio Estado (o Estado fez-se Social de Direito). É por este motivo que a nota distintiva destes direitos é a sua dimensão positiva, uma vez que se cuida não mais de evitar a intervenção do Estado na esfera da liberdade individual, mas, sim, nas palavras de Lafer, de propiciar um direito de participar do bem-estar social. 5 Se os homens souberam definir os direitos sociais em documentos jurídiconormativos, não tiveram o mesmo cuidado de elaborar a normatividade necessária para que os mesmos alcançassem a plena efetividade, fazendo surgir, de conseqüência, a teoria da norma programática, 6 espécie de limbo constitucional, no qual permaneciam as normas contenedoras de expressões de direitos para as quais a impositividade do cumprimento ficava a depender de providências supervenientes, sem limite temporal para a sua adoção e sem sanção específica para o seu não-cumprimento. Se a liberdade (especialmente a individual) marcou a primeira fase dos direitos fundamentais, dominando a própria concepção dos direitos de primeira geração, e a igualdade jurídica é o ponto característico dos direitos de segunda geração, os direitos fundamentais de terceira geração surgem como emanações de uma justiça social universal, em resposta ao fenômeno denominado de poluição das liberdades, que caracteriza o processo de erosão e 5 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p A crítica maior que se faz às chamadas normas programáticas é justamente a de que pairariam em certo limbo jurídico, sem aptidão para regerem situações da vida concreta. Tecnicamente, sequer poderiam ser tidas como fontes do direito, dado não criarem, enquanto não completadas por lei, direito subjetivo ou pretensão material em favor de qualquer titular. Não teriam, destarte, qualquer eficácia aptidão para incidência e aplicação concretas, seja formal, seja material, já que apenas indicariam planos ou programas de atuação governamental ou, às vezes, por parte da sociedade, servindo para direcionar o futuro desenvolvimento jurídico. 14
17 degradação sofrido pelos direitos e liberdades fundamentais, principalmente em face de novas tecnologias. 7 A nota distintiva dos direitos da terceira geração, também denominados de direitos de fraternidade ou de solidariedade, reside basicamente no fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homem-indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos (família, povo, nação, etc.), caracterizando-se, conseqüentemente, como direitos de titularidade coletiva ou difusa. A solidariedade social juridicamente concebida e exigida enaltece o constitucionalismo e dá nova interpretação ao princípio da dignidade humana. Como direitos fundamentais da solidariedade social constitucionalmente positivada, foram reconhecidos os direitos ao desenvolvimento, a um ambiente saudável e equilibrado, a uma saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos, à informação e ao patrimônio comum da humanidade. 8 Os direitos de terceira geração foram aqueles contemplados, inicialmente, na Carta de Banjul. 9 No Brasil, Bonavides defende a existência de uma quarta geração de direitos, que compreenderia, segundo ele, o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos humanos y constitucionalismo en el tercer milenio. Madrid: Marcial Pons, Ediciones Juridicas y Sociales, 1996, p Segundo Carmen Rocha, coube a Karel Vasak, Diretor do Departamento Jurídico da UNESCO para a Defesa dos Direitos do Homem e da Paz, a reflexão sobre esses novos princípios, contribuindo para a reflexão sobre essa terceira geração de direitos. ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. O constitucionalismo contemporâneo e a instrumentalização para a eficácia dos direitos fundamentais. Revista CEJ, Brasília, v. 1, n. 3, set./dez. 1997, p A Carta de Banjul expressa, em seu art. 22.1, que: 1. Todos os povos têm direito ao desenvolvimento econômico, social e cultural, compatível com o respeito adequado de sua liberdade e de sua identidade, assim como a uma participação igual no patrimônio comum da humanidade; 2. Os Estados são obrigados a garantir, individual ou coletivamente, o exercício do direito ao desenvolvimento. Já no art assevera que todos os povos têm direito à paz nacional e internacional. As relações entre os Estados são presididas pelos princípios da solidariedade e amizade que foram afirmados implicitamente pela Carta da ONU. E, por fim, em seu art. 24 preleciona que todos os povos têm direito a um meio ambiente que seja ao mesmo tempo satisfatório e favorável para o seu desenvolvimento. 10 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p Segundo o mestre brasileiro, os direitos da quarta geração não somente culminam a objetividade dos direitos das duas gerações antecedentes, como absorvem sem, todavia, removê-la a subjetividade dos direitos individuais, a saber, os direitos da primeira geração. Tais direitos sobrevivem, e não apenas sobrevivem, senão que ficam opulentados em sua dimensão principal, objetiva e axiológica, podendo, doravante, irradiar-se com a mais sabida eficácia normativa a todos os direitos da sociedade e do ordenamento jurídico. Ibid., p
18 1.2 Os direitos fundamentais nas Constituições brasileiras Da Constituição de 1824, que quase consignou os direitos individuais integralmente, passando às demais Constituições, até a Carta de 1988, vemos o constitucionalismo brasileiro prodigioso em notável técnica e pioneirismo quanto aos direitos e garantias individuais, tendo sido o primeiro Estado a inserir no texto de uma Constituição uma declaração de direitos. Com efeito, a Constituição do Império do Brasil de 1824 foi a primeira a introduzir a declaração de direitos fundamentais individuais em suas normas, como parte nuclear do sistema nela positivado. 11 E tanto isso é verdade que, fazendo explanações sobre o texto constitucional imperial, lecionava Pimenta Bueno que os principais direitos individuais são, como o art. 179 da Constituição e seus parágrafos reconhecem, os de liberdade, igualdade, propriedade e segurança, mas não só cada um deles se divide em diversos ramos, mas também eles se combinam entre si, e formam outros direitos igualmente essenciais. 12 A Constituição de 1891 estabeleceu, em título relativo aos cidadãos brasileiros, uma Declaração de Direitos, que estendia por trinta e um incisos (art. 72), a garantia da inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade. Basicamente, a declaração de direitos na Constituição de 1891 contém só os chamados direitos e garantias individuais, metodologia esta que fora modificada a partir da Constituição de 1934, que guardou a condição de ter sido a primeira a cuidar de direitos sociais (direitos dos trabalhadores, dos servidores públicos), ainda que de maneira pouco eficaz. 13 A Constituição de 1937, ditatorial na forma, no conteúdo e na aplicação, com integral desrespeito ao homem, não dedicava qualquer palavra aos direitos fundamentais. E isso porque Ditadura não rima com Direito, menos ainda com Constituição. 11 Não obstante haja referência em algumas obras de direito constitucional quanto a ter sido a Constituição suíça a primeira a integrar-se por normas declaratórias de direitos fundamentais em seu texto, tal Carta Política, entretanto, datava de 1835, enquanto o texto constitucional do Império do Brasil é de PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 1958, p A Constituição de 1934 reconheceu ainda a inviolabilidade aos direitos à subsistência, elevando, por conseguinte, também estes direitos à condição de fundamentais. 16
19 A Carta de 1946 busca o resgate do constitucionalismo perdido em 1937, tentando recompor, no que diz respeito aos direitos fundamentais, o modelo acolhido na Constituição de Sob a égide desta Lei Maior, o Brasil viveu talvez um de seus únicos períodos de ensaios de uma democracia. 14 Mesmo com as turbulências sociais, políticas e econômicas que dominaram a década de 50, a sociedade floresceu cultural, social e juridicamente nessa fase. O golpe de estado de 1964 veio liquidar com a fase constitucional estabelecida em 1946, determinando o comprometimento dos direitos humanos. Os direitos fundamentais são simplesmente rechaçados, chegando-se ao extremo com o advento do Ato Institucional nº 5, que suspende os direitos e garantias individuais e torna todos os cidadãos vulneráveis à ação do Estado. Nessa época, não há de se falar em Estado de Direito, menos ainda em Democracia ou em direitos fundamentais. A Constituição de 1988, por sua vez, inaugurou uma fase do constitucionalismo brasileiro que não encontrou paralelo no quanto anteriormente experimentado social e politicamente. Tal Carta, diferentemente das sete Constituições anteriores, começa com o homem, foi escrita para o homem e o homem é seu fim e sua esperança (é por este motivo que foi denominada, por Ulysses Guimarães, de Constituição Cidadã). A Carta Magna de 1988, coroando toda a evolução por que passaram os direitos fundamentais, em considerável complexidade, passa a ostentar o arcabouço normativo mais complexo e prolífico de direitos e garantias do homem, 15 nunca antes visto. 14 Aqui não se incluiu, expressamente, no artigo destinado aos direitos e garantias individuais (art. 141, caput), o direito à subsistência. Em seu lugar, inseriu-se o direito à vida. O direito à subsistência se achava inscrito no parágrafo único do artigo 145 da Carta de 1946, onde se assegurava a todos trabalho que possibilitasse existência digna. O direito à vida também foi consignado na Constituição de 1967 (art. 151) e em sua Emenda 1/69 (art. 153), que igualmente cuidaram de assegurar os direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade. 15 A distinção entre direitos e garantias foi muito bem esclarecida por Ruy Barbosa, que asseverou que as normas contenedoras de direitos são meramente declaratórias, enquanto aquelas referentes às garantias são assecuratórias. Estas instrumentalizam a justicialidade quando houver violação de direitos. BARBOSA, Ruy. República: teoria e prática. Petrópolis: Vozes, 1978, p Com bastante propriedade, ensina Ruy Barbosa que: Não se encontrará, na Constituição, parte, ou cláusula especial, que nos esclareça quanto ao alcance da locução garantias constitucionaes. Mas a acepção é óbvia, desde que separemos, no texto da lei fundamental, as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquellas instituem os direitos; estas, as garantias; ocorrendo não raro juntar-se, na mesma disposição constitucional, ou legal, a fixação da garantia, com a declaração do direito (sic.). BARBOSA, Ruy. Comentários à Constituição Federal Brasileira. São Paulo: Saraiva, 1934, v. 5, p A confusão que se faz entre direitos e garantias, ensina o referido autor, desvia-se sensivelmente do rigor científico, que deve presidir à interpretação dos textos, e adultera o sentido natural das palavras, pois direito é a faculdade reconhecida, natural ou legal, de praticar, ou não praticar certos atos, enquanto que garantia, ou segurança de um direito, é o requisito de legalidade, que o defende contra a ameaça de certas classes de atentados, de ocorrência mais ou menos fácil. BARBOSA, Ruy. Trabalhos jurídicos: obras seletas. Rio de Janeiro: Casa de Ruy Barbosa, 1962, v. 11, p
20 Com normas estabelecendo um sistema tão completo de direitos e garantias do homem e do cidadão é de se estranhar que os direitos fundamentais no Brasil ainda não tenham alcançado a eficácia e a efetividade preconizadas pelo Texto Maior. Afinal, não basta a simples existência da Constituição, pois é necessário que cada cidadão seja ativo e participativo a torná-la viva e respeitada. O Brasil não carece de Constituição, mas tem enorme carência de cidadania. 16 E, talvez por isso, é de ressaltar o magnífico papel que vêm desempenhando as Organizações Não-Governamentais ONGs, que, ao denunciarem violações dos direitos humanos, ao trabalharem na construção dos direitos de cidadania e ao atuarem no desenvolvimento de práticas de intervenção social, contribuem sensivelmente para a tomada de consciência dos direitos humanos, indispensável à elevação do princípio da dignidade da pessoa humana e à manutenção do Estado Democrático de Direito. 1.3 Pontos controvertidos na doutrina dos direitos fundamentais Com precisão, observou Ferreira Filho que a Carta de 1988 explicita numerosíssimos direitos fundamentais, muitíssimo mais do que as anteriores e mesmo que as estrangeiras. Basta lembrar que se a Constituição alemã enuncia cerca de vinte e poucos direitos fundamentais e o art. 153 da Emenda nº 1/69 arrolava cerca de trinta e cinco direitos e garantias e o art. 5º da atual enumera pelo menos setenta e seis, afora os oito do art. 6º, afora os que se depreendem do art. 150, afora o direito ao meio ambiente (art. 225), o direito à comunicação social (art. 220), portanto, no mínimo oitenta e seis e provavelmente uma centena, se considerar que vários dos itens do art. 5º consagram mais de um direito ou garantia. Quer dizer, três vezes mais do que o texto brasileiro anterior, cinco vezes mais do que a declaração alemã. Há, portanto, na Carta vigente, uma inflação de direitos fundamentais. 17 No constitucionalismo contemporâneo, o problema da inflação dos direitos fundamentais tem causado preocupação. Alston, 18 chamando a atenção para o problema, assinala a tendência da ONU e de outros corpos internacionais de proclamarem, a todo momento, novos 19 direitos fundamentais, sem critério objetivo algum. 16 Ver, a esse respeito, a obra de ARAÚJO FILHO, Evilásio Correia de. Cidadania e legitimação do Judiciário: censuras e avanços. Curitiba: Juruá, FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Os direitos fundamentais: problemas jurídicos, particularmente em face da Constituição Brasileira de Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 203, jan./mar. 1996, p ALSTON, Philip. Conjuring up new human rights: a proposal for quality control. American Journal of International Law, v. 78, n. 3, 1984, p. 607 e ss. 19 O referido autor registra novos direitos em vias de serem solenemente declarados fundamentais, a saber: direito ao turismo, direito ao sono, direito de não ser sujeito a trabalho aborrecido, etc. 18
21 Para não banalizar os direitos fundamentais, Alston 20 indica seis critérios para que um direito possa ser admitido como fundamental. A seu ver, um direito para ser admitido como tal deve: a) refletir um importante valor social; b) ser relevante (o que é óbvio); c) ser elegível para reconhecimento com base numa interpretação das obrigações estipuladas na Carta das Nações Unidas, numa reflexão a propósito de normas jurídicas costumeiras, ou nos princípios gerais de direito; d) ser consistente com o sistema existente de direito internacional relativo aos direitos humanos, e não meramente repetitivo; e) ser capaz de alcançar um alto nível de consenso internacional; f) ser compatível, ou ao menos não claramente incompatível, com a prática comum dos Estados. Não bastassem os requisitos anteriormente mencionados, que serviriam, segundo o autor acima, para o reconhecimento válido da qualidade de um determinado direito como direito fundamental, Pelloux ainda entende que os direitos de solidariedade são falsos direitos, 21 eis que tais direitos pouco ou nada têm a ver com a noção de direitos humanos, resultante de séculos de reflexão filosófica e jurídica, salientando, para corroborar sua afirmação, entre outros aspectos, o problema da incoercibilidade dos mesmos, além da diversidade de estrutura dos direitos aí incluídos, uns atribuídos a titular individual, mas outros, a maioria, a titulares imprecisos povos, humanidade, coletividade, etc. Para Ferreira Filho, 22 as observações de Pelloux parecem razoáveis, por várias razões. Primeiro, porque, na noção clássica, os direitos fundamentais estão ligados a atributos da pessoa humana, o que não ocorre com os direitos de solidariedade; segundo, porque o objeto dos direitos clássicos é um interesse individual, ao passo que nos de terceira geração esse interesse é coletivo; e terceiro, porque, quanto aos direitos tradicionais, o sistema jurídico interno formula os meios de fazê-los coercíveis, prevendo remédios constitucionais para tanto, o que não acontece com os direitos de solidariedade, pois grande parte deles se situa na esfera do direito internacional e assim não encontram instrumentos jurídicos de imposição no plano interno. A multiplicação dos direitos ditos fundamentais suscita ainda uma outra importante dúvida: a de saber se existe ou não uma hierarquia entre os direitos fundamentais. Para Ferreira Filho, do exame do art. 5º da Constituição brasileira resulta visível a existência de várias constelações de direitos fundamentais. Ou seja, declaram-se, em torno de um direito 20 Ibid., p PELLOUX, Robert. Vrais et faux droits de l homme. Revue du Droit Public et de la Science Politique em France et à l étranger, Paris, n. 1, 1981, p. 53 e ss. 22 FERREIRA FILHO, 1996, op. cit., p
22 fundamental diga-se principal vários outros que são como que seus satélites. 23 Para este autor há direitos principais e direitos secundários e que os verdadeiros direitos fundamentais são os principais, 24 não passando os outros (direitos satélites) de garantias. 25 Em que pese a autoridade do jurista que defende a assertiva acima, não há como prosperar a tese de que existe hierarquia entre os direitos fundamentais. E tal se dá porque não há qualquer hierarquia entre tais direitos, que possuem igual dignidade constitucional. 26 Outro ponto bastante controvertido na doutrina dos direitos fundamentais é o conteúdo e alcance do disposto no art. 60, 4º, inciso IV, da CF/88, que afirma não poder ser objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais. Para alguns autores, a expressão direitos e garantias individuais abrange somente as liberdades clássicas (os tradicionais direitos de liberdade e igualdade, também denominados de direitos-defesa), ou seja, para eles somente os direitos individuais clássicos é que não poderiam ser abolidos pela revisão. O mesmo não ocorreria com os direitos sociais. Essa, contudo, não é a melhor exegese. É que a Constituição em vigor, incontestavelmente uma Constituição Social, reconhece os direitos sociais como direitos fundamentais e, assim, também estes não poderiam ser abolidos através de emendas. 1.4 O problema da eficácia dos direitos fundamentais Antes de se adentrar no mérito do problema, necessário é trazer à baila algumas considerações de ordem terminológica e conceitual. Afonso da Silva distingue a vigência (qualidade da norma que a faz existir juridicamente, após regular promulgação e publicação, tornando-se de observância 23 FERREIRA FILHO, 1996, op. cit., p Para o consagrado constitucionalista, os direitos principais seriam o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade, tudo o mais não passando de complementações ou garantias. 25 A distinção entre direitos e garantias foi muito bem formulada por Ruy Barbosa (vide nota 15). Entretanto, só a título de esclarecimento, vale ressaltar que o termo garantia é empregado em, pelo menos, três sentidos diferentes pelos juristas brasileiros. No primeiro deles, o mais amplo, garantias constitucionais equivalem a freios e contrapesos, ou seja, o arranjo constitucional destinado a impedir o abuso do poder é Ruy Barbosa quem o registra. BARBOSA, Ruy. Comentários à Constituição Brasileira. Coord. Homero Pires. São Paulo: Saraiva, , v. 6, p. 278 e ss. Noutro, mais restrito, as garantias são a proteção específica de um direito fundamental. No terceiro, garantias constitucionais equivalem a remédios constitucionais, isto é, ações judiciais por meio das quais se procura a tutela judiciária de um direito: habeas corpus, mandado de segurança, etc. 26 Será dispensada maior atenção a este problema, em capítulo próprio, adiante. 20
23 obrigatória) da eficácia. 27 Além disso, ainda que se possa partir da premissa de que entre vigência e eficácia (a primeira como pressuposto da segunda) existe uma correlação dialética de complementaridade, 28 é preciso esclarecer o que se entende por eficácia. De acordo com a concepção já clássica deste constitucionalista brasileiro, há que distinguir entre a eficácia social da norma (sua real obediência e aplicação aos fatos) e a eficácia jurídica, noção que designa a qualidade de produzir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos, ao regular, desde logo, as situações, relações e comportamentos nela indicados; nesse sentido, a eficácia diz respeito à aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, como possibilidade de sua aplicação jurídica. Possibilidade e não efetividade. 29 Tomando como base a noção anteriormente referida, a eficácia social confunde-se com a efetividade da norma. Para Barroso, a efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever ser normativo e o ser da realidade social. 30 Já no que tange à relação entre a eficácia jurídica e a aplicabilidade, necessário se faz trazer à baila mais uma vez a lição de Afonso da Silva para consignar que eficácia e aplicabilidade são fenômenos conexos, já que a eficácia é encarada como potencialidade (a possibilidade de gerar efeitos jurídicos) e a aplicabilidade, como realizabilidade, 31 razão pela qual eficácia e aplicabilidade podem ser tidas como as duas faces da mesma moeda, na medida em que apenas a norma vigente será eficaz (no sentido jurídico) por ser aplicável e na medida de sua aplicabilidade. Vê-se, pois, que o problema da eficácia engloba a eficácia jurídica (e, portanto, a aplicabilidade) e a eficácia social. Ambas, inobstante situadas em planos distintos (o do deverser e o do ser), servem à realização integral do direito e, nesta linha de raciocínio, dos direitos fundamentais. As normas constitucionais de direitos fundamentais são, nos exatos termos do direito positivo constitucional brasileiro, de aplicação imediata. Tal assertiva, contudo, não pode ser posta de forma tão singela, dado que a própria Constituição, por conta da formulação em que se têm esses direitos, revela peculiaridades que hão de ser observadas pelo intérprete constitucional. 27 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p Esta é a lição de DINIZ, Maria Helena. Constituição de 1988: legitimidade, vigência e eficácia. Supremacia. São Paulo: Atlas, 1989, p SILVA, 1982, op. cit., p BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p SILVA, 1982, op. cit., p
24 A aplicação imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, expressa no 1 º do art. 5 º da CF/88, significa que a sua exigibilidade não pode diferir por alegações de condicionamentos a situações adotáveis apenas mediatamente, todavia casos há em que a produção dos efeitos próprios e plenos das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais pode apresentar dificuldades em razão da dependência de esclarecimento ou integração da mesma por norma infraconstitucional assim prevista pelo próprio constituinte. No louvável intento de provocar a imediata eficácia dos direitos que consagra, a Carta Magna atual estabeleceu, no 1º do art. 5º, que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Tal previsão deveu-se à influência exercida por outras ordens constitucionais sobre o nosso constituinte. 32 Entretanto, muito embora tal dispositivo tenha sido lido como determinante da aplicação imediata, mesmo para o caso de normas incompletas (isto é, de regras que não contêm, nas hipóteses e, sobretudo, no dispositivo, todos os elementos necessários para guiar a sua aplicação), a doutrina pátria, a exemplo do que ocorre no direito comparado, ainda não alcançou um estágio de consensualidade no que concerne ao alcance e significado do preceito em exame, sendo, pois, um dos temas mais polêmicos de nosso direito constitucional. Uma primeira questão que aflora é a da abrangência material de tal norma, isto é, se aplicável a todos os direitos fundamentais, ou se restrita aos direitos individuais e coletivos do art. 5º da CF/88. Nesse passo, e em que pese a localização do dispositivo, fato que poderia desaguar numa interpretação restritiva, o fato é que não há como sustentar uma redução do âmbito de aplicação da norma a qualquer das categorias específicas de direitos fundamentais consagradas na nossa Carta Política. É que, como bem afirmou Sarlet, há que se entender pela aplicabilidade imediata (por força do art. 5º, 1º, da CF/88) de todas as normas de direitos fundamentais constantes do catálogo (art. 5º a 17), bem como dos localizados em outras partes do texto constitucional e nos tratados internacionais, eis que a extensão do regime material da aplicabilidade imediata aos direitos fora do catálogo não encontra qualquer óbice no texto de nossa Lei Fundamental, harmonizando, para além disso, com a concepção materialmente aberta dos direitos fundamentais consagrada, entre nós, no art. 5º, 2º, da CF Neste contexto vale citar o art. 18/1 da Constituição Portuguesa de 1976, o art. 332 da Constituição do Uruguai, o art. 1º, III, da Lei Fundamental da Alemanha, e o art da Constituição Espanhola de SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais sociais na Constituição de In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.) O direito público em tempos de crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p Estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel. 22
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