A Marca do Medo. Silvia Emilia Espósito* Palavras-chave: psicanálise, medicina, drogadição, auto-ajuda:

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1 A Marca do Medo Silvia Emilia Espósito* Palavras-chave: psicanálise, medicina, drogadição, auto-ajuda: Ficou lugar comum declarar a morte da psicanálise porque está desatualizada ou fora de moda ou, o que é pior, por estar enganada, sem se dizer exatamente em que o está. Por isso, o titulo dado a esta homenagem aos cem anos do nascimento de Jacques Lacan adquire uma significação ainda mais especial. Miller, no seminário O lugar e o laço nos lembra que dar um titulo é dar um lugar no sentido de topos e não de extensão, a mesma operação que permite distinguir o tempo de saber como diferente do tempo, da atualidade, da moda ou do engano. A virada de Lacan foi pensar a existência da psicanálise por alguma coisa a mais que a história, ou seja, pelo laço do analista com a psicanálise. Por outro lado, o inquietante não é só a morte declarada da psicanálise mas o que se tenta colocar em seu lugar. De fato, a doença está generalizada, tudo é doença, ao passo que tudo é terapêutico, todo objeto pode curar, ou inicialmente tem esse valor. Desde esse ponto de vista, a palavra, também objeto, ou está carregada, cheia de significação e, por conseqüência, reduzida a interpretações clichê, no princípio do tudo vale, ou é, sem nenhuma significação e a cura se produz pelo próprio desabafo. Até a religião e a filosofia são cada vez mais terrenas e terapêuticas. Entretanto, do mesmo jeito se nos avisa que qualquer objeto se pode transformar em vício, que a carne é fraca, e que temos que ter cuidado porque o perigo pode estar escondido em qualquer canto. A doença e os doentes - por que não?- nos espreitam e devemos estar alertas para não sermos pegos. Metáfora científico - médica, aliás, que não conhece fronteiras e pode ser usada em todas as ordens da vida. O terror nos acompanha até nos vírus do computador A partir disso, o problema seria como "ordenar" essa vida permanentemente ameaçada. Vida, por outro lado, que adquire o sentido, de "sobre- vida" como efeito do terror. Assim, é um saber, mais ou menos estabelecido, que o sofrimento é produto da repressão das pulsões, vale dizer, das exigências contrárias a sua satisfação. A oposição indivíduo- sociedade produziria, desse modo, o mal- estar próprio de quem busca viver

2 conforme as normas. Para nossa surpresa, Freud descobre que, quanto mais os neuróticos se empenham em renunciar às suas pulsões, não só a tarefa é impossível, como a própria renúncia produz satisfação do supereu. De todas maneiras aquele saber estabelecido ordena uma moral educativa, em que se interpreta qualquer conduta dentro da lógica do eu - tu, como transgressão ao outro que se assume como representante do social. Segundo Éric Laurent, há uma tese que de um ponto de vista ingênuo coloca (...) "que a psicanálise se ocupa do desenvolvimento normal e da patologia individual, e que tudo o que concerne ao coletivo concerne à uma outra ordem de ciências humanas (...) Sob o modo sofisticado a tese diz que a cientificidade da psicanálise está a se elaborar em uma teoria geral, de nível coletivo de onde se distribuem em seguida os efeitos que justificam aparentemente a existência da categoria de sujeito do inconsciente. Entretanto a psicanálise não só não trás uma teoria geral, como contesta a idéia de um universal tanto no nível individual, como coletivo. Continua Éric Laurent: "Com o instrumento clínico da hipnose e a distinção entre eu e ideal do eu, Freud 'dá pelo mesmo golpe a fórmula da fascinação coletiva, que era uma realidade ascendente à época em que ele escreveu este artigo. " O laço entre o objeto olhar e o traço ideal (significante) permitem a Freud desvendar a articulação do líder com a massa, do individual com o coletivo. Quando Maria veio à primeira entrevista, fazia um ano que estava limpa. Tinha uma preocupação, queria deixar o grupo que freqüentava e nem se animava a confessar-se esse desejo. De fato, a consulta teve essa motivação inicial. Conta, assim, que esse grupo foi um ponto de chegada de uma longa peregrinação por diversos profissionais, a partir de duas ou três visões que teve e com as quais ficou evidentemente assustada. O primeiro psiquiatra disse que não poderia interná-la por falta de lugar adequado. Frase que para Maria equivale a um diagnóstico de louca. Diagnóstico que marcou um percurso de duplo sentido. Por um lado enlouquecer, cumprindo assim o destino que a ciência lhe marcou, tanto como sua negação, não querer saber. A partir daí, álcool, drogas e drogas- remédios formaram a dupla perfeita da condição de Maria. Ainda é enigmático, para Maria, por que o médico não falava uma palavra sobre seu estado, quando ela chegava ao consultório de ressaca e cheirando a álcool, pedindo, e ele lhe dava, outro remédio. A busca não parou por aí, Maria consultou outros psiquiatras e, inclusive, outros profissionais de técnicas alternativas. Sem saber, segue a lógica do mercado que aposta

3 nas ofertas de curas. Lógica esta que supõe, enfim, que o objeto existe. E ela, que busca? Busca um objeto- parceiro que a proteja do medo da loucura. Mas dentro dessa lógica do objeto como obturador, a única solução é que o medo não apareça.aqui podemos lembrar de Freud e sua crítica ao uso da sugestão com objetivo moralizante, vale dizer, do outro colocado no lugar da lei. Mas busca também uma resposta, para sua pergunta é biológico, é psíquico, lhe falta alguma substância...? De todas as formas, Maria, na "leveza" inconseqüente que lhe dão seus parceirosdrogas, não sente medo, "fez coisas que hoje não sabe como" só que o supereu driblado da noite anterior, reaparece com toda força no dia seguinte. Nesse estado de festa e martírio, procura um centro especializado que, ao tratamento inicial geral de desintoxicação, acrescenta um grupo de ajuda. Este se instaura sob o significante drogadicto e com uma lei: o "nunca mais" da proibição do uso do álcool ou da droga. Impedir o gozo do uso, entretanto, produz um silêncio no valor de câmbio. Num verdadeiro "meu passado me condena" o "ex" se especializa em inventar recursos para isolar, expulsar o objeto, que se traduz pela proibição de visitar certos lugares, de sair a certas horas, de ver certas pessoas, inclusive de vestir certas roupas e de usar certos símbolos. Tudo o que possa lembrar e funcionar como tentação é recusado. Nesse sentido, podemos imaginar uma multidão de objetos que individualmente são cercados de todos os cuidados. Cuidados que se exprimem numa frase medo da recaída. Se poderia dizer, assim, que existe uma substituição da droga- bebida, pelo grupo que está ao serviço da repressão e do silêncio. A dependência sofre um processo de deslocamento da droga, ao grupo que se constitui em depositário dos cuidados tutelares de cada membro. E Maria, nesse contexto, deixa de usar droga e bebida, só que atrelada à dicotomia vício ou grupo, e do Outro como garante. Mas, o fim inicial, que era banir o medo, surge na metonímia do medo da recaída e é, justamente, tema do qual o grupo não tem resposta, na medida em que não se pode ligar a nada. (saber) O terror flutua nos traços que cada um encontra na sua singularidade. Nesse sentido, Maria não usava salto alto porque tinha medo de cair. Por outro lado qualquer falta ao grupo é alarmante porque pode significar a queda. As interpretações, no geral, giram em torno das experiências que cada um tem e dos diferentes momentos dessas experiências. Maria cumpriu com todas as tarefas que se esperam de uma "ex" difundia as idéias, a cartilha dos grupos de ajuda, falava com outros viciados, etc..

4 É importante destacar a função do grupo como estimulador/ orientador de uma tarefa, que Maria soube desempenhar e, por isso mesmo, de um certo apaziguamento do medo, mas também do limite dessa função. Mas a que custo essa coesão se realiza? "A outra cena" se constitui no fundamento do grupo, que deve seu caráter, justamente, por ser deixada de fora. Os limpos e reerguidos pelo apelo ao líder, suposto alicerce do grupo, obedecem à outra dimensão. Segundo Lacan, "Além da relação do grupo com a tarefa ou o objeto que ele se dá trata-se de uma dimensão da experiência de uma outra ordem o desejo, o tédio, a clausura, a revolta, a prece, a vigília, [...] o pânico enfim estão aí para testemunhar a dimensão desse Algures, [...] como princípios permanentes das organizações coletivas, fora das quais não parece que a vida humana possa se manter durante muito tempo ". O próprio Freud na Psicologia das massas e analise do eu, 1920 reconhece o aparecimento da angústia, e conseqüente pânico e desagregação, como efeito da perda do líder. Maria hoje se defronta com uma constatação, seus conflitos têm a estrutura do círculo das drogas. Depois de uma semana em que fica desnorteada pela crítica feroz do supereu, agora não mais pelo uso da droga ou da bebida, mas por qualquer coisa, chega na sessão dizendo que está de ressaca. Segundo o Aurélio ressaca é a investida fragorosa, contra o litoral, das vagas, (ondas) do mar muito agitado, e também a vaga que se forma nesse movimento de recuo. Para surpresa de Maria, independente da renúncia à satisfação o mal- estar subsiste. A ética da psicanálise não se situa na vertente da renúncia ou satisfação, mas no desvendar que desejo se satisfaz, nesse desejo de outra coisa. Na análise o fundamental é como fazer para que o paciente fale daquilo que prefere não saber, que prefere silenciar. Na medida em que a associação livre responde com a lógica que amarra a verdade do gozo à ordem simbólica por meio do sintoma. Nesse sentido psicanálise e psicoterapia é o titulo que visa esclarecer o laço da prática da escuta que transbordou sobre a civilização contemporânea, e não o território que é próprio a cada uma. Por fim Éric Laurent distingue: "A diferença entre a moral do discurso do mestre, a da civilização, no sentido de Freud, e o desejo do psicanalista é que do lado do mestre, < deixamos entrever que ele poderia ter um saber-viver do lado da psicanálise denunciamos aqueles que ocupam-se de fazer pesar sobre os outros "a vergonha de viver".

5 *Texto apresentado na Homenagem ao Centenário do Nascimento de Jacques Lacan- Escola Brasileira de Psicanálise Delegação Paraná- 1 de dezembro de Referências Bibliográficas MILLER, J.A. ( ) seminário "O lugar e o laço" LAURENT, É.(2000) artigo Sete problemas de lógica coletiva na experiência da psicanálise segundo o ensinamento de Lacan Revista Brasileira Internacional de Psicanálise Opção Lacaniana Número LACAN, J. (1979) Seminário, Livro 11, "Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise" Zahar Editores Rio de Janeiro. (1978) "Escritos" Ed. Perspectiva São Paulo