A DEVOÇÃO DE NARCISO: A ANGUSTIANTE DINÂMICA DO CORPO PERVERSO

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Transcrição:

A DEVOÇÃO DE NARCISO: A ANGUSTIANTE DINÂMICA DO CORPO PERVERSO Fabio Gustavo Romero Simeão; Hermano de França Rodrigues Universidade Federal da Paraíba, fabiogustavor@gmail.com Resumo: O homem, na sua aversão a tudo aquilo que lhe é diferente e que não consegue controlar sempre erigiu barreiras ao redor da sexualidade. Através de discursos ora religiosos, ora médico-legais, a sexualidade correntemente via-se interditada por um falso moralismo, que institui, no decurso temporal, uma diáspora entre práticas sexuais higiênicas e sexo abjeto. Assim, qualquer sujeito que ousasse transgredir os limites do entendido como natural era vilmente rotulado de perverso. Na atualidade, é a ciência médica, mais especificamente a psiquiatria, que define as atividades sexuais desviantes, denominando-as de parafilias, a exemplo do voyeurismo, exibicionismo, sadomasoquismo, fetichismo, entre outras. É contra essa normatização que o trabalho da psicanalista neozelandesa Joyce McDougall se constrói. Com o conceito de neo-sexualidades, McDougall compreende a plasticidade dos laços eróticos como arranjos, ou simplesmente possibilidades, que a própria sexualidade humana nos proporciona. Dessa maneira, procura livrar-lhes da conotação negativa que o termo perversão carrega. Nossa pesquisa, numa conexão entre os estudos psicanalíticos de base (pós)freudiana, e a leitura que McDougall faz das perversões sexuais enquanto soluções psíquicas, procura elucidar, no conto Relicário, de Felipe Greco, os mecanismos subjetivos da perversão, os quais mobilizam o protagonista, demarcando sua maneira de enlaçar-se com o outro, numa liturgia onde a castração é rarefeita e insuficiente. Palavras-chave: Literatura, psicanálise, perversão, neo-sexualidades. Introdução A palavra perversão, provém do verbo latino pervertere que quer dizer por às avessas, reverter, desviar. Segundo Ferraz (2010), o termo passou por diversas transformações até chegar a sua conotação atual. Foi a medicina oitocentista, no seu intuito de categorizar a sexualidade humana em práticas aceitáveis e não-aceitáveis, que empregou o termo para referir-se às expressões sexuais tidas como desviantes, patológicas. É nesse contexto que a psicanálise surgiu e, em 1905, Freud publica o seu polêmico Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, no qual, ainda influenciado pelas teorias médicas vigentes no seu tempo, discorre sobre anomalias sexuais em termos de aberrações. Mais tarde, a perversão assumiria, junto com a neurose e a psicose, a categoria de estrutura propriamente dita, com seus impasses e ambivalências singulares. Nossa discussão pretende tratar da perversão sexual, à luz da psicanálise de base (pós)freudiana, apoiando-nos, também, em algumas considerações de caráter sócio-histórico. Desta maneira, recorremos a Relicário, conto homoerótico que dá título à coletânea (2009), do editor e ficcionista Felipe Greco, no qual, o protagonista, incomodado com o óbvio do sexo, descobre as faces ocultas de sua sexualidade. Dividimos, assim, o presente trabalho da seguinte maneira:

primeiro discorremos brevemente sobre as diferentes faces que o sexo considerado abjeto assumiu ao longo da história, compreendendo um tempo anterior e um posterior ao surgimento das grandes religiões monoteístas, em seguida, tecemos algumas considerações, de teor psicanalítico, sobre a perversão enquanto estrutura, do ponto de vista freudiano e a leitura que a psicanalista neozelandesa Joyce McDougall (1983, 1997) fez das ditas perversões sexuais. Finalmente, analisamos a narrativa em foco, a fim de encontrar, no texto literário, representações de uma sexualidade tida como desviante, subversiva, transgressora. Notas históricas sobre a sexualidade Desde tempos remotos, o homem, em seu intuito de dominar suas pulsões mais íntimas, cria dispositivos com vistas a regular e padronizar as condutas sexuais. Sendo uma construção social, a sexualidade vê-se, muitas vezes, interditada por discursos historicamente situados, que visam controlá-la. Salles & Ceccarelli, parafraseando Foucault colocam que: Lembremos que os discursos sobre a sexualidade aparecem em momentos sóciohistóricos precisos como uma tentativa de normatizar as práticas sexuais de acordo com os padrões da época, pois o controle da via social e política só poderia ser alcançado pelo controle do corpo e da sexualidade. (2010, p. 16) Assim, entendemos que, em diferentes épocas ou culturas, as concepções relativas à sexualidade humana podem variar exaustivamente. No caso da sociedade ocidental, atestamos a considerável influência dos preceitos judaico-cristãos, que até os dias atuais caracterizam a maneira com que tratamos aspectos afetivos à sexualidade. Como pretendemos demonstrar, muito brevemente, o sexo considerado normal assumiu, através da história, particularidades das mais diversas, desde os gregos e romanos, passando pelos grandes padres da igreja católica Agostinho, Jerônimo e Tomás de Aquino até a atualidade. A concepção que as sociedades (Egito, Grécia, Roma, do Vale do Indo e China, etc.) anteriores ao advento do cristianismo construíram da sexualidade diferem profundamente das construções atuais. Nessas sociedades politeístas, os deuses e seres divinos apresentavam uma sexualidade extremamente plástica e diversificada, praticando, muitas vezes, atos sexuais que hoje são considerados desviantes como incesto, homossexualidade, bestialidade. No panteão grego podemos apontar os casos das relações homossexuais entre Zeus e Ganimedes, ou, Poseidon com Pélope. Já, na mitologia egípcia, lembramos de Osíris, que manteve uma relação incestuosa com sua irmã, Ísis. Na teogonia hindu, encontramos relatos de deuses que mudavam de sexo a seu bel prazer,

como quando Krishna assume uma forma feminina Mohini e mantém relações sexuais com o guerreiro Aravan. Se compreendermos estas histórias, como ecos dos valores e ideais dos povos que as criaram, as mesmas ajudam-nos a compreender melhor as múltiplas faces que a sexualidade assumira nestas sociedades. Nesse primeiro momento (anterior ao cristianismo), a concepção que se tinha da sexualidade, era de que ela serviria tanto para a obtenção de prazer, quanto para a procriação. A preocupação não girava em torno do gênero dos amantes como na atualidade, mas, de quem fazia o quê a quem (NAPHY, 2006). Tal era o caso que, na Grécia clássica, a pederastia 1 era quase uma instituição por si própria, inerente ao estilo de vida grego. E, na Roma antiga, homens livres podiam relacionar-se tanto com mulheres quanto com homens fossem eles escravos ou prostitutos sempre que eles fizessem o papel de ativo. Conforme apontado por Naphy: Os Romanos encaravam o sexo como essencialmente um ato de penetração. O prazer e a procriação eram ambas razões igualmente aceites para a atividade sexual, mas, basicamente, um homem penetrava alguém ou alguma coisa. (2006, p. 62, grifo do autor). O papel do homem, nesse então, era o de penetrador. Colocar-se na posição de penetrado era inadmissível, acarretaria grande desonra e até retaliações das mais violentas. Numa relação homossexual, a desonra cairia somente no parceiro penetrado, uma vez que, ao permitir que outro homem o possuísse, estaria admitindo a sua inferioridade. Esta visão do sexo como um ato de penetração sempre por parte do homem não era exclusiva dos gregos e seus vizinhos romanos, mas, de uma maneira geral, e com poucas distinções, apresentava-se nas mais variadas sociedades pré-cristãs ocidentais e orientais. Com a ascensão do cristianismo e das religiões monoteístas judaísmo e islã a partir do séc. III e IV d.c., o mundo antigo, e suas concepções sobre a sexualidade, sofreram mudanças radicais. Para estas religiões, o sexo não poderia ser uma atividade de simples prazer, como Salles & Ceccarelli destacam: [...] a ideia de natureza humana passa a ser identificada à vontade divina, tornando-se um paradigma de reflexão moral: tudo que é natural é bom e apraza a Deus. Surge, assim, a ideia de coito natural que deu origem ao discurso que separa as práticas sexuais em normais, identificadas à procriação, e anormais, que diziam respeito às práticas infecundas. (2010, p. 17-18). 1 Consistia em um homem adulto (erastes) de status social elevado e um jovem adolescente (eromenos) socialmente menos favorecido. Esta relação era altamente idealizada e tinha primordialmente um caráter educativo, porém, como Naphy (2006) ressalta, o fator sexual não era excluído.

A partir de então, o sexo e tudo relacionado a ele deveria servir a um único e divino propósito: a reprodução da espécie. Dessa maneira, quaisquer atividades que não resultassem em procriação como a felação, coito anal, masturbação eram consideradas crimes contra natura, severamente proibidas e perseguidas. A importância atribuída ao gênero dos indivíduos, numa relação, era decorrente desta ideação para procriar que o sexo assumiu. A única possibilidade admitida era a de um homem e uma mulher e, qualquer variação era excepcionalmente castigada. O casamento entre homem e mulher se configuraria como único espaço admitido para o sexo, lembrando que este deveria servir sempre à reprodução. Esta construção da sexualidade, transbordaria os muros da Igreja e dos monastérios para firmar-se no pensamento culto e popular daquela época e perdurariam até os dias de hoje. Na atualidade, nossa relação com tudo que é sexual, continua imbuída destes mesmos valores judaico-cristãos. Quando a natureza impõe-se à cultura À luz da psicanálise, o que poderíamos qualificar como perversão no âmbito da sexualidade humana? No seu controverso Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905/2010), Freud caracteriza o ato perverso em relação à primazia da genitalidade, que, para ele, seria o resultado esperado do desenvolvimento psicossexual da criança. Sendo assim, a meta final do ato sexual, tido como normal, seria o escoamento da libido para os genitais, e, quaisquer variações disto, concebidas como perversão. Nesse sentido, encontraríamos um quê de perverso na atividade sexual da grande maioria das pessoas, posto que, em quase toda relação sexual, existem atos preliminares ou metas provisórias nas palavras de Freud, como o olhar, o toque, o beijo, etc. Um certo grau de perversão é a norma; o patológico se instaura somente: Se a perversão não surge ao lado do que é normal (meta sexual e objeto), quando circunstâncias favoráveis a promovem e desfavoráveis impedem o normal; se, em vez disso, ela reprime e toma o lugar do normal em todas as circunstâncias ou seja, havendo exclusividade e fixação por parte da perversão, consideramos legítimo vê-la como um sintoma patológico. (2010, p. 57) Assim, a perversão sexual, enquanto sintoma patológico, configurar-se-ia no momento em que as metas provisórias assumissem o papel de eixo organizador da sexualidade e ocupassem o lugar da meta sexual normal. Quando elas deixam de ser etapas até o coito e se convertem no centro do ato sexual propriamente dito, compreendemos que se instaurou a patologia.

Ao explicar a etiologia das perversões, em O Fetichismo (1927/2010), Freud localiza a principal causa na impossibilidade de superar o complexo de castração 2. Esse complexo seria uma fase do desenvolvimento psicossexual da criança em que ela se depararia com a diferença anatômica dos sexos (os meninos têm pênis e as meninas não). Essa constatação traz uma angústia avassaladora sobre a criança, porque ela fantasia que, se alguém não tem um pênis, é porque foi castrada e, sendo assim, o mesmo destino poderia atingi-la. Incapaz de ressignificar suas angústias 3, a criança fixa-se numa determinada fantasia de ordem pré-genital (podendo ser de caráter oral, anal ou uretral) e a perversão sexual surge como meio de desmentir a castração, negar o sofrimento, conseguindo, assim, lidar minimamente com suas querelas psíquicas. Quando aborda as perversões sexuais, a psicanalista neozelandesa Joyce Mcdougall propõe encará-las como tentativas de curar-se. Mais do que uma degeneração, seriam respostas, construções que os sujeitos arquitetaram para poder existir no mundo, para defender-se da morte psíquica que os persegue: A observação clínica convenceu-me de que as crianças que estão fadadas a desenvolver um comportamento sexualmente desviante na vida adulta, inicialmente criaram seu teatro erótico como tentativa protetora de cura de si mesmas, ao se defrontarem com uma angústia de castração esmagadora, proveniente dos conflitos edipianos [...] (1997, p. 195, grifo nosso) Posto que, para Mcdougall, a sexualidade é sempre traumática e todos passamos por conflitos durante o nosso desenvolvimento psicossexual, as soluções que encontramos para os mesmos são das mais diversas ordens, o que diz da plasticidade e multiplicidade que a sexualidade humana dispõe. Por causa da conotação negativa que a palavra perversão carrega, Mcdougall desenvolve o conceito de neo-sexualidades 4 para referir-se às práticas sexuais que são normalmente consideradas perversas ou desviantes, mas, que respeitam a alteridade e o consentimento do outro. Ao dividir as atividades sexuais consideradas simples variações das sintomáticas ou patológicas propriamente, Mcdougall coloca que: 2 É a angústia de castração que impele os meninos a abdicar do seu amor incestuoso pela mãe e atravessar, assim, o complexo de Édipo, já no caso das meninas, é a angústia de castração que as insere no âmbito do Édipo. (FREUD, 1938). 3 Numa perspectiva kleiniana, poderíamos argumentar que a inabilidade da criança, em ressignificar suas angústias, seria uma consequência direta da introjeção de figuras parentais extremamente fragilizadas, assim, a criança se veria impossibilitada para realizar as funções maternas e paternas consigo mesma. 4 McDougall utiliza-se do conceito de neo-realidades, realidades estas que são criadas por sujeitos fronteiriços para lidarem com angústias psíquicas esmagadoras. Dessa maneira, as neo-sexualidades seriam, também, criações eróticas que a criança interior do sujeito conseguiu edificar para minimamente sustentar-se. (MCDOUGALL, 1997).

Em geral, eu reservaria o termo perversão como um rótulo para atos em que um indivíduo (1) impõe desejos e condições pessoais a alguém que não deseja ser incluído naquele roteiro sexual [...] ou (2) seduz um indivíduo não responsável [...] este rótulo [perversão] se aplicaria então a trocas sexuais nas quais o indivíduo perverso é totalmente indiferente às necessidades e desejos do outro. (Ibid., p. 192) Com relação ao primeiro item, poderíamos pensar nos casos de estupro, voyeurismo, exibicionismo, etc. pois são práticas nas quais não existe o consenso das partes envolvidas. Já o segundo ponto se refere à pedofilia e a relações com pessoas cognitivamente vulneráveis, incapacitadas de decidirem por si sós, pois, da mesma forma, não haveria lugar para o consentimento. Neste sentido, a característica primeva da perversão sexual, em si, seria a negação da alteridade. Ao negar o outro, os seus desejos e necessidades, o perverso reduz seu parceiro a condição de objeto, de fetiche. Laços solitários, uniões desejantes A coletânea de contos homoeróticos, Relicário (2009), do ficcionista e editor Felipe Greco, reúne vinte e quatro contos que o mesmo escrevera durante uma parceria de três anos com a G Magazine revista brasileira dedicada ao público gay. Nos seus contos, Greco se apropria de alguns clichês e estereótipos propalados no imaginário homossexual e os desenha com um lirismo aliciante. Nossa discussão debruça-se, especificamente, sobre o conto Relicário título que dá nome à coletânea com o fim de elucidar alguns mecanismos subjetivos da perversão, os quais mobilizam o protagonista na sua maneira de entrelaçar-se com o outro. Na narrativa em foco, a voz do narrador e a do autor confundem-se numa descrição do personagem e de suas desavenças sexuais. Num tom ácido e vingativo, este narrador retrata o protagonista como vítima de um discurso tingido de referências à religião que, por muito tempo, o sufocara. Numa sociedade ainda pautada por um falso moralismo e hipocrisia, a violência contra homossexuais é inclemente e o personagem em questão é retratado enquanto vítima das diversas formas que a homofobia assume no cotidiano. Podemos atestar seu sofrimento, com um discurso que o coloca à margem do corpo social, e o impele a ocupar espaços periféricos. Em seguida, o personagem assume uma postura mais ativa diante da sua sexualidade e o narrador descreve suas práticas sexuais no seguinte trecho: Primeiro, ele respira fundo, até exorcizar seus traumas. Decantado o último freio, meu personagem flutua tesudo e insuspeito à caça de preciosidades. Nas ruas, praças, teatros, shoppings, enfim, nos lugares mais inusitados e sob cada peça de

roupa, ele adivinha a nudez de seus amados, como um Michelangelo febril, querendo livrar do frio da pedra um novo e ainda mais vigoroso David. (GRECO, 2009, p. 15) Aos poucos, somos apresentados à maneira com a qual o personagem consegue viver sua sexualidade que, como veremos adiante, é marcada por um auto-erotismo imperioso. Primeiro, ele sai à procura de homens com atributos que chamem sua atenção e que cumpram algumas condições, sendo a principal destas não encontrar nenhum sinal de retribuição. A possibilidade de que esses homens o rechacem excita o desejo contraventor, vampiro e incógnito (Ibid., p. 15) do protagonista. Continuando seu roteiro sexual, ele relembra todos os homens que observara no dia e, a partir do que mais gostou neles, recria um homem ideal na sua imaginação homem este que, nas suas fantasias mais íntimas, torna-se o seu único parceiro: Construída a imagem, ele se põe a trilhar o caminho inverso. É fundamental mapeá-la e cerzi-la com músculos de lutador, tornando-a suficientemente forte para virá-lo de quatro com uma única e certeira bofetada para, em seguida, penetrá-lo sem rodeios. Então, criador e criatura de sua obra, ele começará a se masturbar, recitando versos que roubou dos mictórios. (Ibid., p. 16) A masturbação foi o único intermédio que ele conseguiu para vivenciar sua sexualidade que assume, aqui, uma forma final e auto-erótica. Essa sexualidade, que poderia parecer muito limitada ou atrofiada, nada mais é do que uma possível variante que a sexualidade humana dispõe, tão plástica e diversa em si mesma. Em concordância com as postulações de McDougall (1997) sobre as neo-sexualidades, poderíamos considerar esta construção como sendo de ordem neo-sexual, mais especificamente auto-erótica, a fim de separá-la da conotação negativa que a palavra perversão carrega, posto que o personagem nem impõe seus desejos eróticos sobre ninguém e tampouco viola as necessidades de outras pessoas, como seria o caso do voyeurismo, exibicionismo, etc. Entendemos seu teatro erótico como sendo uma solução que o infante interior do personagem encontrou para, dessa forma, suportar minimamente suas querelas psíquicas. Considerações finais Neste trabalho, procuramos representações de uma sexualidade tida como desviante ou patológica, no texto literário, com vistas a elucidar alguns mecanismos da perversão sexual. Para tal, num primeiro momento recorremos à psicanálise de base (pós)freudiana, e em seguida apresentamos as contribuições da psicanalista neozelandesa Joyce McDougall que, através do seu

conceito de neo-sexualidades, ajuda a livrar certas práticas sexuais da conotação negativa que a palavra perversão carrega. Ela compreende estas sexualidades paralelas como arranjos possíveis que dizem da história e sofrimento do sujeito, uma vez que, para a mesma, toda sexualidade é traumática. Na narrativa estudada, deparamo-nos com uma sexualidade que, segundo as postulações de Freud, poderia ser enquadrada no âmbito da perversão sexual enquanto sintoma patológico, por sua natureza auto-erótica. Mas, uma vez que observamos o mesmo fenômeno através da leitura de McDougall, compreendemos que, algumas práticas tidas como patológicas, são, de fato, simples variações que a sexualidade humana permite, pois, não negam a identidade do outro e nem o reduzem a simples objeto, a um simples fetiche. Referências CEMBRANELLI, Fernando A. Tadei. A Poesia Dissonante de Eros. In: PINTO, Graziela Costa. Sexos, a trama da vida: fronteiras da transgressão, vol. 4, p. 7 13. São Paulo: Duetto Editorial, 2008. CORREA, Carlos Pinto. Perversão: trajetória de um conceito. Estud. psicanal., Belo Horizonte, n. 29, p. 83-88, set. 2006. FERRAZ, Flávio Carvalho. Gozo da Onipotência. In: PINTO, Graziela Costa. Sexos, a trama da vida: fronteiras da transgressão, vol. 4, p. 14 21. São Paulo: Duetto Editorial, 2008. FERRAZ, Flávio Carvalho. Perversão. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010. FREUD, Sigmund. Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. In: Obras Completas Volume 6. São Paulo: Cia das Letras, 2010. FREUD, Sigmund. O Fetichismo. In: Obras Completas Volume 17. São Paulo: Cia das Letras, 2010. GRECO, Felipe. Relicário. In:. Relicário: Contos homoeróticos. São Paulo: GLS, 2009. MCDOUGALL, Joyce. As Múltiplas Faces de Eros: Uma exploração psicanalítica da sexualidade humana. São Paulo: Martins Fontes, 1997. MCDOUGALL, Joyce. Em Defesa de Uma Certa Anormalidade: Teoria e clínica psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.