Considerações sobre o art. 166 do CTN e a não-cumulatividade das Contribuições ao PIS e à Cofins Eduardo Maneira Propõe-se, com o presente estudo, verificar se, a partir da adoção do regime não cumulativo para as contribuições ao PIS e à Cofins, o eventual pedido de restituição destas contribuições passou a se submeter à regra do art. 166 do CTN, que confere legitimidade para tal pleito somente àqueles que provem ter assumido o encargo financeiro do tributo que se pretende repetir ou estejam expressamente autorizados por quem assumiu referido encargo. Dividiremos a nossa análise em três partes. Na primeira, trataremos daquilo que entendemos por nãocumulatividade, cumulatividade e monofasia. Na segunda parte, verificaremos se os fatos geradores do PIS e da Cofins comportam ou permitem a aplicação destes conceitos analisados na primeira parte, ou seja, verificaremos se é adequado falarmos em incidência monofásica, cumulativa ou não cumulativa sobre as receitas. Na terceira parte, apresentaremos nossa conclusão. Começando pela nãocumulatividade: antes do advento da EC nº 42/2003, a nãocumulatividade significava aquilo que está na Constituição para o IPI e o ICMS, ou seja, compensar o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas operações anteriores. Por outras palavras: a nãocumulatividade permite que o crédito fiscal das aquisições de bens e serviços vinculados, direta e indiretamente, ao processo de produção seja oposto ao débito decorrente das operações mercantis de vendas e assemelhados, garantindo a natureza jurídica ontológica dos chamados impostos sobre o consumo que devem ser suportados financeiramente pelo consumidor final de mercadorias e serviços. Vale dizer, o princípio da não-cumulatividade é o próprio dos tributos que comportam, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro, ou seja, é de aplicação para os tributos indiretos, que por sua natureza devem ser não cumulativos. No entanto não se pode perder de vista que sob a ótica econômica, todo e qualquer tributo repercute no preço das mercadorias e dos serviços, pelo simples fato de ser considerado como custo na composição do seu preço. Cabe ainda ressaltar que a não-cumulatividade para o ICMS e o IPI consagra a técnica da diferença imposto-contra-imposto. De sua vez, a cumulatividade significa o inverso disto. A cumulatividade ocorre quando uma mesma base é onerada duas vezes o que é comum nos tributos plurifásicos -, porém sem possibilidade de compensação da incidência anterior, por motivos decorrentes de problemas na aplicação da nãocumulatividade. Isto é, a cumulatividade jurídica é uma deformação da nãocumulatividade, ou, melhor ainda, 1
até a EC nº 42/2003, a cumulatividade decorria da máaplicação da não-cumulatividade. Ora, não-cumulatividade e cumulatividade são conceitos jurídicos que só têm espaço nos impostos plurifásicos que devem ser não cumulativos, mas que por alguma deformação do sistema tornam-se circunstancialmente cumulativos. Esta deformação pode ter variadas causas. No Brasil, o fato de o ICMS ser de competência dos Estados que aplicam alíquotas variadas e não uniformes é causa de cumulatividade; as desonerações por força de isenção e alíquota zero que ocorrem no meio da cadeia geram cumulatividade; base de cálculo supermajorada e definitiva na substituição tributária gera cumulatividade e assim por diante. Pela última vez, apenas para aqueles tributos que por sua natureza devem ser não cumulativos, pode se falar em cumulatividade, ou alguém já ouviu falar em IPTU cumulativo, IPVA cumulativo ou Imposto sobre a Renda cumulativo? Esta sempre foi a idéia de não-cumulatividade e de cumulatividade. Tanto é assim que o art. 154, I, ao permitir que a União institua imposto novo, desde que seja não cumulativo, deve ser interpretado no sentido de que se este imposto novo for sobre o consumo e plurifásico não pode ser cumulativo. É proibido constitucionalmente imposto cumulativo. Agora, se a União, por exemplo, instituir um imposto sobre a propriedade de aeronaves e embarcações de passeio (lanchas, iates) etc., que estão fora do campo de incidência do IPVA e, portanto, poderia ser objeto da competência residual da União. Neste caso, o imposto sobre a aeronave poderia ser apontado como inconstitucional porque ele não era não cumulativo? Óbvio que não. Este novo imposto não é não cumulativo nem tampouco cumulativo; a sua natureza de imposto direto sobre a propriedade afasta estes conceitos. Não estamos aqui a tratar da cumulatividade econômica que é um problema de política tributária, que se dá, por exemplo, nos casos do ICMS e Cide nas operações de combustível; IPI e ICMS nas operações com produtos industrializados e tantos outros. Por fim, temos a monofasia que nada tem a ver com cumulatividade ou nãocumulatividade. Em primeiro lugar vamos distinguir monofasia da substituição tributária para a frente plena, cuja aplicação somente é possível nos casos de tributos plurifásicos submetidos à não-cumulatividade. Na substituição tributária para a frente plena haverá, como ocorre com a monofasia e daí a possibilidade de serem confundidas, um único recolhimento. É o caso da refinaria substituir a distribuidora e o posto de gasolina no ICMS, nas operações com combustível. O recolhimento é único na base, na refinaria, mas o cálculo deste imposto levou em consideração a ocorrência de todas as operações. A refinaria recolhe na condição de contribuinte pela primeira operação, da sua venda para a distribuidora e depois recolhe na condição de substituta sobre as outras operações. Na monofasia, ao contrário, tributa-se apenas uma operação; monofasia significa incidência única. A tributação monofásica é antagônica à plurifasia e por via de conseqüência à substituição 2
tributária progressiva. É também diferente de cumulatividade. Contudo, somente existe monofasia se o legislador escolher um determinado agente econômico e somente tributá-lo na alíquota normal. A escolha de uma alíquota maior que proteja algumas operações futuras com incidência única é substituição tributária disfarçada e perversa, eis que sem direito à restituição na hipótese de uma das operações futuras não se realizar. Muito bem. Até agora estamos falando apenas no conceito de não-cumulatividade, cumulatividade e monofasia aplicados a impostos plurifásicos, sobre o consumo, especificamente ICMS e IPI. Agora, vem a Emenda nº 42/2003, que acrescenta o 12, ao art. 195, dispondo que: a lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, b; e IV do caput, serão não cumulativas quais sejam, as contribuições sobre a receita ou o faturamento e do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar. De plano pode-se afirmar que o perfil constitucional das contribuições sobre receitas dispensam a não-cumulatividade, ou seja, o fato gerador auferir receita não caracteriza as contribuições como tributos indiretos, plurifásicos e sobre o consumo, que atrairia obrigatoriamente a nãocumulatividade. Ora, não existem receitas monofásicas, plurifásicas, cumulativas, não cumulativas; existem receitas brutas e receitas líquidas, receitas contabilizadas pelo regime de caixa ou de competência, receitas auferidas ou não auferidas. A prova de que a não-cumulatividade não integra o perfil constitucional da contribuição sobre a receita nos é dada pela própria Constituição ao prever a manutenção do regime cumulativo convivendo com o regime não cumulativo. Além disso, há o fato de que, por mais incrível que possa parecer, grande parte dos contribuintes têm lutado para continuar no regime cumulativo do PIS e da Cofins. Quantos de nós não ajuizamos mandados de segurança para garantir que nossos clientes continuem no regime cumulativo, afastando as absurdas regras da Instrução Normativa nº 468/2004 que a pretexto de regular o art. 10 da Lei nº 10.833/2003 penetrou na seara do Direito Civil e Administrativo, ferindo o princípio da legalidade. O que, fazendo um ligeiro parênteses, demonstra que o governo não atendeu a reivindicação das classes produtivas ao implantar a nãocumulatividade para o PIS e a Cofins com aumento de alíquotas. O que importa para o contribuinte é o peso da carga tributária e não se o regime de apuração do tributo é este ou aquele. Outra coisa sobre a qual imagino que haja consenso é que o método da não-cumulatividade para o PIS e a Cofins difere-se totalmente da técnica usada no IPI e no ICMS. Enquanto no IPI e no ICMS tomam-se créditos de operações anteriores para compensação com os débitos das operações futuras, pagando-se somente a diferença apurada, no PIS e na Cofins apura-se a totalidade da receita; exclui-se desta receita apurada aquelas permitidas em lei e sobre o resultado, que é a base de cálculo, aplica-se a alíquota. Do valor do 3
tributo apurado poderão ser descontados créditos calculados a partir da aplicação da mesma alíquota que incidiu sobre a receita, incidindo agora sobre despesas elencadas na lei; ou seja, em uma linguagem mais apropriada, para os tributos diretos a nova sistemática permite que se abata da receita bruta algumas despesas: a grosso modo é esta a não-cumulatividade do PIS e da Cofins. Muito melhor seria então que se enfrentasse o conceito de receita auferida, a questão da contabilização pelo regime-caixa e não pelo de competência, a exclusão da inadimplência da base de cálculo, enfim, que se trabalhasse na depuração jurídica do conceito de receita, tornando-o harmônico com a capacidade contributiva dos empresários / contribuintes. Bem, e o que é a monofasia para o PIS e a Cofins? Se não existem receitas plurifásicas, como dizer que o PIS e a Cofins são plurifásicos? Todo PIS e Cofins são monofásicos juridicamente falando porque incidem uma única vez sobre a receita de cada empresa apurada autonomamente. No entanto, o que se chama monofasia significa uma incidência única sobre a receita de um negócio, atividade ou operação que ocorre em cadeia, ou em ciclo. Assim, por exemplo, se nas operações com combustível, que se iniciam na refinaria e vão até a bomba do posto, apenas a receita auferida pela refinaria sofre a incidência do PIS e da Cofins e a receita da distribuidora e dos postos sobre estas mesmas operações não são tributadas, por alguma técnica de desoneração (a mais comum é da alíquota zero), diz-se que o PIS e a Cofins nas operações de combustível são monofásicos, eis que concentrados na base, no caso a refinaria. Ora, desonerar as receitas das distribuidoras e dos postos em troca de uma tributação mais elevada na refinaria pode significar concentração ou monofasia apenas no sentido econômico e não jurídico. Mais uma vez se faz confusão entre o fato gerador auferir receita, com as operações ou negócios que lhe dão origem. Em relação ao fato gerador do PIS e da Cofins, podemos afirmar que as receitas auferidas pelas empresas decorrem de operações ou negócios jurídicos por elas, empresas, realizadas. Porém, receita é realidade distinta de negócio jurídico. As operações e os negócios podem se dar numa cadeia sucessiva ou se desdobrarem em várias etapas; a receita não, a receita é uma realidade autônoma do negócio do qual decorreu. Então, o efeito cumulativo ou em cascata do PIS e da Cofins era meramente econômico, jamais jurídico, porque não há que se falar em ciclos de faturamento ou receita, cadeia de faturamento ou receita, ou circulação de receita. A receita bruta de cada empresa é dela e somente dela. A distinção entre repercussão econômica e jurídica é fundamental para a aplicação correta do art. 166 do CTN. Ora, a partir da EC nº 42/2003, o PIS e a Cofins passaram a se submeter à regra do art. 166 do CTN, que diz que a restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a 4
recebê-la? Entendo que não. É que a capacidade contributiva que é alvo das contribuições é a daqueles que auferem receita e não dos consumidores. Não há que se falar em contribuinte de direito e de fato nas contribuições incidentes sobre a receita que se caracterizam, por isto mesmo. A primeira turma do STJ, em decisão relatada pelo Min. José Delgado, assim se pronunciou (AgREsp 436.894/PR): Tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro são somente aqueles em relação aos quais a própria lei estabeleça dita transferência. Somente em casos assim aplica-se a regra do art. 166 do CTN, pois a natureza, a que se reporta tal dispositivo legal, só pode ser a jurídica, que é determinada pela lei correspondente e não por meras circunstâncias econômicas que podem estar, ou não, presentes, sem que se disponha de um critério seguro para saber quando se deu, e quando não se deu, a aludida transferência. Na verdade, o art. 166 do CTN, contém referência bem clara ao fato de que deve haver pelo intérprete sempre, em caso de repetição de indébito, identificação se o tributo, por sua natureza, comporta a transferência do respectivo encargo financeiro para terceiro ou não, quando a lei, expressamente, não determina que o pagamento da exação é feito por terceiro, como é o caso do ICMS e do IPI. (STJ, AgREsp 436.894/PR, Primeira Turma, DJU de 17/02/2003) De há muito que aprendemos a mesma lição com Sacha Calmon: Quando o CTN se refere a tributos que, pela sua própria natureza, comportam a transferência do respectivo encargo financeiro, está se referindo a tributos que, pela sua constituição jurídica, são feitos para obrigatoriamente repercutir, casos do IPI e do ICMS, entre nós, idealizados para serem transferidos ao consumidor final. A natureza a que se refere o artigo é jurídica. Mas nos tributos que não são juridicamente construídos para repercutir, por isso que inexistem mecanismos comprovadores da inclusão do tributo nos documentos legais, é impossível comprovar o repasse, a chamada prova diabólica. Aqui, a repercussão é econômica, plausível, possível, mas juridicamente incomprovável. O erro está em afirmar que uns tributos comportam, e outros não, a possibilidade de transferência. Todos comportam!... O certo é distinguir repercussão econômica e repercussão jurídica. Tributos que repercutem economicamente mas não são, pela sua natureza, construídos juridicamente para repercutir, estão livres da exigência do art. 166 do CTN. (Apud Leandro Paulsen, Direito tributário, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 1.170) O STJ já afirmou que nos casos de Finsocial, Cofins, Imposto de Renda, contribuições previdenciárias e até nos casos de ISS, não há que se falar em art. 166 do CTN, em face da ausência de transferência do ônus ao consumidor. Confira-se, por exemplo, os seguintes precedentes: REsp 387.788/BA 1, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 11/06/2002; REsp 237.477/PA 2, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 31-E, 14/02/2000, p. 22. Não será a Emenda Constitucional nº 1 Processo Civil e Tributário Compensação Substituição Tributária Finsocial/Cofins. 1. Incide o Finsocial sobre o faturamento da empresa. Conseqüentemente, não há de se falar em substituição tributária, visto que inexiste, na espécie, as figuras do contribuinte de fato e de direito. 2. Com expressa previsão legal, pode haver a não-integração a fim de evitar o efeito cascata, como acontece com o ICMS. 3. Recurso especial improvido. (STJ, REsp 387.788/BA, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJU de 02/09/2002) 2 Tributário INSS Contribuição Previdenciária sobre pro Labore Pago a Autônomos e Adminiastradores Repetição de Indébito Prova Negativa de Repercussão Lei nº 8.212/91, art. 89, 1º. A contribuição Previdenciária sobre remuneração paga a autônomos não é daqueles tributos que, por sua natureza jurídica, transfere-se a contribuinte de fato. Pode, entretanto, o INSS, comprovando que houve repercussão, recusar a repetição ou impugnar a compensação de valores pagos a título de tal contribuição. (STJ, REsp 237.477/PA. Primeira Turma. Rel. Min. José Delgado, DJU de 14/02/2000) 5
42/2003, bem como a legislação infraconstitucional (Lei nº 10.637/2002 e Lei nº 10.822/2003) que implementou a não-cumulatividade para o PIS e a Cofins, que irá mudar esta realidade. Por tudo que foi dito até agora, não consigo dar roupagem ou conteúdo de princípio constitucional a esta não-cumulatividade aplicada ao PIS e à Cofins. Enquanto no ICMS e no IPI a não-cumulatividade faz parte do perfil constitucional destes impostos por serem indiretos, incidirem sobre o consumo e serem por natureza plurifásicos, no PIS e na Cofins a não-cumulatividade nada mais representa do que uma tentativa mal-sucedida de melhor racionalizar a incidência destas contribuições, cuja conseqüência primeira, e isto é fato inegável, foi o aumento significativo da arrecadação. Não tenho dúvida de que as empresas têm saudade do antigo Finsocial cumulativo na alíquota de 0,25% que onerava pouco a carga e não exigia nenhum esforço para calcular o montante do tributo devido. É lamentável que um conceito como o da nãocumulatividade que foi construído a duras penas no decorrer de décadas pela doutrina e jurisprudência passe as ter, como se pretende agora, vários significados e efeitos distintos variando conforme o tributo. O risco de se esvaziar o conteúdo da não-cumulatividade é enorme, uma vez que quando algo pode significar muitas coisas, nada significa! A tributação deve ser razoável, proporcional, atender a capacidade contributiva, ser justa. Para o PIS e a Cofins nenhum destes princípios e valores constitucionais se realizam por esta malsinada nãocumulatividade. 6