Linguagem e cognição na interpretação de metáforas



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Transcrição:

Linguagem e cognição na interpretação de Heronides Maurílio de Melo Moura * Neste artigo, argumenta-se que a interpretação de certas conceptuais depende do conhecimento lexical associado às palavras usadas para codificar a metáfora conceptual. Para atingir esse objetivo, será utilizada a representação semântica proposta pelo Léxico Gerativo. Serão analisadas as diferentes interpretações possíveis da metáfora da personificação, em função do tipo semântico da palavra que entra na configuração da metáfora. Resumo Palavras-chave: metáfora; léxico; léxico gerativo Uma característica da metáfora que impõe muitas dificuldades para a análise teórica é a sua indeterminação; uma mesma metáfora pode receber * Universidade Federal de Santa Catarina

Veredas, revista de estudos lingüísticos Juiz de Fora, v. 6, n. 1 p. 153 a 161 diferentes interpretações num mesmo contexto. Considere por exemplo as duas abaixo: (1) Julieta é o sol. (2) Paulo é um trator. A primeira aparece em Romeu e Julieta, de Shakespeare, a segunda pode ser usada para descrever um colega de trabalho. Mesmo tendo sido dado o contexto de uso, essas ainda podem ser interpretadas de diferentes formas, incompatíveis ou não entre si. Por exemplo, Julieta pode ser a razão da vida de Romeu, ou a pessoa que a ilumina espiritualmente; no caso da segunda metáfora, pode tratar-se de um elogio a Paulo (trator seria nesse caso um profissional que enfrenta sem temor as adversidades) ou então de uma crítica a ele (aqui, trator seria alguém que passa por cima das pessoas). No caso do uso figurado de trator, aliás, há em curso um processo de cristalização dessa metáfora, mas essa cristalização ainda está indefinida entre os dois sentidos citados, incompatíveis entre si. A teoria da metáfora conceptual (cf. Lakoff e Johnson, 1980) tenta sistematizar e explicitar a forma de funcionamento das. Nessa explicitação, essa teoria leva em conta apenas parte da operação semântica que está em jogo. No caso, o que é enfatizado é a reinterpretação de um domínio conceptual por outro domínio conceptual (como no caso da metáfora que interpreta a discussão como guerra). Essa teoria certamente captura um elemento essencial da metáfora, no entanto fatores mais específicos são necessários para a decodificação de uma metáfora em situação real de uso. A indeterminação da metáfora exige um trabalho de interpretação mais fino por parte dos falantes, e isso não pode ser desconsiderado na análise teórica. A meu ver, é natural que os cognitivistas ofereçam da metáfora um retrato eficaz, mas que não dá atenção aos contornos e às nuances. Eles estão de fato preocupados com os fatores cognitivos mais gerais que fundamentam o uso da língua, e não com as especificidades das construções lingüísticas. Vou dar um exemplo de metonímia, antes de retornar à metáfora: (3) O sanduíche de presunto saiu sem pagar. (4) O Picasso saiu pela porta dos fundos. 154 Em (3), o sanduíche de presunto representa, num contexto de uso específico (por exemplo, uma lanchonete), o comprador desse lanche. Em (4), o Picasso representa o quadro pintado por esse artista. Cognitivamente, esses dois usos são equivalentes; no primeiro caso, tem-se como cognitivamente saliente a relação produto-comprador; no segundo caso, tem-se como cognitivamente saliente a relação produto-produtor. A questão é: por que em (3) os falantes acessam a relação produtocomprador e em (4) não? Por que a expressão o Picasso não se refere, na maior parte dos contextos, ao comprador do quadro? Seria possível encontrar um contexto no qual o Picasso representasse o comprador do produto (um contexto de leilão de obras de arte, por exemplo). No entanto, tal contexto

seria muito marcado em relação à situação mais corriqueira em que a expressão o Picasso, para referir ao quadro, evoca o produtor do quadro. De acordo com a teoria das zonas ativas (Langacker, 1991), o processo cognitivo subjacente a (3) e (4) é o mesmo. Em ambos os casos, ativa-se uma faceta das entidades referidas, ou seja, o foco perceptual recai sobre uma certa parte da entidade referida. No caso de (3), o foco recai sobre a relação produto-comprador; no caso de (4), o foco recai sobre a relação produto-produtor. Mas como explicar a escolha de um foco num caso, e de outro foco em outro? Parece haver um fator não considerado nessa análise: certas relações metonímicas são codificadas na língua, ao passo que outras não. A relação produto-produtor é codificada na língua portuguesa, o que produz metonímias como a de (4), mas também outras, como: Honda, gilete, bandaid, xerox, um Portinari, etc. Trata-se de um caso de polissemia sistemática (Nunberg, 1995; Pustejovsky, 1995). Já a relação produto-comprador não é codificada na língua, só sendo relevante em contextos muito específicos, como o de (3). Portanto, os falantes escolhem a relação produto-produtor em (4) porque essa relação é codificada na língua. Em suma, a semântica cognitiva, ao enfatizar processos cognitivos subjacentes, às vezes não leva em conta fatores estritamente lingüísticos. No caso da metáfora, a indeterminação semântica faz com que o falante seja obrigado a um trabalho de reconstrução lingüística que o conduza a uma interpretação mais específica da metáfora em jogo. O material com que o falante trabalha para chegar a uma interpretação mais específica é toda a estrutura semântica de sua língua, com suas categorias, tipos semânticos e papéis temáticos (ou papéis qualia, na teoria de Pustejovsky). Só nesse trabalho com a língua se completa aquilo que a estrutura cognitiva apenas esboça. Desde Lakoff & Johnson (1980), faz-se a distinção entre metáfora conceptual e metáfora lingüística. A metáfora conceptual organizaria o nosso modo de representação e categorização do mundo, ao passo que a metáfora lingüística corresponderia à materialização, em termos lingüísticos, da estrutura conceptual subjacente. Assim, a metáfora conceptual é logicamente anterior à sua representação lingüística, não sendo, portanto, afetada por fatores estritamente lingüísticos. Isso significa que, nessa perspectiva, a metáfora conceptual seria independente da estrutura do léxico. Gostaria aqui de me contrapor a essa tradição, e argumentar que a interpretação de certas conceptuais depende do conhecimento lingüístico, em especial a estrutura do léxico. Em outras palavras, a metáfora exige dos falantes um trabalho de reconstrução lingüística que não se reduz à operação conceptual subjacente. O conceito de metáfora conceptual se insere numa tradição cognitivista que assume que o léxico não possui uma estrutura interna, e que relações semânticas tais como hiperonímia, acarretamento, sinonímia e antonímia só adquirem sentido quando relacionadas a esquemas conceptuais. Murphy (2000), por exemplo, argumenta que a sinonímia e a antonímia não correspondem a conhecimento lexical. Tais relações semânticas não equivalem, nessa perspectiva, a conhecimento de palavras, mas a conhecimento sobre palavras. Linguagem e cognição na interpretação de Heronides Maurílio de Melo Moura 155

Veredas, revista de estudos lingüísticos Juiz de Fora, v. 6, n. 1 p. 153 a 161 156 De um modo geral, na tradição cognitivista, o léxico é visto como assistemático, sendo formado por uma lista de itens, sem estrutura interna. Esse mesmo caráter assistemático do léxico seria percebido no uso figurativo da linguagem. As regularidades que aí possam ser encontradas derivariam de esquemas conceptuais subjacentes, e não de restrições lingüísticas. Por outro lado, diferentes teorias semânticas têm sido formuladas para dar conta de regularidades lexicais, e também para explicitar o polimorfismo do léxico, que permite a variação de sentidos lexicais em contexto. A idéia é que essa variação de sentidos não é aleatória, mas dependente de fatores lingüísticos. Uma das teorias lexicais mais consistentes é do léxico gerativo (Pustejovsky, 1995). Essa teoria postula uma representação lexical bastante rica, como veremos a seguir, cujo polimorfismo explicaria diversos casos de extensão de sentido. Teorias lexicais que propõem uma estrutura interna para o léxico são aparentemente incompatíveis com a tradição cognitivista, que busca regularidades não na língua, mas na estrutura conceptual subjacente ao seu uso. No entanto, pretendo argumentar aqui que a interpretação de certas conceptuais depende do conhecimento lexical associado às palavras usadas para codificar a metáfora conceptual. Para atingir esse objetivo, utilizarei a representação semântica proposta pelo léxico gerativo. De um modo geral, o léxico gerativo tem sido usado para explicitar o funcionamento da chamada polissemia regular ou polissemia lógica, mas entendo que essa teoria pode também ser útil para explicar como entendemos certas. Analisarei aqui um caso específico de metáfora conceptual, a metáfora da personificação, nas quais objetos são concebidos como pessoas (cf. Lakoff & Johnson, 1980). A minha idéia é que a estrutura lexical restringe os modos pelos quais entendemos esse tipo de metáfora. Em outros termos, a minha proposta é que a interpretação da metáfora, em muitos casos, depende também de restrições lingüísticas, e não apenas da metáfora conceptual subjacente. Assim, diferentes relações lexicais podem gerar diferentes interpretações da mesma metáfora conceptual. No caso específico analisado aqui, pretendo mostrar que há diferentes interpretações da metáfora da personificação, dependendo do tipo de palavra que entra na configuração da metáfora. Identifico três tipos de palavras que podem entrar na composição dessa metáfora: instituições (objetos abstratos), eventos e artefatos. Note que estou analisando aqui personificações do mundo real (do tipo o mercado está nervoso ) e não personificações de mundos ficcionais, como as fábulas ou mitos. Nesse último caso, coisas são pessoas. Na personificação do mundo real, as coisas são interpretadas como pessoas. O léxico gerativo é uma teoria semântica que postula uma estrutura lexical autônoma, com uma representação lexical enriquecida com relações semânticas tais como agentividade, telicidade (função) e meronímia (parte de). Tradicionalmente, essas relações são consideradas como fazendo parte do conhecimento enciclopédico (cf. Fodor & Lepore (1998), para uma discussão crítica). No entanto, a sistematização dessas relações (entre outras) possibilita à teoria semântica a descrição do uso criativo das palavras, como

no caso da polissemia lógica, da metonímia e mesmo da metáfora, como é defendido aqui (cf. também Moravcsik, 1998). No léxico gerativo, a produção de sentido em contexto é atribuída ao polimorfismo da representação lexical (cf. Moura, 2001). A polissemia lógica, por exemplo, é preditível a partir da representação lexical. A produtividade da interpretação lexical em contexto seria de base semântica. Pode-se dizer, assim, que o léxico gerativo pressupõe uma visão não-enciclopédica da semântica, ao passo que a tradição cognitiva pressupõe uma visão enciclopédica da semântica (cf. Croft, 2000:235). Nessa visão enciclopédica, a estrutura do sentido lexical não seria autônoma em relação ao nosso conhecimento de mundo (cf. Sweetser, 1990:16). É importante observar que relações semânticas supostamente enciclopédicas, como agentividade e telicidade, são tratadas no léxico gerativo como sistemáticas, logo não-enciclopédicas, sendo esse um dos aspectos mais importantes dessa teoria. Obviamente, não há tempo aqui para apresentar o modelo do léxico gerativo. No entanto, gostaria de ilustrar o tipo de análise feita por essa teoria considerando em algum detalhe o caso de polissemia lógica com tipos compostos. Pustejovsky (1995:61) propõe quatro níveis de representação para o léxico: Linguagem e cognição na interpretação de Heronides Maurílio de Melo Moura (1) Estrutura argumental (2) Estrutura de evento (3) Estrutura de qualia (4) Estrutura de herança lexical Para nosso objetivo aqui, basta considerar os níveis argumental e de papéis qualia. A estrutura argumental abrange a especificação do número e do tipo de argumentos lógicos, e a forma como eles são realizados sintaticamente (Pustejovsky, 1995:61). Há quatro tipos de argumentos, que constituem a estrutura qualia do item lexical: (1) Constitutivo; (2) Formal; (3) Télico; (4) Agentivo. Estes argumentos devem ser representados na estrutura semântica do item lexical. Por exemplo, o substantivo livro é um caso de polissemia lógica, com dois sentidos: (a) objeto físico, com capa, folhas, etc; (b) objeto abstrato (informação). Para Pustejovsky, esta polissemia está codificada na estrutura do item lexical. Em outros termos, alguma regularidade na estrutura lexical gera a polissemia lógica, e essa regularidade é comum a uma classe de itens lexicais, não se reduzindo a uma propriedade idiossincrática. No caso específico do substantivo livro, tal regularidade consiste na presença de um argumento de tipo complexo na estrutura lexical dessa palavra. O papel qualia FORMAL identifica o objeto no âmbito de um domínio mais amplo (hiperonímia). Uma das estruturas associadas ao papel FORMAL é o tipo complexo, pelo qual o papel FORMAL define uma relação lógica entre argumentos de diferentes tipos. Em outras palavras, no caso de um substantivo que denota um tipo complexo, o papel FORMAL define como os argumentos simples são relacionados para formar o argumento complexo. Se um substantivo é um tipo complexo, sua representação semântica deve conter não apenas a 157

Veredas, revista de estudos lingüísticos Juiz de Fora, v. 6, n. 1 p. 153 a 161 relação entre os argumentos x e y, mas um novo argumento, chamado argumento complexo (x.y). Esse argumento complexo é formado pela combinação de argumentos simples. A estrutura lexical para livro como um argumento complexo é a seguinte (Pustejovsky, 2000:83): Livro Argst= ARG 1 = y : informação ARG 2 =x : objeto físico Qualia= FORMAL= conter (x,y) TÉLICO= ler (w, x.y) AGENTIVO= escrever (v, x.y) A representação acima mostra que os dois sentidos de livro (objeto físico e informação) correspondem a dois diferentes argumentos projetados pela estrutura argumental. Por outro lado, na estrutura qualia, o papel FORMAL define como se dá a relação entre esses dois argumentos (no caso, pela relação x contém y, na qual x é o objeto físico e y a informação). Esta relação estabelecida por conter é comum a uma classe de itens lexicais, como vídeo, jornal, televisão, revista, etc. Assim, a polissemia desses itens não é idiossincrática nem depende de fatores extra-lingüísticos, mas é logicamente preditível a partir de sua representação semântica. Note-se também que o uso de verbos como ler requer, como complemento, argumentos complexos. A atividade de leitura requer um argumento que seja simultaneamente informação e objeto físico. Na representação acima, o papel TÉLICO projeta esse argumento complexo, na estrutura w LER x.y. O verbo ler coage o seu complemento a funcionar como argumento complexo (no caso, simultaneamente concreto e abstrato). Isso explica, aliás, a interpretação de como: (5) Pedro sabe ler o rosto das pessoas. Passemos agora a analisar as diferentes interpretações possíveis da metáfora da personificação, em função do tipo de palavra que entra na configuração da metáfora. Considere em primeiro lugar o sintagma abaixo: (6) Gol nervoso 158 Como interpretamos a aplicação de uma propriedade psicológica (nervoso) a um evento (gol) que é parte de um jogo? Uma primeira constatação é que não interpretamos o sintagma em (6) como uma indicação de que o evento em causa se comporta como uma pessoa. Uma interpretação mais corriqueira desse sintagma é que o gol foi feito de modo nervoso pelos jogadores. Gostaria de argumentar que essa interpretação depende do tipo

de palavra que ocorre no sintagma, no caso o substantivo gol. A representação lexical do substantivo gol contém o papel AGENTIVO (um jogador marca um gol). Há, assim, disponível na estrutura semântica do substantivo gol um argumento de tipo humano (um jogador), que é o agente produtor do evento. O adjetivo nervoso se aplica a esse argumento de tipo humano (jogador) contido na representação semântica de gol. Em outras palavras, a personificação do evento gol é possível porque há um argumento de tipo humano embutido na representação semântica desse evento. O mecanismo semântico que torna isso possível é o da ligação seletiva (Pustejovsky, 1995:127-131). A ligação seletiva é uma regra semântica que trata o adjetivo como um operador que se aplica a um papel quale específico do substantivo ao qual se liga. A interpretação desse tipo de personificação de eventos é a seguinte: a personificação se refere ao modo como o evento foi produzido, ou seja, sob que circunstâncias humanas ele se deu. Outros exemplos são palestra emocionada, encontro angustiado, conferência nervosa, etc. Essa interpretação depende da estrutura semântica dos substantivos em jogo. Um caso similar a este, mas que envolve não um evento, mas um artefato, é o exemplo (7) abaixo: Linguagem e cognição na interpretação de Heronides Maurílio de Melo Moura (7) açúcar ético e orgânico. Neste exemplo, interpretamos açúcar ético não como uma afirmação sobre o comportamento do açúcar, mas como uma afirmação sobre o modo como ele foi produzido. Como o açúcar não é uma classe natural, e sim um artefato, ele foi produzido por seres humanos segundo certas condições materiais e econômicas. Trata-se de um objeto, é claro, mas a expressão açúcar ético reporta-se ao evento da produção do objeto, que envolve seres humanos. O léxico gerativo oferece uma explicação para esse uso, pois nessa teoria todo artefato possui uma origem, um agente que o produziu num determinado evento. O adjetivo ético qualifica o evento pelo qual alguém produz açúcar; não qualifica o próprio açúcar. Uma questão importante aqui seria determinar se temos de fato metáfora aqui. Vamos analisar agora um outro tipo de personificação: aquela que envolve atribuição de propriedades humanas a instituições. (8) Mercado estressado (9) Mercado nervoso Nestes casos, os falantes interpretam um domínio conceptual (instituições sociais) em termos de outro domínio conceptual (pessoas). Nestes usos, instituições como o mercado se comportam como as pessoas e vivem experiências psicológicas típicas de seres humanos. Isso, aliás, faz com que o mercado adquira um poder misterioso, como um ente vivo dotado de vontades próprias. No entanto, no plano semântico, não há mistério algum: de fato, há uma relação semântica sistemática entre instituições sociais e as pessoas que as compõem. Trata-se de uma relação de meronímia (parte-todo): instituições são formadas por pessoas. Para mim, essa relação meronímica define a 159

Veredas, revista de estudos lingüísticos Juiz de Fora, v. 6, n. 1 p. 153 a 161 interpretação de expressões como (8) e (9) acima. O léxico afeta a interpretação dessas, na medida em que os falantes somente se referem ao mercado como uma entidade viva porque pessoas formam as instituições. Na representação lexical de instituições sociais, há um argumento de tipo humano, e é esse argumento que permite a predicação de propriedades psicológicas às instituições. Disso deriva, aliás, a polissemia lógica de substantivos como governo, nação, universidade, mídia, etc, que podem tanto se referir às instituições, quanto às pessoas que as constituem. Podemos dizer, assim, que uma nação sofre, que um governo é arrogante, etc. Atribuímos vida interior às instituições. Isso, no entanto, não é possível em um terceiro caso de personificação. Considere os exemplos abaixo: (10) porta estressada (11) carro temperamental (12) disquete autista 160 Nessas expressões, não atribuímos vida interior aos artefatos porta, carro e disquete. Eles continuam a ser vistos como coisas inanimadas. No entanto, usamos propriedades psicológicas para falar desses objetos, mais precisamente, para falar do modo como esses artefatos realizam as funções para as quais foram produzidos. O que está em jogo aqui é o quale télico, que está presente na representação semântica dos artefatos: um instrumento é feito por alguém para cumprir uma certa função. Podemos qualificar metaforicamente como humano não o artefato em si, mas o modo como ele cumpre sua função. Um carro temperamental é um carro que só funciona de vez em quando, um disquete autista é um disquete que não se consegue abrir. Compare esses usos com o açúcar ético, em que também temos um artefato. No caso de açúcar ético, o adjetivo de característica humana incide sobre a origem, o agente do artefato; no caso de carro temperamental, o adjetivo de característica humana incide sobre a função do artefato. Nenhum desses usos incide sobre o objeto em si: como poderia um carro ter emoções humanas? Desse modo, o léxico restringe as possibilidades de interpretação de conceptuais. Não é o léxico que produz as, mas a língua, organizada no léxico, tem um papel importante na interpretação das. É a língua que organiza o quadro pelo qual damos sentido às. Como as são indeterminadas, o trabalho de interpretação dos falantes é também uma operação de reconstrução lingüística. A meu ver, isso mostra que somente uma articulação das operações lingüísticas e conceptuais em jogo pode explicar como os falantes, em situações concretas de uso, tentam delimitar um sentido para as a que são expostos. No entanto, essa articulação não parece ser relevante na abordagem cognitivista. Fauconnier & Turner (2003:353-355), por exemplo, argumentam, na sua obra mais recente, que a estrutura lingüística é bastante genérica e pode gerar uma infinidade de sentidos, que surgem em função de operações conceptuais. Um SN, por exemplo, formado pela combinação de um substantivo e um adjetivo, é indefinido quanto ao sentido que pode surgir em função de uma integração conceptual não-compositional, que seria imprevisível no plano

puramente linguístico. Isso equivale a dizer que o léxico pouco contribui para a definição do sentido resultante, que não seria fruto da combinação do conteúdo das partes (no caso, as palavras), mas de operações cognitivas mais gerais, como o blending. O léxico, nessa perspectiva, é de certa forma esvaziado e toda a carga semântica recai sobre a operação cognitiva. Mas esvaziar a língua de sua estrutura significativa talvez prejudique a própria compreensão dos fenômenos cognitivos. A articulação entre estrutura lingüística e estrutura cognitiva continua na ordem do dia, como o caso paradigmático da metáfora parece demonstrar. Linguagem e cognição na interpretação de Heronides Maurílio de Melo Moura Referências bibliográficas CROFT, W. The role of domains in the interpretation of metaphors and metonymies. In: PEETERS, B.(Ed.) The lexicon-encyclopedia interface. Amsterdam: Elsevier, 2000. FAUCONNIER, G. & TURNER, M. The way we think. Conceptual blending and the mind s hidden complexities. New York: Basic books, 2003. FODOR, J. & LEPORE, E. The Emptiness of the Lexicon: Reflections on James Pustejovsky s The Generative Lexicon. Linguistic Inquiry, 29 (2), 1998. LAKOFF, G. & JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: Chicago University Press, 1980. Tradução brasileira: Metáforas da vida cotidiana. São Paulo: EDUC, 2002. LANGACKER, R. Concept, image and symbol: the cognitive basis of grammar. Berlin: Mouton de Gruyter, 1991. MORAVCSIK, J. Meaning, creativity and the partial inscrutability of the human mind. Stanford: CSLI Publications, 1998. MOURA, H. Dénotation et argumentation dans le discours. Langages, 142, 77-91, 2001. MURPHY, M. Knowledge of words versus knowledge about words: the conceptual basis of lexical relations. In PEETERS, B. (Ed.) The lexicon-encyclopedia interface. Amsterdam: Elsevier, 2000. NUNBERG, G. Transfers of meaning. Journal of semantics, 17, 109-132, 1995. PEETERS, B. (Ed.) The lexicon-encyclopedia interface. Amsterdam: Elsevier, 2000. PUSTEJOVSKY, J. The Generative lexicon. Cambridge: MIT Press, 1995.. Lexical shadowing and argument closure. In: RAVIN, Y. & LEACOCK, C. Polysemy. Theoretical and computational approaches. Oxford: Oxford Press, 2000. SWEETSER, E. From etymology to pragmatics. Metaphorical and cultural aspects of semantic structure. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. ZANOTTO, M. & MOURA, H. Semantic indeterminacy and the negotiation of meaning. In: VERSCHUEREN, J. (Ed.) The Handbook of Pragmatics. Supplement 2000. Amsterdam: John Benjamins, 2002. 161