EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO HUMANO



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EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO HUMANO OLIVEIRA, Valdiléia Xavier de (UEM) SFORNI, Marta Sueli de Faria (Orientadora/UEM) A Teoria Histórico-Cultural considera que por meio do trabalho e do uso de instrumentos, o homem passou a agir sobre a natureza para atender às suas necessidades, transformando suas ações em novas formas de comportamentos culturais. Nesse processo, desenvolveram-se as funções psicológicas superiores, especificamente humanas, que definiram a passagem da história natural dos animais à história social dos homens. A compreensão de que o trabalho, o uso de instrumentos e a linguagem foram condições para a humanização do homem ao longo da história, nos fornece subsídios para entender esse mesmo processo no desenvolvimento dos sujeitos. Nesse sentido, a escola, como local que permite o acesso à cultura e aos conhecimentos historicamente produzidos, assume papel fundamental para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Mas de que forma a educação escolar pode ser organizada de modo que consiga promover o desenvolvimento de tais funções? As origens do psiquismo humano Segundo Leontiev (1978), até constituir-se como um ser social, o homem precisou percorrer um lento processo de formação biológica, passando por vários estágios no decorrer da história da sociedade humana. Segundo o autor, o primeiro desses estágios teve início no fim do período terciário e início do quaternário e foi o que preparou a passagem ao homem. Os australopitecos, animais representantes desse estágio, apresentavam comunicação primitiva, já conseguiam realizar atividades manuais complexas, fato que permitia a utilização de instrumentos rudimentares. 1

O segundo estágio teve início com o aparecimento do pitecantropo (protoantropiano) e se encerrou com o surgimento do homem de Neanderthal (paleantropiano). Nesse estágio, apesar de ainda submetido às leis biológicas, o desenvolvimento humano foi marcado por significativas alterações, como a produção de instrumentos e a prática de atividades coletivas, indicando o início de formas rudimentares de trabalho e sociedade. Aos poucos o homem tornou-se sujeito do processo social de trabalho sob a ação de duas diferentes leis: as leis biológicas, responsáveis pelas alterações anatômicas, que permitiram sua adaptação às necessidades de produção; as leis sóciohistóricas, que conduziram o desenvolvimento da produção. Segundo Leontiev (1978), a formação do homem passou por mais um estágio, o Homo sapiens. Nesse estágio o desenvolvimento do homem ficou livre de sua dependência inicial relacionada a alterações biológicas (transmitidas por hereditariedade) e começou a ser conduzido por leis sócio-históricas. O autor afirma que somente ao completar o processo de evolução biológica e constituir-se a espécie Homo sapiens é que teve início o processo de desenvolvimento histórico que culminou no surgimento do ser social. O papel do trabalho no desenvolvimento humano Para compreender a explicação de Leontiev (1978) sobre a relação trabalhodesenvolvimento humano, é preciso, inicialmente, entender que trabalho na perspectiva assumida por ele não é sinônimo de emprego ou de atividade remunerada. Trata-se de um conceito amplo que diz respeito à atividade do homem sobre a natureza que distingue o ser natural do ser social, pelo fato de ser uma atividade consciente, orientada por uma finalidade previamente estabelecida, e por resultar em um produto social. O trabalho é primeiramente um ato que se passa entre o homem e a natureza. O homem desempenha aí para com a natureza o papel de uma potência natural. As forças de que o seu corpo é dotado, braços e pernas, cabeça e mãos, ele as põe em movimento a fim de assimilar as 2

matérias dando-lhes uma forma útil à sua vida. Ao mesmo tempo em que age por este movimento sobre a natureza exterior e a modifica, ele modifica a sua própria natureza também e desenvolve faculdades que nele estão adormecidas (LEONTIEV, 1978, p. 74). Como essa atividade de modificação da natureza externa, modifica a própria natureza humana? Leontiev (1978) destaca dois elementos determinantes desse fenômeno: o trabalho coletivo e o fabrico e uso de instrumentos. Sobre o trabalho coletivo, afirma que o trabalho, ao ser realizado coletivamente, permite ao homem relacionar-se com a realidade objetiva de forma mediada, por meio de outros homens. Ao ser baseado na cooperação entre os indivíduos e na união de vários membros de um grupo em busca de um mesmo objetivo, no trabalho coletivo está presente a divisão social das funções. Nesse processo os sujeitos vão desenvolvendo a consciência, pois na realização das atividades em grupo é necessário que cada sujeito estabeleça mentalmente a relação entre sua ação e a dos demais, vinculado-as à finalidade geral que os move. A divisão do trabalho faz com que nem todas as atividades desenvolvidas pelo sujeito atendam às necessidades individuais imediatas. O exemplo clássico de Leontiev (1978) sobre o processo de caça primitiva ilustra essa situação. Enquanto um indivíduo afugentava a caça, outro se localizava no lugar oposto, a sua espreita, para agarrá-la; enquanto alguns sujeitos cuidavam do abatimento do animal, outros cuidavam do fogo para o seu preparo e outros se encarregavam da limpeza ou de separar peles e carnes. No final, todos comiam e tinham sua necessidade de alimento saciada, por meio dessa atividade que envolvia diferentes ações e sujeitos. O que possibilitava a ligação entre as diversas ações isoladas, de forma que os sujeitos ficassem confiantes no fim coletivo de suas ações, eram as relações sociais presentes entre eles, refletidas na consciência. Daí a relação estabelecida pela Teoria Histórico-Cultural entre o trabalho coletivo e o aparecimento da consciência. De acordo com Leontiev (1978), a decomposição de uma ação só pode ser realizada se o sujeito que age conseguir refletir psiquicamente sobre a relação existente entre o motivo objetivo da ação e seu objeto, de modo que ela se torne consciente e possa fazer sentido para o sujeito. 3

Sobre o fabrico e uso de instrumentos, Leontiev (1978), destaca que determinados animais podem fazer uso de instrumentos, como, por exemplo, um símio pode usar uma vara para alcançar uma fruta no topo da árvore. Porém, por mais complexa que seja a ação desenvolvida pelo animal, usando o instrumento, jamais terá um caráter social, pois o uso que esse animal faz dos instrumentos não é coletivo e não determina relações de comunicação entre os seres que a efetuam. Isso ocorre porque suas atividades são determinadas e delimitadas somente por suas necessidades biológicas. De acordo com Luria (1991), diferentemente dos animais, além de empregar os instrumentos de trabalho, o homem também os fabrica. Se numa etapa anterior da história da humanidade as lascas de pedra tosca foram os instrumentos de trabalho mais primitivos, em etapas posteriores surgiram instrumentos preparados pelo homem, que permitiram diferentes ações, como esfolar o animal morto, cortar pedaços de madeira ou mesmo acomodar o instrumento na mão. O trabalho realizado na preparação dos instrumentos já não atendia à simples necessidade biológica (de alimentação), mas também ao conhecimento do futuro emprego do instrumento, assim, a ação humana já não é instintiva, mas mediada pela ideia do objeto em relação a sua finalidade. Para o autor, essa atividade de preparação dos instrumentos de trabalho gerou uma mudança na estrutura do comportamento humano, podendo ser denominada de primeira forma de atividade consciente. A fabricação e o uso de instrumentos, assim como o processo de trabalho, passaram a ser desenvolvidos com a consciência de seu fim. De acordo com Leontiev (1978), os instrumentos tornaram-se objetos sociais, que carregam em si o trabalho social, por serem elaborados no decorrer do trabalho coletivo. As relações de trabalho realizadas socialmente estão cristalizadas nos objetos e a relação do homem com o instrumento possibilita o desenvolvimento de novas operações em cada uso, modificando a natureza, os meios e o próprio homem. Por isso, o conhecimento humano mais simples, realizado na [...] ação concreta de trabalho com a ajuda de um instrumento, não se limita à experiência pessoal de um indivíduo, antes se realiza na base da aquisição por ele da experiência e da prática social (LEONTIEV, 1978, p. 83). 4

O papel da linguagem no desenvolvimento humano Luria (1991) reforça a concepção de Leontiev (1978) acerca da relação entre a formação da consciência e o trabalho coletivo, afirmando que o trabalho só se concretiza em condições de atividade coletiva, na qual o homem se relaciona não somente com a natureza, mas também com os demais. Nessa atividade, surge a necessidade de comunicação que, de início, é realizada por meio de gestos, depois, de grunhidos e, aos poucos, a linguagem articulada vai se formando. Conforme Luria (1991), a princípio, os homens utilizavam articulações confusas, empregando expressões e gestos para se comunicar. Nesse momento, a linguagem estava muito mais relacionada aos gestos do que aos sons. [...] seria incorreto pensar que os sons, que assumiram paulatinamente a função de transmitir certa informação, eram palavras capazes de designar com independência os objetos, suas qualidades, ação ou relações. Os sons, que começavam a indicar determinados objetos, ainda não tinham existência autônoma. Estavam entrelaçados na atividade prática, eram acompanhados de gestos e entonações expressivas, razão por que só era possível interpretar o seu significado conhecendo a situação evidente em que eles surgiam (LURIA, 1991, p. 79, grifos do autor). O autor destaca a linguagem como importante fator na transição da história natural dos animais à história social do homem, pelo fato de ela possibilitar ao menos três mudanças fundamentais à sua atividade consciente. A primeira delas consiste em permitir identificar objetos, orientar a atenção para eles e conservá-los na memória. Isso torna possível lidar com as coisas do mundo exterior, mesmo que elas estejam ausentes, basta pronunciar interna ou externamente uma palavra para que a imagem do objeto se faça presente e nos deixe em condição de operar com ele. Luria (1991) esclarece que a linguagem duplica o mundo perceptível, possibilitando armazenar informações advindas do mundo exterior e criar um mundo de imagens interiores. Esse mundo interior de imagens aparece como base na linguagem e pode ser utilizado pelo homem em suas atividades. 5

O segundo papel essencial da linguagem na formação da consciência consiste em assegurar os processos de abstração e generalização. Para Luria (1991, p. 81), as palavras indicam e abstraem suas propriedades, possibilitando relacionar as coisas perceptíveis em dadas categorias, fazendo, pelo homem, o trabalho de análise e classificação dos objetos. Por tudo isso a linguagem pode ser considerada [...] não apenas meio de comunicação, mas também o veículo mais importante do pensamento, que assegura a transição do sensorial ao racional na representação do mundo (grifos do autor). A terceira e mais significativa função da linguagem na formação da consciência humana consiste em ser instrumento de transmissão de informações que permite ao homem assimilar todo o conhecimento e formas de comportamentos produzidos no decorrer da história social da humanidade. Segundo Luria (1991) o aparecimento da linguagem constituiu um grande salto no desenvolvimento das características tipicamente humanas, possibilitando elevar a um novo nível o desenvolvimento dos processos psíquicos. Isto significa que com o surgimento da linguagem surge no homem um tipo inteiramente novo de desenvolvimento psíquico desconhecido dos animais, e que a linguagem é realmente o meio mais importante de desenvolvimento da consciência (LURIA, 1991, p. 81, grifos do autor). Concordando com Luria (1991), Leontiev (1978) afirma que, juntamente com a organização do trabalho e com a aquisição da linguagem, desenvolveram-se as funções psicológicas superiores que diferenciam os homens dos animais, acarretando profundas transformações nos seus órgãos dos sentidos, no cérebro, enfim, nos seus caracteres físicos e psíquicos, fazendo-os adquirir capacidades que antes não existiam: As modificações anatômicas e fisiológicas devidas ao trabalho acarretaram necessariamente uma transformação global do organismo, dada a interdependência natural dos órgãos. Assim, o aparecimento e o desenvolvimento do trabalho modificaram a aparência física do homem bem como a sua organização anatômica e fisiológica (LEONTIEV, 1978, p. 73). 6

A linguagem permite ao homem se relacionar com o mundo para além da relação empírica, perceptível e imediata com os objetos e fenômenos. Ele passa a lidar com os representantes destes, com as palavras que os substituem, ou seja, o homem passa a atuar também no campo do simbólico. A palavra, então, substitui o objeto material, transformando-se em um objeto que representa outro, trata-se, portanto, de um objeto simbólico, um signo. A presença dos signos reorganiza os processos de percepção e atenção, generalizando elementos essenciais dos objetos que são perceptíveis em determinados grupos ou categorias (LURIA, 1991). Para o autor, nos processos de atenção do sujeito, a linguagem possibilita a distinção de um objeto entre os demais; permite-lhe discriminar os objetos, nomeando-os e destacando suas qualidades e finalidades, de modo que sua atenção torna-se dirigível. Por exemplo, quando alguém diz pegue a lança, essa palavra dirige a atenção desta para determinados objetos, ficando fora do seu foco alimentos, vestuários, pessoas e demais objetos. A palavra evoca mentalmente o objeto e a sua atenção é voluntariamente dirigida para ele. Por meio desse exemplo, é possível perceber que também a memória é influenciada pela linguagem, tornando-se uma atividade mnemônica consciente, na qual o homem organiza o material a ser lembrado e acessado. Diante da palavra lança, mesmo que esse objeto não esteja ao alcance da visão ou do tato, o sujeito passa automaticamente a lidar com ele no plano mental. De que forma isso é possível? Por meio do resgate da imagem já formada em momentos anteriores. As experiências anteriores não estão armazenadas ao acaso, elas são etiquetadas com palavras que vão se constituindo no repertório dos sujeitos. A palavra dita em um momento posterior, já separada da experiência imediata, traz para o presente o objeto ausente, recupera seus traços essenciais, eis o processo da memória. Ao permitir designar objetos, dirigir a atenção para eles e mantê-los na memória, a linguagem possibilita ao homem desligar-se da realidade imediata, assegurando o surgimento da imaginação, que serve de base para a criação humana. Dessa forma, no momento em que for produzir uma lança, o sujeito é capaz de no meio de tantos outros 7

objetos selecionar um em sua memória, procurando recordar-se de suas características principais, para que o resultado saia de acordo com o que antes fora imaginado. Educação e desenvolvimento humano Ao explicar a origem social e histórica do desenvolvimento humano, Leontiev (1978) argumenta que isso não significa que a passagem ao homem anulou as interferências das leis biológicas: Se a possibilidade de desenvolvimento de cada membro da espécie não é herdada biologicamente, quais são essas outras forças que movem o seu desenvolvimento? Para Leontiev (1978), com a constituição do Homo sapiens todas as características da espécie se transmitem geneticamente, porém, as características que constituem o gênero humano, por terem sido produzidas socialmente, precisam ser apropriadas por meio das relações sociais estabelecidas entre os indivíduos, que transmitem a cada novo membro da espécie a cultura material e simbólica já elaborada. Concordando com Leontiev, Luria (2012) não desconsidera a influência dos fatores biológicos no desenvolvimento humano, mas também enfatiza que o desenvolvimento da consciência ocorre por meio do processo de interação e apropriação da cultura intelectual, produzido pelas gerações no decorrer da história social da humanidade. A consciência nunca foi um estado interior primário da matéria viva; os processos psicológicos surgem não no interior da célula viva, mas em suas relações com o meio circundante, na fronteira entre o organismo e o mundo exterior, e ela assume as formas de um reflexo ativo do mundo exterior que caracteriza toda atividade vital do organismo. À medida que a forma de vida se torna mais complexa, com uma mudança no modo de existência e com o desenvolvimento de uma estrutura mais complexa dos organismos, estas formas de interação com o meio ou de reflexo ativo mudam; todavia, os traços básicos desse reflexo, bem como suas formas básicas tais como foram estabelecidas no processo da história social devem ser procurados não no interior do sistema nervoso, mas nas relações concernentes à realidade, estabelecidas em estágios sucessivos de desenvolvimento histórico (LURIA, 2012, p. 194). 8

Os dois autores ressaltam, portanto, que o desenvolvimento é algo que se produz socialmente. Esse pressuposto é de extrema importância para se pensar a função da educação nesse processo. Como vimos até aqui, o homem se desenvolveu ao produzir cultura, deixando sua produção materializada nos instrumentos físicos e na linguagem, nos quais está objetivado o desenvolvimento já alcançado pelo gênero humano. Para que cada novo membro da espécie desenvolva-se é necessário que se aproprie dessas objetivações, e isso é possível por meio das interações sociais, da interação/comunicação com outros homens que já dominam esses bens culturais. Esse é o processo, denominado por Leontiev (1978), de Educação. As aquisições do desenvolvimento histórico das aptidões humanas não são simplesmente dadas aos homens nos fenômenos objetivos da cultura material e espiritual que os encarnam, mas são aí apenas postas. Para se apropriar destes resultados, para fazer deles as suas aptidões, os órgãos da sua individualidade, a criança, o ser humano, deve entrar em relação com os fenômenos do mundo circundante através doutros homens, isto é, num processo de comunicação com eles. Assim, a criança aprende a atividade adequada. Pela sua função, este processo é, portanto, um processo de educação (LEONTIEV, 1978, p. 272, grifos do autor). Esse percurso histórico que retrata a filogênese do desenvolvimento humano nos fornece subsídios para entender o papel da educação como promotora do desenvolvimento dos sujeitos e a relevância da aprendizagem conceitual nesse processo. Como vimos, na linguagem está objetivada a formação da consciência humana. Essa linguagem se organiza em forma de conceitos. Ou seja, quando aprendemos uma palavra não aprendemos apenas a nomear objetos ou fenômenos, mas também um significado que nos permite abstrair e generalizar aspectos da realidade, refletindo-os de modo diferente do que nos permite as sensações. É por essa razão que Vigotski (2009, p. 486) afirma que a palavra consciente é o microcosmo da consciência humana. É pelo fato de entender a unidade pensamento e linguagem que Vigotski (2009) realiza estudos para compreender o processo de formação de conceitos, bem como sobre a relação entre a aprendizagem de conceitos científicos e o desenvolvimento da 9

consciência. Não adentraremos, neste artigo, nos detalhes sobre seus estudos 1, apenas destacaremos aspectos que nos fazem pensar no trabalho com a linguagem no interior da escola. Quando falamos em linguagem, não estamos nos referindo a qualquer interação verbal entre estudantes e desses com o professor. Estamos nos dirigindo aos conceitos das diferentes áreas do conhecimento que estão representados nas linguagens presente nos livros e nas exposições do professor. É por meio dela que nos apropriamos do modo de pensar das diferenças áreas do conhecimento e desenvolvemos um determinado tipo de consciência. Nesse sentido, as explicações sobre a aprendizagem conceitual feitas por Vigotski (2009), oferecem elementos para se pensar o ensino de qualquer área de conhecimento. As pesquisas realizadas sobre o processo de formação dos conceitos permitiram a Vigotski (2009, p. 246) chegar à conclusão de que a apreensão do [...] conceito é mais do que a soma de certos vínculos associativos formados pela memória, é mais do que um simples hábito mental; é um ato real e complexo do pensamento que não pode ser aprendido por meio de simples memorização [...] que são necessários outros processos, igualmente complexos e constituídos numa relação mediada pelos signos ou pelas palavras. De acordo com Vigotski (2009), no processo de formação conceitual, a palavra é elemento fundamental, mas ela não é aprendida de forma definitiva e estática; como os significados das palavras evoluem, os conceitos aprendidos também passam por um processo de evolução, ampliando o seu significado para o sujeito. Desse modo, a apreensão de um conceito corresponde a um complexo e demorado processo que se completa quando o sujeito é capaz de realizar a sua generalização. O ato de generalizar vai sofrendo novas configurações à medida que a experiência pessoal vai se ampliando, possibilitando novas combinações conceituais. Assim, por se tratar de uma generalização e não somente uma denominação verbal, no momento em que uma criança apreende uma nova palavra, vinculada a um significado, o seu desenvolvimento encontra-se somente no começo. Para Vigotski (2009, p. 246), [...] no início ela é uma 1 Vigotski (2009) discute o processo de formação dos conceitos espontâneos e científicos na obra A Construção do Pensamento e da Linguagem. 10

generalização do tipo mais elementar que, à medida que a criança se desenvolve, é substituída por generalizações de um tipo cada vez mais elevado, culminando o processo na formação dos verdadeiros conceitos. O curso do desenvolvimento do conceito científico nas ciências sociais transcorre sob as condições do processo educacional, que constitui uma forma original de colaboração sistemática entre o pedagogo e a criança, colaboração essa em cujo processo ocorre o amadurecimento das funções psicológicas superiores da criança com o auxílio e a participação do adulto [...] A essa colaboração original entre a criança e o adulto momento central do processo educativo paralelamente ao fato de que os conhecimentos são transmitidos à criança em um sistema deve-se o amadurecimento precoce dos conceitos científicos e o fato de que o nível de desenvolvimento desses conceitos entra na zona das possibilidades imediatas em relação aos conceitos espontâneos, abrindo-lhes caminho e sendo uma espécie de propedêutica do seu desenvolvimento (VIGOTSKI, 2009, p. 244). O autor considera que o ensino organizado para que os conceitos sejam apropriados de forma pronta e acabada, se mostra inviável e pedagogicamente estéril. Nesse tipo de ensino, as ações de aprendizagem se limitam à assimilação vazia de palavras em que a criança utiliza mais a memória do que o pensamento e sente-se incapaz de empregar, de forma consciente, o conhecimento assimilado. Movimento oposto ocorre quando um conceito é apropriado por meio de atividades que mobilizem suas funções psicológicas superiores. A apropriação do conceito científico permite que o sujeito tome consciência do objeto de conhecimento e passe a atuar mentalmente sobre ele, estabelecendo relações totalmente diferenciadas. Os conceitos científicos com sua relação inteiramente distinta com o objeto mediados por outros conceitos com seu sistema hierárquico interior de inter-relações, são o campo em que a tomada de consciência dos conceitos, ou melhor, a sua generalização e a sua apreensão parecem surgir antes de qualquer coisa. Assim surgida em um campo do pensamento, a nova estrutura da generalização, como qualquer estrutura, é posteriormente transferida como um princípio de atividade sem nenhuma memorização para todos os outros campos dos pensamentos dos conceitos. Desse modo, a tomada de consciência passa pelos portões dos conceitos científicos (VIGOTSKI, 2009, p. 290). 11

Vigotski (2007, p. 103) entende que aprendizagem e desenvolvimento são processos diferentes, no entanto, uma adequada organização da aprendizagem [...] resulta em desenvolvimento mental e põe em movimento vários processos de desenvolvimento que, de outra forma, seriam impossíveis de acontecer. A aprendizagem do indivíduo ocorre por meio da atividade mediada e da interação estabelecida com o meio. Pela ênfase dada aos processos sócio-históricos, na teoria vigotskiana, o ensino sistematicamente organizado possibilita o despertar de processos internos de desenvolvimento que são capazes de atuar apenas quando a criança interage com pessoas e com os conhecimentos já produzidos. Uma vez internalizados, esses conhecimentos passam a orientar as ações da criança. O autor evidencia que a complexidade da formação de conceitos científicos exige e se articula a diferentes funções psicológicas superiores, como a percepção, a memória, a atenção voluntária, a abstração, a generalização, etc., daí a razão de provocar o seu desenvolvimento. Nesse sentido, o processo de instrução escolar que tenha por objetivo o desenvolvimento dos alunos não pode negligenciar o trabalho com o conhecimento sistematizado (conceitual), tampouco limitar o ensino de conceitos ao treinamento ou a sua definição verbal. Para a formação dos conceitos científicos, a relação com o objeto de conhecimento precisa ir além da experiência sensível, o que exige a mobilização das funções psicológicas superiores. Nesse processo, o modo de se organizar o ensino de conceitos passa a ser um fator fundamental a ser levado em consideração quando se tem em vista uma educação que atenda a finalidade formativa defendida pela Teoria Histórico-Cultural. REFERÊNCIAS LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Horizonte, 1978. LURIA, A. R. Curso de psicologia geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. v. 1. 12

. O cérebro humano e a atividade consciente. In: VIGOTSKII, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 12. ed. São Paulo: Ícone, 2012. p. 191-228. VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. 13