Gordura do leite e doenças cardiovasculares: reconstruindo a história sob a luz da ciência Autor: Marco Antônio Sundfeld da Gama - Pesquisador da Embrapa Gado de Leite Pergunte à grande maioria das pessoas o que elas pensam sobre o consumo de produtos lácteos contendo gordura ( fullfat ), e a resposta provavelmente será a mesma: aumenta o colesterol, entope suas artérias e, no final das contas, você vai morrer de infarto ou de alguma outra doença cardiovascular. Se você concorda com isso, talvez esteja na hora de rever os seus conceitos, ou melhor, escutar o que a ciência tem a lhe dizer. Nas últimas décadas, o conceito de uma dieta saudável tem se tornado sinônimo de evitar a ingestão de gordura, especialmente a saturada, de forma a reduzir a concentraçãodecolesterol no sangue e, consequentemente, o risco de doenças cardiovasculares. Como mais da metade da gordura do leite (cerca de 60%) é saturada, órgãos de saúde no Brasil e no Exterior têm recomendado a redução da ingestão de produtos lácteos fullfat (ex.: leite integral, queijos e manteiga), de forma a se obterum consumo diário de gordura saturada inferior a 7% da energia total ingerida (Spositoet al., 2007; Gidding et al., 2009).Mas afinal, o que é gordura saturada?sua composição é a mesma em todos os alimentos? E a outra parte da gordura do leite que não é saturada, do que é composta? Oque conhecemos por gordura saturada é, na verdade, um grupo de ácidos graxos que tem em comum a ausência de duplas ligações na molécula. No caso da gordura do leite, devido a particularidades do sistema digestivo e fisiológico de ruminantes (ex.: vacas, cabras e ovelhas),estes ácidos graxos variam amplamente em tamanho (4 a 26 átomos de carbono),e estudos tem demonstrado que apenas alguns deles apresentam efeitos negativos sobre indicadores de saúde cardiovascular. Mais especificamente, somente os ácidos graxos saturados com 12, 14 e 16 carbonos (denominados láurico, mirístico e palmítico, respectivamente), são considerados hipercolesterolêmicos, ou seja,associados com o aumentodas concentrações plasmáticas de colesterol total e LDL-colesterol (Kris-Etherton&Yu, 1997), este último conhecido popularmente como colesterol ruim. Entretanto, estudos demostraram que estes graxos também aumentam a concentração plasmática de colesterol- HDL (conhecido como colesterol bom ), que é um indicador demenorrisco de doenças cardiovasculares. A análise estatística de resultados de 60 estudos clínicos (Mensinket al., 2003) revelou ainda que a substituição isoenergética de carboidratospelos ácidos graxos láurico, mirístico e palmítico não alterou, ou mesmo reduziu (no caso do ácido láurico) a relação colesterol total:colesterol-hdl no sangue dos indivíduos (Figura 1);digno de nota, a relação colesterol total:colesterol-hdl no sangue é considerada um indicador de risco aterogênico mais importante do que o colesterol-ldl.
Figura 1: Meta-análise de 60 estudos clínicos mostrando as mudanças na relação colesterol total:hdl-colesterol quando carboidratos (constituindo 1% da energia ingerida) são substituídos isoenergeticamente por ácidos graxos (*P<0,001). Adaptado de Mensinket al. (2003). No entanto, é importante ressaltar que indivíduos não consomem ácidos graxos saturados isoladamente, e sim como parte de um alimento que contém muitos outros nutrientes, cujos efeitos biológicos devem ser levados em conta ao se considerar um alimento como saudável ou não. No caso dos produtos lácteos, os ácidos graxos saturados, embora presentes em elevada concentração, são apenas uma fração da gordura total presente no leite. Para que se tenha uma ideia, a gordura do leite de ruminantes é uma matriz tão complexa que mais de 400 ácidos graxos já foram identificados (Jensen, 2002), alguns deles reconhecidos pela comunidade científica como componentes indispensáveis em uma dieta saudável. Por exemplo, o que muitos não sabem, ou não divulgam, é que o segundo ácido graxo mais abundante na gordura do leite, logo após o palmítico, é o ácido oléico (20 a 25% dos ácidos graxos totais), aquele presente em elevada concentração no azeite de oliva. Isso mesmo, o ácido graxo monoinsaturado considerado um dos maiores aliados do coração pela comunidade científica mundial, o queridinho das nossas artérias, que não apenas aumenta os níveis de HDL ( bom colesterol), como reduz o LDL ( mau colesterol). Ainda assim,muitos pseudo-experts (supostos especialistas que propagam opiniões sem embasamento científico
adequado), podem levantar a seguinte questão: mas o ácido oléico é capaz de compensar os efeitos devastadores da gordura saturadano organismo? A boa notícia para os apreciadores de um bom queijo é que o ácido oléico não está sozinho nesta batalha. Alguns ácidos graxos,presentes em pequena concentração na gordura do leite, apresentam efeitos positivos sobre o perfil de lipoproteínas plasmáticas (níveis de HDL, LDL, colesterol total, relação colesterol-hdl:colesterol total) e outros indicadores de saúde vascular. O mais conhecido é o ácido rumênico (CLA cis-9, trans-11), cujos efeitos benéficos à saúde humana vêm sendo demonstrados em diversos estudos desde que sua atividade anticarcinogênica foi descoberta acidentalmente há mais de 20 anos atrás (Pariza, 2004). Novamente, alguém pode dizer: deve ter alguma coisa errada nesta história, esse tal de CLA tem uma ligação do tipo trans, e todos nós sabemos que a gordura trans não é boa para a saúde. No entanto, há evidências científicas crescentes de que os ácidos graxos trans naturalmente presentes na gordura do leite de ruminantes, quando consumidos em quantidadesnormais em uma dieta equilibrada,não aumentamo risco de doenças cardiovasculares (Figura 2),ao contrário do que ocorre quando da ingestãode gordura transde origem industrial, as quais são comprovadamente aterogênicas (Uauyet al., 2009).
Figura 2: Risco relativode doenças coronárias em função do aumento da ingestão de ácidos graxos trans totais (gráfico superior) e os provenientes de produtos de ruminantes (gráfico inferior). Adaptado de Locket al. (2005). Isso ocorre porque o perfil de ácidos graxos trans da gordura do leite difere amplamente do encontrado em produtos contendo gordura trans de origem industrial. O principal ácido graxo trans da gordura do leite, o ácido vaccênico (C18:1 trans-11), é parcialmente convertido em CLA cis-9 trans-11 nos tecidos de humanos, e maiores concentrações deste composto no tecido adiposo estão associadas com um menor risco de infarto do miocárdio em humanos (Smit et al., 2010). As características únicas da gordura do leite mencionadas neste artigo, muitas vezes não divulgadas ou desconhecidas pelos opositores do leite, são consistentes com um número cada vez maior de evidências científicas mostrando queo consumo de produtos lácteos fullfat, como parte de uma dieta equilibrada, não está associado a um maior risco de doençascardiovasculares. Para os consumidores mais exigentes, há ainda outra boa notícia: estudos na área de ciência animal demonstram, de maneira consistente, que amanipulação da dieta fornecida a vacas leiteiras pode reduzir significativamente a concentração de ácidos graxos saturados de cadeia média (C12-C16) e aumentar, concomitantemente, os teores de ácidosoleico e rumênico (CLA cis-9, trans-11) na gordura do leite (Gama, 2010, Lopes et al., 2011). Entretanto, esse temanão menos fascinante é assunto de um próximo artigo. Nada mal para quem gosta de um pãozinho com manteiga no café da manhã ou um queijo com vinho tinto nos fins-de-semana, não é mesmo? Referência Bibliográficas: Gama, M. A. S. Produção de leite com alto teor de CLA. In: 11o Congresso Pan-Americano do Leite, 2010, Belo Horizonte. Anais do 11o Congresso Pan-Americano do Leite. Belo Horizonte: FAEMG, FEPALE, 2010. Gidding, S.S. et al. Implementing American Heart Association Pediatric and Adult Nutrition Guidelines: A Scientific Statement from the American Heart Association Nutrition Committee. Circulation 119, p.1161-1175, 2009. Jensen, R.G. Invited Review: The composition of bovine milk lipids: January 1995 to December 2000. J. Dairy. Sci., v.85, p.295-350, 2002. Kris-Etherton, P. et al. AHA scientific statement: Summary of the scientific conference on dietary fatty acids and cardiovascular health. Conference summary from the nutritional committee of the American Heart Association. J. Nutr. 131, p.1322-1326. Lock, A.L. et al. The biology of trans fatty acids: Implications for human health and the dairy industry. Aust. J. Dairy. Technol 60, p.134-142, 2005. Lock, A.L.; Bauman, D.E. Separating milk fats from fiction. In: WCDS Advances in Dairy Technology, v.23, p.19-36, 2011.
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