Projeto Temático Letramento do Professor



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Transcrição:

Projeto Temático Letramento do Professor www.letramento.iel.unicamp.br Este texto foi preparado atendendo solicitação do Departamento Pedagógico da Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura Municipal de Campinas, para ser usado em curso de extensão sobre Alfabetização e Letramento, a ser oferecido pelo Cefiel (Centro de Formação de Professores do IEL) em abril-maio de 2007. O conceito de letramento e suas implicações para a alfabetização (UNICAMP) O letramento tem como objeto de reflexão, de ensino, ou de aprendizagem os aspectos sociais da língua escrita. Assumir como objetivo o letramento no contexto do ciclo escolar implica adotar na alfabetização uma concepção social da escrita, em contraste com uma concepção tradicional que considera a aprendizagem de leitura e produção textual como a aprendizagem de habilidades individuais. Essa escolha implica, ainda, que a pergunta estruturadora/estruturante do planejamento das aulas seja: quais os textos significativos para o aluno e para sua comunidade, em vez de: qual a seqüência mais adequada de apresentação dos conteúdos (geralmente, as letras para formarem sílabas, as sílabas para formarem palavras e das palavras para formarem frases). Determinar o que seja um texto significativo para a comunidade implica, por sua vez, partir da bagagem cultural diversificada dos alunos, que, antes de entrarem na escola, já são participantes de atividades corriqueiras de grupos sociais que, central ou perifericamente, com diferentes modos de participação 1

(mais ou menos autônomos, mais ou menos diversificados, mais ou menos, prestigiados), já pertencem a uma cultura letrada. Uma atividade que envolve o uso da língua escrita (um evento de letramento) não se diferencia de outras atividades da vida social: é uma atividade coletiva e cooperativa, porque envolve vários participantes, com diferentes saberes, que são mobilizados segundo interesses, intenções e objetivos individuais e metas comuns. Já a prática de uso da escrita dentro da escola envolve prioritariamente a demonstração da capacidade individual de realizar todos os aspectos de todas as atividades, seja: soletrar, ler em voz alta, responder a perguntas oralmente ou por escrito, escrever uma redação ou um ditado. A diferença entre ensinar uma prática e ensinar para que o aluno desenvolva uma competência ou habilidade não é mera questão terminológica. Na escola, onde predomina a concepção da leitura e da escrita como competências, concebe-se a atividade de ler e escrever como um conjunto de habilidades progressivamente desenvolvidas até se chegar a uma competência leitora e escritora ideal: a do usuário proficiente da língua escrita. Os estudos do letramento, por outro lado, partem de uma concepção de leitura e de escrita como práticas discursivas, com múltiplas funções e inseparáveis dos contextos em que se desenvolvem. É difícil pensar o trabalho pedagógico com base nessa concepção, porque a heterogeneidade não combina muito bem com a aula tradicional, com um professor dirigindo-se a um aluno médio, idealizado, representativo da turma de trinta ou mais alunos, interagindo apenas com o professor, falante primário e foco da atenção de todos, que dá sua aula de acordo com um currículo definido para todas as turmas do ciclo na escola ou no município Isso, porque em determinado dia, naquele ano, todas as crianças da turma serão avaliadas segundo parâmetros (também supostamente representativos dos conhecimentos a serem atingidos na série ou no ciclo) definidos para toda a nação, como acontece com as já conhecidas avaliações do SARESP, SAEB. 2

A concepção da escrita dos estudos de letramento pressupõe que as pessoas e os grupos sociais são heterogêneos e que as diversas atividades entre as pessoas acontecem de modos muito variados. Portanto, é viável que se concebam princípios gerais para a organização do currículo, mas as atividades para seu desenvolvimento, na interação entre professor e aluno(s) e entre aluno(s) e aluno(s) envolvem tal sorte de fatores de ordem social e pessoal que seus resultados são imprevisíveis. Entre esses princípios gerais do desenvolvimento do currículo, segundo a concepção do letramento, teríamos: 1. o currículo é dinâmico; 2. o currículo parte da realidade local: turma escola comunidade; 3. o princípio estruturante do currículo é a prática social (não o conteúdo); 4. os conteúdos do currículo têm a função de orientar, organizar e registrar o trabalho do professor, não são, necessariamente, conteúdos a serem focalizados em sala de aula. No ciclo em discussão, os conteúdos correspondem, basicamente, ao conjunto de saberes e conhecimentos requeridos em práticas sociais letradas, tais como as de medição, cálculos de volume, elaboração de maquetas, mapas e plantas (conteúdos matemáticos), e àqueles necessários para a participação em práticas discursivas de leitura e produção de textos de diversos gêneros. Nesse último caso, estamos falando, dentre outros, daqueles conteúdos relativos ao domínio do código (como a segmentação em palavras, correspondências regulares de som-letra, regras ortográficas de palavras comuns, uso de maiúsculas) e à formação de uma noção de texto (coesão, coerência, multimodalidade, intertextualidade, gênero e discurso, etc.) Numa prática social, há a necessidade de tudo isso e, portanto, SEMPRE surge a oportunidade de o professor focalizar, de forma sistemática, algum conteúdo, ou seja, de apresentar materiais para o aluno chegar a perceber uma regularidade, praticar um procedimento, buscar uma explicação. A partir do momento em que o letramento do aluno é definido como o objetivo da ação pedagógica, o 3

movimento será da prática social para o conteúdo, nunca o contrário, se o letramento do aluno for o objetivo da ação pedagógica. A prática social é possível quando sabemos como agir discursivamente numa situação, ou seja, quando sabemos qual gênero do discurso usar; por isso, é natural que essas representações ou modelos que viabilizam a comunicação na prática social os gêneros sejam unidades importantes no planejamento. Isso não significa, entretanto, que a atividade da aula deva ser organizada em função de qual gênero ensinar. Exemplificamos a diferença: se as crianças estão intrigadas pela extinção dos dinossauros, pode ser que seus interesses façam com que se aventurem pela Internet, leiam verbetes de enciclopédias, visitem um museu de ciências, entrevistem um cientista. Para realizar essas iniciativas, terão de adquirir familiaridade com a leitura de hipertextos, de verbetes, com a produção de questionários, pois é a familiaridade com esses gêneros o que permitirá que elas realizem essas atividades. E o professor poderá, ao guiá-las na leitura e produção de textos pertencentes a esses gêneros, chamar a atenção, explicar, exemplificar as características dos textos, ou da língua, ou das palavras que os formam. Tudo isso é bem diferente de definir, de antemão, que nesse ano, serão ensinados os textos interativos (blog, email, texto informativo em forma de hipertexo entre outros), verbete e entrevista. O projeto pedagógico envolvendo o trabalho, em pequenos grupos, realizado em uma classe heterogênea quanto ao domínio da escrita, com alunos com trajetórias de leitura e de produção textual diferentes - devido às diferentes experiências em outras instituições (leitura de almanaques na família, preparação para crisma na igreja, venda de rifas para a associação do bairro, por exemplo) - e que se organiza em torno de trabalhos que prevêem a participação diferenciada de alunos que escolheram trabalhar num determinado tema é, na nossa perspectiva, o organizador ideal do trabalho pedagógico que 4

leva a sério a heterogeneidade de uma turma, abrindo mão de pré-requisitos e progressões rígidas em relação à apresentação de conteúdos curriculares 1. Na concepção social da escrita, não é a progressão do mais fácil ao mais difícil o que facilita ou dificulta a aprendizagem, até porque não é possível dizer, com qualquer grau de segurança, o que torna algo fácil ou difícil a um indivíduo. Se, na prática social, o aluno se depara com textos não simplificados, numa sala de aula em que a prática social é estruturante, o aluno deveria também se deparar com os textos que circulam na vida social: a facilitação, para que ele consiga vencer os obstáculos que a leitura de tais textos pode apresentar, é o trabalho coletivo: na atividade cooperativa com seus colegas, cada um com seus diferentes saberes, pontos fracos e fortes, sob a orientação do docente. Além disso, no ensino da leitura e da produção de textos no contexto de uma prática social, a facilidade ou a dificuldade não depende apenas da relação letra - som, mas sobretudo do grau de familiaridade do aluno com os gêneros mobilizados para comunicar-se em situações dessa prática, por um lado, e com os textos pertencentes a esses gêneros, por outro. As letras, as sílabas e as palavras passam a ser ensinadas a partir de elementos salientes, tanto verbais como não verbais, que se destacam nesses textos (manchetes, títulos, elementos ilustrativos). Nessa perspectiva, as famosas dificuldades ortográficas, sempre tardias na progressão tradicional, podem aparecer em qualquer etapa do processo, desde que sejam apreendidas dentro de um contexto significativo. A título de ilustração, o dígrafo e o ditongo na palavra dinossauro não vão impedir uma criança de desenvolver um projeto sobre esse animal! Na produção de textos, a dificuldade individual também é reduzida, na medida em que o texto é construído coletivamente, sob a orientação do professor, ou em parceria com outro colega. 1 Não é a toa que denominamos esse tipo de trabalho de projetos de letramento, pois seja qual for o tema e o objetivo, eles necessariamente envolverão conhecimentos, experiências, capacidades, estratégias, recursos, materiais, técnicas de uso da língua escrita de diversas instituições, que deveriam ocupar lugar proeminente no planejamento, desenvolvimento e avaliação dos projetos. É nesse sentido que se distingue um projeto de letramento de reciclagem de latas na escola de uma campanha de reciclagem de latas feita pela associação de moradores do bairro. 5

Na hora da avaliação, a heterogeneidade também deve ser o princípio norteador. Os alunos não podem ser tomados como iguais, em nenhum momento do processo. É fundamental valorizar o singular na hora em que o aluno formula uma hipótese, dá uma resposta, questiona uma informação, demonstra seus conhecimentos, enfim, também, na hora da avaliação. E, para levar em conta o dado singular, o professor deve se engajar numa observação acurada da situação, tentando evitar generalizações e testando suas hipóteses. É justamente porque devemos partir dessa bagagem cultural diversificada dos alunos como participantes de uma cultura letrada que podemos permitir que as crianças tomem parte de forma variada das situações e criem táticas diferentes para lidar com suas limitações ou potencialidades nessas situações diversas. Apesar das práticas homogeneizadoras ensinadas/aprendidas na escola, é importante incentivarmos nossos alunos a aportarem suas compreensões diversas, provenientes exatamente das experiências e aprendizagens extremamente variadas por que passaram, antes mesmo de ocuparem os bancos escolares. A avaliação de todo esse processo abre um campo importante para o professor pesquisar as práticas próprias do grupo a que pertencem seus alunos e para refletir sobre o valor e a necessidade de algumas aprendizagens, que às vezes negam a cultura de um grupo ou entram em conflito com ela. É evidente que o papel do professor muda sob esta perspectiva de alfabetização e letramento como prática social. Uma grande vantagem do enfoque socialmente contextualizado é a autonomia que ele ganha no planejamento das unidades de ensino e na escolha de materiais didáticos. O professor volta a ser o profissional que decide sobre um curso de ação com base em sua observação e seu diagnóstico da situação. É ele que deverá decidir questões relativas à seleção dos materiais, saberes e práticas que se situam entre o local, o aplicado e o funcional à vida dos alunos e da comunidade e o socialmente relevante, que um dia poderá ser utilizado para melhorar o futuro do próprio aluno e de seu grupo. O professor precisa ter autonomia para decidir sobre a inclusão daquilo que pode e deve fazer parte do cotidiano da 6

escola, porque é legítimo e/ou imediatamente necessário, e, por outro lado, sobre a exclusão daqueles conteúdos desnecessários e irrelevantes para a inserção do aluno nas práticas letradas que, parece-nos, persistem por inércia e tradição. Finalmente, é importante também que haja uma negociação daquilo que pode não interessar momentaneamente ao aluno, mas precisa ser ensinado pela sua real relevância em nossa cultura e sociedade. A perspectiva não se exime de focalizar o impacto social da escrita, particularmente as mudanças e transformações sociais decorrentes das novas tecnologias e novos usos da escrita, com seus reflexos no homem. Esse foco necessariamente amplia a concepção do que venha a ser a escrita, antes reservada para os textos literários de fato, os textos extraordinários que pouquíssimos conseguem escrever passando a incluir os textos do cotidiano, os textos comuns do dia-a-dia, mesmo que sejam utilizados como recursos pedagógicos para construir a auto-segurança do aluno em relação à sua própria capacidade de ler e escrever (para que ele perceba que já domina muito dessa capacidade): listas, bilhetes, receitas, avisos, letreiros, outdoors, placas de rua, crachás, camisetas e buttons de transeuntes, enfim, a escrita ambiental em sua enorme variedade passa a ser assim reconhecida e utilizada. Essa ampliação se estende também às instituições em que os textos circulam. Embora os textos das instituições públicas de prestígio forneçam, de direito, grande parte do acervo a ser incluído, também os textos que circulam em outras esferas, como a da intimidade doméstica (bilhetes, recados e cartas pessoais; contas, extratos e cheques; exames, laudos e carteiras de vacinação, boletim escolar e diplomas) podem vir a ser incluídos: o aluno pode escrever sua história familiar fazendo legendas e notas para as fotos de um álbum de família e consultando certidões; pode ler e recortar anúncios; pode fazer os registros de saúde, de educação, entre outros, dos membros da família; pode agendar, rotular. As funções da escrita na cotidianidade, mesmo que limitadas e finitas, introduzirão práticas arquivais, identitárias, de contato e comunicativas, assim como gêneros que terão uma vida muito útil em muitas outras práticas sociais. 7

A natureza do objeto a ser ensinado também muda na perspectiva sóciohistórica do letramento. Vejamos um aspecto, o da relação entre o oral e o escrito que, na prática social, não é de oposição, mas de complementaridade. Ao considerarmos as atividades da vida social, percebemos que os gêneros da escrita são aprendidos e produzidos na interação face a face, estando, portanto, firmemente assentados na oralidade. Na sala de aula, essa relação imbricada é muito evidente e deve ser encorajada, tanto no professor como no aluno, com a finalidade de ajudar a construir um sentido, ou de introduzir um novo gênero, ou de perceber a gradação de formalidade/informalidade que determina, em diferentes situações, o uso da modalidade falada ou da modalidade escrita ao agradecer um presente, fazer ou aceitar um convite, oferecer uma desculpa. Um outro aspecto, talvez ainda amais importante, da transformação na concepção do objeto a ser ensinado envolve um paulatino processo de desnaturalização (desideologização) da leitura e da escrita, em conseqüência da renovação contínua da prática pedagógica e dos novos papéis assumidos pelo professor, particularmente, o de aprendiz potencial de uma nova prática social. Isso introduz o estranhamento/distanciamento necessário para perceber a dificuldade da atividade e para evitar solicitações que podem não fazer sentido para o aluno. Por exemplo, nos últimos anos, a receita, o bilhete, o rótulo passaram a freqüentar o livro didático e a sala de aula, sendo frequentemente utilizados para alfabetizar. Entretanto, ensinar a um grupo de crianças a ler ou escrever uma receita, ou um rótulo, sem ter construído um contexto que justifique sua leitura ou escrita, em atividades que poderiam perfeitamente ser feitas com outros textos (não precisamos de um rótulo para procurar o N de Neston, por exemplo) produz o efeito de uma tarefa desnecessária, sem sentido e, portanto, muito mais difícil do que aprender a letra N na cartilha, no contexto de muitas sílabas e palavras com essa letra. Efeito semelhante pode ser produzido quando se solicita ler ou escrever uma receita ou uma instrução quando poderíamos perfeitamente mostrar como fazer o prato ou como montar um brinquedo. A escritura de textos como receitas e instruções pode parecer natural para os grupos altamente letrados, mas não 8

são ações que pertencem à ordem natural das coisas: trata-se de convenções não universais para se registrar uma ação. Perceber essas dificuldades potenciais não é fácil para o professor ou para qualquer um que já tenha naturalizado a escrita como uma outra maneira de fazer sentido. E serão as respostas inesperadas dos alunos as que mais contribuirão para essa nova, e necessária, percepção. Por fim, não podemos deixar de mencionar uma última decorrência da perspectiva social do letramento, além das já brevemente discutidas relativas ao currículo, ao objeto, ao papel do professor. O entorno, o contexto em que se dá a prática social, precisa ser transformado. Não é possível levar a sério a heterogeneidade se os alunos não têm como se reunir em pequenos grupos para desenvolver atividades diferenciadas. A sala de aula deve contemplar espaços bem equipados para as atividades de toda a turma, como as rodas de leitura, para a atividade individual, para as atividades em pequenos grupos. Suas paredes devem se constituir em murais atrativos, renováveis periodicamente segundo as necessidades e interesses do grupo. O acervo da biblioteca deve ser significativo e estar acessível à criança. Convivendo num ambiente enriquecido pela escrita um ambiente letrado mesmo o professor de formação tradicional poderá aos poucos refletir sobre como propiciar atividades que, de fato, contribuam para o letramento de seu aluno, sobre como fazer e registrar as observações avaliativas, tanto para diagnosticar como para mensurar aprendizagem. E ele virá talvez, nesse percurso reflexivo de letramento e auto-formação, a abandonar atividades que só lhe permitem preocupar-se com o tema da redação que seguirá a atividade de ler, ou com a entonação, postura correta e respeito à pontuação durante a leitura. É importante lembrar que ensinar a ler e escrever não é uma questão técnica, é uma questão política, conforme Paulo Freire sempre insistiu. Não atuamos no vácuo. Para finalizar, lembremos a dimensão política das questões mais importantes levantadas. 9

a) Partir das funções da escrita na comunidade, o que significa, entre outras medidas, distanciar-se de crenças arraigadas sobre a escrita (como a superioridade de toda prática letrada sobre a prática oral); aprender e ensinar a conviver com a heterogeneidade; valorizar o singular. b) Funcionar como interlocutor privilegiado entre grupos com diferentes práticas letradas e planejar atividades que tenham por finalidade a organização de (e a efetiva participação em) eventos letrados próprios das instituições de prestígio: escrever um livr(inh)o e, em função dessa produção, organizar seu lançamento para a comunidade escolar e do entorno, organizar uma noite de autógrafos, fazer uma exposição de artes (um vernissage), organizar uma palestra sobre literatura (uma tertúlia), uma sessão de leitura de poemas (sarau); assistir a uma peça teatral; dialogar (orlamente e por escrito) com autores, editores. c) Lembrar que os usos da linguagem não são neutros em referência às relações de poder na sociedade, evitando contribuir para a desigualdade e a exclusão. BIBLIOGRAFIA Freire, Paulo (1976). Ação cultural para a liberdade. R.J.: Paz e Terra. Kleiman, Angela B. (2005). Preciso ensinar o letramento? Não basta ensinar a ler e escrever? Cefiel/Unicamp & MEC. Marcuschi, Luiz A. (2000) Da fala para a escrita. Atividades de retextualização. São Paulo: Cortez Editora. 10