Administração pública e reforma da saúde Data: 22/9/2004 Autor: André Coelho, Luis Costa, Luís Fialho Morais (lmdfmorais@iol.pt) Numa época em que se fala da Reforma da Administração Pública, parece aceitável que se teçam algumas considerações sobre a relação entre a reforma da Administração Pública e a reforma da Saúde. Será a segunda dependente da primeira? Ou qualquer reforma na Saúde reflectir-se-á, eventualmente, na própria Administração Pública? Ou ainda, estarão ambos os conceitos interligados, mas sem qualquer relação causa-efeito? Resumo A reforma da administração, (saúde inclusive), deve ser simples e atacar especificamente os pontos de estrangulamento que se tornaram perceptíveis. As grandes reformas, têm tendência para não passar porque mexem com muitos interesses e não são visíveis ou aceites pelos cidadãos Desenvolvimento Sendo a Reforma da Administração Pública um tema em permanente debate, parece aceitável que se teçam algumas considerações sobre a relação entre a reforma da Administração Pública e a reforma da Saúde. Será a segunda dependente da primeira? Ou qualquer reforma na Saúde reflectir-se-á, Sendo a Reforma da Administração Pública um tema em permanente debate, parece aceitável que se teçam algumas considerações sobre a relação entre a reforma da Administração Pública e a reforma da Saúde. Será a segunda dependente da primeira? Ou qualquer reforma na Saúde reflectir-se-á, eventualmente, na própria Administração Pública? Ou ainda, estarão ambos os conceitos interligados, mas sem qualquer relação causa-efeito? Indo um pouco mais além, não será a reforma da Saúde, a reforma da Administração Pública da Saúde? A este propósito escreve o Professor José Joaquim Gomes Canotilho da Universidade de Coimbra: "qualquer reforma da administração exige reforma do Estado e qualquer reforma do Estado é indissociável da reforma da administração. Reconhece-se que é uma velha obsessão do pensamento político... ser forte nas palavras e fraco nos actos. Preocupa-se com os conceitos e não com as soluções. Insiste nas dimensões substantivas das coisas e despreza os momentos processuais e procedimentos indispensáveis à resolução dos problemas políticos e sociais (Canotilho, J., 2000). Neste cenário, importa clarificar face à Administração Central e Local que temos, que condicionalismos se levantam à(s) reforma(s) da Saúde? Quando se fala na Regulação do sector através da criação da Entidade Reguladora da Saúde pelo Decreto-Lei n.º 309/2003 de 10 de Dezembro, estarão as condições criadas para a mesma desenvolver a sua actividade? Por outro lado, o novo modelo de Gestão Hospitalar iniciado em finais de 2002 em 31 hospitais trouxe mais valias reais para o cidadão? Ou apenas permitiu algumas poupanças ao Estado? Os dados (que se conhecem) parecem apontar para que nem uma situação nem outra se tenham verificado. Também quando se fala em Parcerias Público-Privado (PPP) e na importância da implementação de uma efectiva contratualização entre o Estado e os parceiros sociais, estará a actual Administração preparada para essas medidas? www.observaport.org 1
Com estas mudanças, o papel do Estado enquanto prestador directo diminui, tendo essa diminuição que ser acompanhada pelo desenvolvimento de uma efectiva contratualização, no âmbito da separação financiador / prestador (Ferreira, A., 2004). E a realidade actual parece estar longe deste princípio. O sector da saúde apresenta várias características que o diferenciam de todos os outros sectores de actividade. Essa diferenciação diz respeito ao contexto de incerteza em que a maioria das decisões tem de ser tomada e ao forte juízo de valor sobre tudo o que se relaciona com o sector da saúde (Lucena, D., Gouveia, M., Barros, P.,1996). E essa diferenciação tem que ser tomada em atenção quando se pretende reformar este sector. Reforma da Administração Pública "É difícil modernizar a administração pública" (Campos, A. C., 1997), "essencialmente por ser uma estrutura pesada, caracterizada por uma rigidez e excessiva abstracção gestora" (Campos, A. C., 2002). De acordo com Guterres, A. (1999), "temos uma administração pública que, no seu essencial, é napoleónica, é centralista, é sectorialmente segmentada, com grandes dificuldades de coordenação horizontal e muito burocratizada no seu funcionamento". Naturalmente, que qualquer alteração teria que vencer as resistências corporativas e lógicas institucionais. A defesa do sector público tradicional, em nome do interesse público corresponde às expectativas da grande maioria dos grupos sociais, mas perde progressivamente adeptos em face dos resultados insatisfatórios de diversos serviços públicos. Por outro lado, a defesa do liberalismo extremo é irrealista em países com uma forte tradição da presença do Estado na economia e nos sectores sociais, como é o caso de Portugal. Presentemente, discute-se a substituição do paradigma burocrático da administração, do tipo weberiano, pelo paradigma do Estado Regulador. A mudança comporta uma dimensão funcional traduzida no facto de o Estado deixar de ser produtor de bens e serviços para se transformar em regulador do processo de mercado (Canotilho, J., 2000). No sector da Saúde, foi criada a Entidade Reguladora da Saúde pelo Decreto-Lei n.º 309/2003 de 10 de Dezembro. O paradigma burocrático inicia-se quando "a administração deixou de ser apenas fiscalizadora... e passou a prestadora" (Campos, A. C., 2002). A esta realidade corresponde o denominado Estado-Providência. Em Portugal, a situação não foi diferente do resto da Europa, apesar de ter chegado a nós com 20 anos de atraso. O modelo weberiano caracteriza-se pela definição de áreas de actuação, relações do tipo superior-subordinado e confiança nas regras e nos registos. Subjacente a este modelo está a ideia de poder e autoridade (Araújo, J., 2000). No entanto, o Estado move-se hoje num contexto histórico, político e social externamente impositivo de mudanças estruturais nos campos e modos de actuar da administração central e regional (Canotilho, J., 2000). Os cidadãos foram interiorizando direitos que precisavam de ser satisfeitos e garantidos. A provisão pública, per si, é por isso insuficiente para esse tipo de missão. Daí a questão: "porquê então, um estatuto imutável nas actividades prestadoras?" (Campos, A. C., 2002). Assiste-se hoje, a uma deslocação de funções, competências e possibilidades de conformação política do Estado para organizações supranacionais e internacionais (Canotilho, J., 2000), pela incapacidade das organizações públicas tradicionais para lidar com os problemas emergentes, levando à adopção de novas formas de governação www.observaport.org 2
baseadas em modelos mais liberais (Araújo, J., 2000). Essas mudanças conduzem à impraticabilidade de muitos dos instrumentos organizativos que suportam a actuação da administração governamental, como sejam a separação entre o Estado e a sociedade; funções administrativas centradas burocraticamente no aparelho administrativo e dando relevância a invisíveis "interesses da administração; divisão do trabalho orientado por concepções tayloristas; administração rotineira com completa ausência de direcção estratégica" (Canotilho, J., 2000). No sector da saúde, essas mudanças revelam-se, por exemplo, ao nível da empresarialização de hospitais públicos e da contratualização entre o Estado e terceiros. No primeiro caso, trata-se de uma "forma mínima de privatização" que não retira ao sector público a produção do serviço público, mas submete tal produção a regras essencialmente privadas. No segundo caso, trata-se da produção de contratos-programa, que implicam um compromisso quanto à realização de certos objectivos ou resultados pelos organismos financiados. O esforço de modernização da administração pública suscita um conjunto muito vasto de desafios imediatos, a médio e longo prazo. Desafios esses que vão desde a modernização da gestão financeira à implementação das novas tecnologias da Sociedade de Informação, passando pelo movimento de empresarialização dos serviços prestadores, sejam eles actualmente os hospitais e mais tarde as prisões, as escolas e as universidades (Martins, A., 2000). O recurso ao mercado para o fornecimento de bens e serviços corresponde a uma resposta dos governos aos problemas de ineficiência da administração. Nesse sentido, o elemento essencial no modelo de coordenação por contratos consiste na divisão da responsabilidade pelo fornecimento e no fornecimento em si mesmo. O governo decide o que quer, escreve um contrato em que define os objectivos e procura alguém que se comprometa a realizar esses objectivos ao mais baixo custo. O contrato não só reflecte um processo de alocação de recursos baseado em indicadores e medidas de desempenho, típico de uma relação de mercado, como também conduz à reformulação das relações dentro da hierarquia do sector público (Araújo, J., 2000). O desenvolvimento pleno da contratualização em saúde requer muito estudo, tecnologia e knowhow. Exige formação de técnicos, formação dos dirigentes dos estabelecimentos de saúde, mudança de culturas organizacionais, mudança de atitudes e de práticas dos orgãos hierárquicos (Ramos, V., 2003). No entanto, "assumir que qualquer actividade ou tarefa executada por entidades públicas pode ou deve ser objecto de formas contratuais é uma perspectiva comercial e redutora da actividade dos governos" (Araújo, J., 2000). Desintervenção do Estado São algumas as razões que conduziram a uma desintervenção do Estado na administração, tais como: Ineficiência das empresas públicas; Necessidade de diminuição do desequilíbrio das contas públicas; Redução do peso político dos sindicatos e clientelas partidárias; Promoção do acesso à propriedade directa do capital das empresas pela generalidade dos agentes. www.observaport.org 3
O conceito da "especialização produtiva como suporte da eficiência" está na origem desta realidade (Campos, A. C., 1997b). "O Estado não tem que competir com o sector privado em áreas que não requeiram a sua especialização produtiva" podendo com isso reorientar os seus recursos para outras actividades que dificilmente poderiam ser delegadas ao sector privado, como a "definição de políticas, a função disciplinadora e a regulação do mercado" (Campos, A. C., 1997b). A este respeito importa clarificar que o "exercício de tarefas públicas por privados não significará sempre uma verdadeira retirada do Estado, mas tão somente de escolha de uma forma outra de prossecução de tarefas públicas. O Estado permanece responsável, mas a tarefa pode ser executada com mais efectividade, eficiência e economicidade se se adoptarem novos padrões de organização (Canotilho, J., 2000). Assiste-se, um pouco por todo o mundo, ao incremento de uma nova filosofia administrativa, que se pode designar como a Administração Pública de tipo Empresarial (New Public Management). Este conceito procura substituir a gestão pública tradicional por processos e técnicas de gestão empresarial No entanto, alguns obstáculos levantam-se à desintervenção e à introdução de competição interna, como o medo da mudança e o medo do desconhecido. A administração não se encontra habituada à avaliação pela lógica do mercado. Compreensivelmente esta é uma atitude natural, pois "provavelmente a procura de eficiência determinaria reduções de mão de obra, sobretudo a menos qualificada" (Campos, A. C., 1997b). E naturalmente, que quanto mais se recorrer ao mercado, maior e mais cuidada regulação terá que ser introduzida para se evitar a criação de monopólios e o tráfico de influências (Campos, A. C., 1997a). Naturalmente, que a questão dos riscos sociais também pode ser levantada e, principalmente, no sector da saúde. Ou seja, até que ponto, com a desintervenção do Estado enquanto prestador directo e o recurso ao mercado, não ocorrem fenómenos de selecção adversa de doentes; doentes provenientes de companhias de seguros são melhor e mais rapidamente tratados ou doentes com risco clínico maior são preteridos em função de outros em que esse mesmo risco seja menor? Os sistemas do tipo Serviço Nacional de Saúde, como o português, apresentam vantagens em termos de coesão e de solidariedade, se possibilitarem a todos os cidadãos acesso a cuidados de saúde de qualidade, quando deles necessitem. Porém, quando as regras de funcionamento e a governação destes sistemas são rudimentares, torna-se possível a sua captura por diversos stakeholders, sem que os cidadãos e a sociedade possam exercer um efectivo poder de decisão e de controle sobre os serviços de saúde, que pagam enquanto contribuintes (Ramos, V., 2003). "Claro que a melhor forma de controlar os serviços prestados pelo exterior à administração pública é uma bem desenhada e bem executada actividade reguladora do sector privado. Tarefa exigente para a qual a administração não estava de todo preparada" (Martins, A., 2000). Administração Pública em Portugal: alguns paradigmas A administração é frequentemente acusada de ser ineficiente e agir de acordo com uma excessiva formalidade e burocracia. No entanto, "o poder político não lhe permite ser mais www.observaport.org 4
imaginativa, por lhe exigir estabilidade e segurança" (Campos, A. C., 1997a). "A administração é o objecto ideal da crítica superficial, cáustica, que analisa resultados sem cuidar de conhecer o nexo de causalidade com as supostas causas" (Campos, A. C., 2002). Em termos de efectivos e apesar da admissão há muito ter sido sujeita a elevado rigor, a verdade é que o número de funcionários da Administração Pública tem vindo a aumentar. Em 1999 e de acordo com dados do recenseamento, eram 716418 os funcionários ou agentes da Administração Pública. Gente a mais? Em números redondos, talvez sim. No entanto, não se pode dissociar o aumento do número de funcionários das novas razões sociais assumidas pelo Estado (Campos, A. C., 1997a). Isto apesar de ser "possível realizar as mesmas funções sociais com menos gente, desde que mais qualificada" (Campos, A. C., 2002). Outra acusação que se faz frequentemente à Administração Pública é a de que é pouco produtiva. De facto, a administração ao alargar o âmbito das suas atribuições tornou-se demasiado volumosa e pesada. Qualquer alteração a ser feira implicará muito tempo. Ao concentrar-se nos meios, na gestão do orçamento, pessoas, património e organizações, secundariza os resultados e os serviços prestados ao cidadão, que são a sua razão de ser (Campos, A. C., 2002). Conclusão "A administração tem necessidade de manter a estabilidade dos seus modelos e regras de gestão. O recurso ao figurino tendencialmente único é a garantia da sua sobrevivência a baixo custo" (Campos, A., 2002). Dessa forma, "um hospital adquire milhões de contos de medicamentos (...) da mesma forma que um pequeno instituto adquire o seu material de expediente" (Campos, A., 2002). Naturalmente, que a Saúde, pela sua especificidade, tem que encontrar alternativas a este modelo centralista e pouco responsabilizado. Algumas dessas alternativas foram descritas anteriormente. Parece, no entanto, que a sua real implementação não corresponde às expectativas criadas. A reforma do Estado enquanto prestador tem que ser acompanhada pela reforma ao nível da contratualização e regulação do mercado, de forma a que os interesses dos cidadãos sejam defendidos. A falta de informação condiciona qualquer tentativa de reforma no funcionamento da administração da Saúde. De tudo o que atrás foi dito, importa reter as seguintes palavras: "As reformas da administração em todos os sectores, Saúde inclusive, devem ser simples e atacar especificamente os pontos de estrangulamento que se tornaram perceptíveis, senão mesmo, objecto de repetidas queixas. As grandes construções das reformas, complexas nas suas articulações e instrumentos, têm tendência para não passar porque mexem com muitos interesses e não são visíveis pelos cidadãos de quem é indispensável assegurar a aceitação ou, mesmo, a cumplicidade" (Oliveira, L., 1999). Base de Evidência ARAÚJO, Joaquim Hierarquia e mercado: a experiência da administração gestionária. In INSTITUTO NACIONAL DE ADMINISTRAÇÃO Moderna Gestão Pública. Lisboa: INA, 2000. www.observaport.org 5
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