Administração Fazendária: as redes dos provedores do século XVIII na historiografia do Rio de Janeiro



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Transcrição:

Administração Fazendária: as redes dos provedores do século XVIII na historiografia do Rio de Janeiro Ana Carolina da Silva * E-mail: carolzinhavlis@gmail.com Resumo: Este trabalho trata das relações de poder existentes entre os representantes das elites coloniais com a atuação no governo local e as demais esferas da administração existentes da cidade do Rio de Janeiro. Pretende-se investigar as relações e conflitos, assim como a possível interface entre a posição dos indivíduos nas diferentes redes sociais e sua atuação na administração. O objetivo aqui é investigar como a historiografia tende a tratar as redes dos provedores no governo da Res Publica no Rio de Janeiro colonial, quais interesses estariam envolvidos na distribuição dos cargos e as redes que se formam em torno do sistema de poder e de seu aparelho social da administração colonial do século XVIII. Palavras- chave: Brasil Colonial; Administração Fazendária; Relações de Poder Abstract: This paper addresses the power relations between the representatives of the colonial elites to work in local government and other spheres of government existing in the city of Rio de Janeiro. The aim is to investigate the relationships and conflicts, as well as the possible interface between the position of individuals in different social networks and their role in the administration. The goal here is to investigate how the historiography tends to treat the networks of providers in the government of Res Publica in Rio de Janeiro colonial interests which are involved in the distribution of positions and networks that form around the power system and its unit social colonial administration of the eighteenth century. Key- Words: Colonial Brazil; Economical Administration; Power Relationships

* Mestranda do Programa de Pós Graduação em História Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Início: março de 2012. Orientação: Prof. Dr. Marcos Guimarães Sanches. Nos estudos sobre a administração colonial, a historiografia sempre foi carente dos estudos com análises sociológicas do poder, do Estado, da sociedade e da própria administração que apreendam em si a perspectiva de atuação dos micropoderes. Dentro de tal perspectiva o mais comum nas análises sobre a administração é privilegiar o caráter estrutural do poder nos moldes do Antigo Regime, destacando nas últimas décadas o estudo sobre as redes sociais do Império Português. É normal que as redes sejam consideradas como à base de sustentação da administração colonial e do próprio Império Português. Este trabalho foca o cenário social e político das redes no espaço da administração fazendária na época colonial. Na formação das redes na sociedade colonial, especificamente na sociedade do Rio de Janeiro nas últimas décadas do século XVII e início do século XVIII, observamos que a historiografia atribui importância significativa para entendermos sua funcionalidade na Colônia. Segundo Maria Fernanda Bicalho um dos instrumentos para se entender a sociedade colonial é o conceito de rede, uma vez que (...) Estes se constituíam por meio de múltiplas redes de relações- políticas, econômicas, sociais e culturais- que conectavam os sujeitos históricos (BICALHO, 2007:82). Trata-se de um trabalho introdutório, elaborado ainda nos primeiros meses de pesquisas relacionadas ao meu projeto de mestrado. A existência da Provedoria das Capitanias e de seus respectivos provedores pode ser explicada pela necessidade de estabelecimentos que enraizaram e asseguraram do domínio do Estado Português na colônia brasileira (MENEZES, 2007: 12). Segundo Mozart Vergetti Menezes Foram- se também, pode-se dizer a pedra angular que determinou os níveis e as possibilidades de ação autônoma dos governadores, na correlação das forças entre várias capitanias (MENEZES, 2007:12). A Provedoria da Fazenda é vista pela historiografia como espinha dorsal da administração fazendária 11 no Brasil Colonial. As 1 Segundo Graça Salgado a administração fazendária era responsável pela aplicação das diretrizes econômicas da época, encarregando-se da gestão das finanças do Estado. Cf. SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos. A Administração no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1985.p.83. 2

funções e atribuições da Provedoria não eram somente tributárias ou fazendárias. As provedorias eram o cerne da administração cível e o alicerce da intendência militar. Desde a arrecadação de impostos até o armazenamento de armas e munições, tudo competia às provedorias (MENDONÇA, 1972). No Rio de Janeiro, a Provedoria da Fazenda Real instalou-se a 3 de dezembro de 1566, com a nomeação de Estevão Peres para seu primeiro provedor 2. Durante mais de um século a provedoria foi ocupada por membros de duas famílias, os Sá e o Mariz, que se revezaram na chefia, na medida em que aumentava ou diminuía o poder político de cada grupo. Em 1710 a provedoria, a alfândega, o palácio do governo e outras repartições foram incendiados pelos franceses de Duclerc 3. Nos cinqüenta anos que se seguiram aos ataques franceses, a provedoria ficou sob o comando da família Cordovil, enquanto a alfândega se manteve autônoma. Luciano Figueiredo aponta assertiva confluente no que tange ao papel do provedor na administração colonial. O autor nos ensina que o destaque dado à função fazendária e fiscal no mundo colonial se reflete no poder e prestígio concentrados na figura dos provedores de fazenda, uma vez que dispunham de autonomia e autoridade diante dos outros funcionários da alta hierarquia colonial (FIGUEIREDO, 1996: 304). Em 1700, em parecer do Conselho Ultramarino sobre a carta do governador e capitão geral do Rio de Janeiro, Arthur de Sá e Meneses, acerca da receita e despesa da Fazenda Real da Capitania, este foi informado de que a receita anual não foi suficiente para pagamento dos gastos desta capitania; reconhecendo o Conselho que o Rio de Janeiro é a capitania que mais tem contribuído com os impostos e por isso, seja ordenado, que se remeta dos efeitos do ouro e a importância que faltou a Fazenda Real para pagar suas despesas com a segurança e infantaria 4. No ano seguinte, o Rei envia uma carta régia ao governador da Capitania do Rio de Janeiro, ordenando para que o provedor da fazenda real da capitania do Rio de Janeiro 1 Segundo Graça Salgado a administração fazendária era responsável pela aplicação das diretrizes econômicas da época, encarregando-se da gestão das finanças do Estado. Cf. SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos. A Administração no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1985.p.83. 2 Nomeação feita pelo governador Mem de Sá. 3 A carta régia de 4 de setembro de 1704 mandou que o governador nomeasse uma pessoa para o cargo de juiz de Alfândega, distinguindo- o do cargo de provedor da Fazenda Real. Cf. Arquivo Nacional, códice 60, vol. 28. f. 113v. 4 AHU- Rio de Janeiro, Cx. 7, doc.8, 7. 3

tome as contas da casa da moeda 1. Esta solicitação deve-se pelo crescente segmento do cargo do provedor das minas com o ramo fazendário- mineiro. Esta carta objetivava facilitar a cobrança dos impostos e evitar o contrabando. É aí que Luciano Figueiredo chama atenção à necessidade do estudo dos provedores e de sua trajetória exacerbada de dedicação aos negócios escusos, Nessas práticas não parecia contar muito o caráter ilícito dos procedimentos mas os prejuízos e o impacto econômico que causavam a grupos locais. Sendo assim, desde que exercida com habilidade, a prática ilícita era tolerada. O Rio de Janeiro constituiu um dos palcos privilegiados para se captarem as tensões que giravam em torno dos funcionários fazendários, responsáveis em primeiro lugar pelo sucesso da arrecadação das receitas. (FIGUEIREDO, 1996:305) Raymundo Faoro já chamava-nos a atenção no clássico Os Donos do Poder para o estudo da Fazenda Colonial, lembrando o autor que A fazenda merece um capítulo especial, visto que em torno dela se projeta a economia e a sociedade coloniais (FAORO, 2004:188). Esta idéia apresentada por Faoro mostra-nos um corpo agregado à centralização régia, fixado em todos os níveis de governo, com o escoadouro comum dirigido à metrópole. Sendo assim, teríamos nesta visão um Conselho da Fazenda, na corte, em conflito ou em harmonia, com o Conselho Ultramarino dirigindo e controlando a administração fazendária no Brasil (FAORO, 2004:188). Concernentemente a esse quadro, pode-se afirmar que a criação da Provedoria conjeturara ao contexto de criação do Direito português ainda no século XVI, com a necessidade e consciência preocupação de reduzir neste conjunto o espaço econômico ao espaço administrativo. Por tais razões, a Provedoria refletira essa necessidade de mudança de conjuntura, uma vez que as rendas e direitos das ditas terras até aqui, não foram arrecadados como cumpriam, justificando dessa forma, a recomendação de percorrer as Capitanias, 2...em cada uma das Capitanias, ordenareis que hajam casas de Alfândega e Contos e Livros para o negócio das ditas Casa (...) e assim ordenareis em ramos apartados as Rendas por direitos que Ele tiver (...) e proveja em tudo o mais que cumprir ao negócio de sua Fazenda. 3 1 Secretaria do Estado do Brasil- Provedoria de Fazenda. Códice 61. V.14 2 SANCHES, Marcos. A Fazenda Colonial: Subordinações, ações e conflitos? (Texto inédito cedido pelo autor, no prelo). 3 Regimento de Antônio Cardoso de Barros. Apud. SANCHES, Marcos. Op. Cit. 4

Reconhecemos em nossa pesquisa as normas oriundas de Portugal sobre a administração fazendária e a aplicação prática, ou não aplicação, dessa normatividade. Tratase de tentar entender os porquês dos descumprimentos, dos descaminhos e das negociações. Dessa forma, consideramos que no funcionamento da administração fazendária encontramos a profusão de normas editadas. Marcos Carneiro de Mendonça sumariaria que as principais fontes das raízes da formação administrativa do Brasil encontram-se nos regimentos. Segundo Carneiro, o papel principal dos regimentos era a de reafirmar as normas administrativas da então florescente Nação Portuguesa (MENDONÇA, 1972: s/p) Segundo o padre Rafael Bluteau, podemos definir como provimento de ofícios toda e qualquer tipo de coleção de benefícios (BLUTEAU: 2000:809) que assumiriam um papel importante para a sociedade colonial, constituindo-se em mecanismo de entrelaçamento dos interesses coloniais na administração e de limitação de sua atuação. Conforme relata Rodrigo Ricupero O funcionalismo colonial continua extremamente mal conhecido, tanto em seus aspectos formais (nomeações, instruções, ordenados etc.) como em sua origem social ou em suas relações com a sociedade em geral (RICUPERO, 2009; 151). O sistema de contratos, necessário para a Coroa portuguesa pela impossibilidade de arcar com o estabelecimento de tão extenso aparelho burocrático sobre a colônia, consistia em uma conjugação da ação estatal com particulares que, alçados a um patamar acima da população em geral, já que atuavam em nome do Estado português (FAORO, 2001), se inseriam no aparelho estatal, mesmo sem as necessárias condições para fazer isso através da ocupação de um ofício, assumindo, dentro do prazo estipulado pelo contrato, o papel de representantes do Estado português, passando a agir não só em nome da Fazenda Real, mas como Fazenda Real (ARAUJO, 2002). Percebe-se, assim, que o ato de governar vai além de uma perspectiva impessoal a passa a significar também a administração de relações privadas (DEDIEU, 2000). Na estrutura fazendária as propinas e outros rendimentos dos cargos alimentavam interesses privados, já que eram constantes exercícios na administração, garantindo verdadeiros privilégios nesta sociedade colonial, como por exemplo, se lavrar moeda, aos ordenados dos oficiais da Casa da Moeda e do Superintendente das Minas, pagos pela 5

Provedoria. Verifica - se pela leitura da tabela I que o contrato dos dízimos era o alvo freqüentes de determinações sobre a cobrança dos contratadores, requisitando os rendimentos pela metrópole ou investigando a possível existência de conluios nos processos. nesta Cidade. TABELA I- Cobrança das propinas que pagarão os contratos abaixo declarados Dízimos Reais Cargos Ao governador cuja quantia entra no saldo Ao Provedor da Fazenda Real Ao Escrivão da Fazenda Real Ao Procurador della Ao Almoxarifado Ao Escrivão dos almoxarifados Ao Escrivão dos Contos Ao Oficial da Fazenda Ao Almoxarifado Ao Almoxarifado das Armas Ao Oficial das Armas Ao Meirinho Ao Porteiro Valor em contos de réis 600Ø000- Seiscentos mil reis 400Ø000- Quatro contos mil reis 100Ø000- Cem mil reis 100Ø0000 Cem mil reis 50Ø000- Quinhentos mil reis 40Ø000- Quatrocentos mil reis 40Ø000- Quatrocentos mil reis 28Ø800- Vinte e oito mil e oito contos reis 18Ø000- Dezoito mil reis 19Ø200- Dezenove mil e duzentos reis 8Ø000- Oito mil reis 24Ø000- Vinte e quatro mil reis 24Ø000- Vinte e quatro mi reis TOTAL 1:4870000 6

Fonte: Secretaria do Estado do Brasil. Arquivo Nacional: Códice 60. Volume 18. Fl. 68 Ano 1710. Concernente ao nosso objeto, a historiografia busca aquilo que António Manuel Hespanha chamou de funcionamento social das instituições, sua posição no conjunto do Estado, a eficácia de seu funcionamento, bem como o embate com os grupos da sociedade e seus interesses. Tanto a compreensão quanto o entendimento da estrutura e organização da administração fazendária é importante porque neste órgão fazendário encontramos a manutenção dos quadros estamentais da sociedade colonial. Ao mesmo tempo, esta análise é importante para compreendermos e considerarmos que esta administração da América Portuguesa possuía uma população residente enraizada e socialmente bem estruturada (HESPANHA, 2001). Concordamos com a análise feita por Hespanha, de que a venalidade dos ofícios fora uma característica singular na administração da Colônia, já que nossa administração conhecera um procedimento que interligava combinações de interesses sociais e de poderes administrativos. Deve-se pensar que o sistema administrativo do Império português era o responsável pela distribuição social do poder (HESPANHA, 1984:69-70), que se encadeava em uma hierarquia estendida da Metrópole à Colônia. No mundo colonial, o exercício do poder por agentes de diferentes esferas administrativas nos remete a pensar nas tensões geradas quando interesses se chocavam, movimentando as relações sociais. Tais tensões poderiam ser entre forças centrífugas, envolvendo os interesses da sociedade e a administração locais; ou centrípetas, entre a Metrópole e seus agentes administrativos, interferindo diretamente no acesso aos postos administrativos da República 1. O exercício do mando na colônia se dava principalmente através da ocupação dos chamados postos da Res publica, posição esta que sustentava a criação de mecanismos de legitimação às pretensões de ascensão hierárquica de alguns indivíduos na sociedade (FRAGOSO, 2007:22) 1 De acordo com os preceitos da 2 Escolástica e o tomismo, para que o indivíduo viva em comunidade é fundamental ultrapassar o egoísmo em favor do bem comum. Para isto, surge uma sociedade que é política, e com ela a República, Res publicae, ou seja, as funções públicas para que esse bem comum fosse atingido. Cf., Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 7

Segundo Maria Fernanda Bicalho, as Câmaras Municipais Ultramarinas foram elementos de unidade e de continuidade entre o Reino e seus domínios, pilares da sociedade colonial portuguesa nos quatro cantos do mundo (BICALHO, 1998: 2). Mesmo com a atuação centralizadora dos governadores 1, fruto da conjuntura do Império português, as tensões com a Câmara Municipal se fizeram presentes com objetivos que poderiam ser políticos, econômicos ou sociais, levando-se em conta ainda, a venalidade dos funcionários (WEHLING, 2005: 312) Nesse sentido, a provedoria da fazenda torna-se essencial para análise nessas tensões por representar a pluralidade de instituições fiscais concorrentes como as Câmaras e o exercício patrimonial dos ofícios. De acordo com as hipóteses desenvolvidas em nosso trabalho observa-se que na trajetória do Estado moderno em suas diferentes versões foi caracterizada, pela historiografia, pela crescente importância da administração fazendária (SANCHES: 2006). Cabe ainda lembrar que a Fazenda Real ultrapassou a condição de gestora do patrimônio régio, em face da necessidade de manter um aparato de serviços cada vez mais amplo e, no caso português, pluricontinental. O desempenho da Provedoria dependia fundamentalmente da ação dos oficiais envolvidos neste negócio. A fiscalização era realizada por estes e a Coroa pouco conhecia as questões pertinentes a colônia. Dessa forma, eram fortes agentes influenciadores e principal elemento de ligação entre os colonos e a Coroa. O seu esforço e empenho eram a única garantia da efetiva arrecadação das rendas. O contato que os colonos tinham com a Coroa eram os oficiais, assim como a Coroa os mantinham como sua principal presença na colônia. Os funcionários da Fazenda serviram como elos intermediários desta lucrativa relação em que ambas as partes tinham grandes interesses de favorecimento e para isso era interessante que estivesse cada vez mais fortificada. Quanto às fontes primárias, a busca pelo seu mapeamento está ainda em seus primeiros passos, mas já é possível afirmar que uma das principais medidas encontradas pela Metrópole, para garantia de sua presença na Colônia, foi à distribuição de ofícios como forma de garantir a lealdade destes em relação aos interesses da Coroa. A partir disso, houve uma busca por diversos colonos para ocupar estes cargos oficiais devido às vantagens sociais e econômicas proporcionados pela permanência na instituição. A falta de exigências 1 Iremos trabalhar em nosso projeto de mestrado com os governos de Gomes Freire e Luis Vahia Monteiro 8

profissionais aumentava as expectativas e possibilidades de ocupação dos cargos oficiais. A concentração de esforços para penetrar na instituição esteve diretamente ligada às relações mantidas com outros indivíduos que pudessem proporcionar a entrada na Provedoria de Fazenda do Rio de Janeiro. Dentre os possíveis elos que possibilitavam a ocorrência destes casos foi possível destacar, o casamento como a principal medida utilizada devido ao próprio caráter duradouro da relação na época colonial. Todavia, ainda nos faltam análises mais detalhadas sobre as tensões e intenções dos interessados envolvidos na administração fazendária do Rio de Janeiro colonial. Bibliografia: - ARAUJO, Luiz Antônio Silva. Contratos nas minas setecentistas: o estudo de um caso João de Souza Lisboa (1745-1765). II Seminário sobre a economia mineira: Cedeplar, Diamantina, 2002. EconPapers: Economics at your fingertips. Economic Research Institute (EFI) at the Stockholm School of Economics., 2002. Disponível em: https://www.cedeplar.ufmg.br/diamantina2002/textos/d02.pdf - BICALHO, Maria Fernanda. As Câmaras Municipais no Império português: o exemplo do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de História, vol. 18, n. 36. São Paulo: ANPUH/Contexto, 1998. - BICALHO, Maria Fernanda; Dos Estados Nacionais ao sentido da colonização : história moderna e historiografia do Brasil Colonial. In: ABREU, Martha; SOITH, Rachel; GONTIJO, Rebeca (Orgs.). Cultura Política e leituras no passado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. - BLUTEAU, Rafael. Vocabulário portuguez e latino (1712-1721). Rio de Janeiro: UERJ, Departamento de Cultura, 2000. (CD- ROM). - DEDIEU, Jean Pierre. Procesos y e redes. La historia de las instituciones administrativas de la época moderna hoy in: CASTELLANO, Juan Luiz; DEDIEU, Jean Pierre; LOPEZ CORDON, Maria Victoria. La Pluma, La Mitra y la Espada. Estudios de la Historia Institucional em Edad Moderna. Madrid: Marcial Pons, 2000. 9

- FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formação do Patrono Político Brasileiro. São Paulo: Globo, 2004. - FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Revoltas, Fiscalidade e Identidade Colonial na América Portuguesa: Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais, 1640-1761. Tese de Doutoramento em História, Universidade de São Paulo, 1996. - FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos Trópicos: a Dinâmica Imperial Portuguesa (Séculos XVI - XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. - FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. (orgs.) Conquistadores e Negociantes: Histórias de Elites no Antigo Regime nos Trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. - HESPANHA, Antônio Manuel. Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Fundação Caloustre Gaulbenkian, 1986. - MENDONÇA, Marcos Carneiro. Raízes da Formação Administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, 1972. Tomo I e II. - MENEZES, Mozart Vergetti. Colonialismo em Ação: Fiscalismo, Economia e Sociedade na Capitania da Paraíba (1647-1755). Tese de Doutoramento em História, Universidade de São Paulo. - RICUPERO, Rodrigo. A Formação da Elite Colonial: Brasil c.1530- c. 1630. São Paulo: Alameda, 2009. - SANCHES, Marcos Guimarães. A Administração Fazendária na Segunda metade do século XVII: ação estatal e relações de poder. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v 432, jul./ set. 2006. - WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. Formação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. 10